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terça-feira, junho 23, 2009

Fé na Razão




Não, não estou a parafrasear o adagio de Santo Agostinho “creio para compreender e compreendo para crer melhor”. Não me refiro aqui à Fé num sentido estritamente religioso, nem à Razão como modo de justificar a Fé.

A Razão tem muitos nomes, muitos meios de ser entendida e abordada. Desde os primórdios gregos do pensamento ocidental que ela existe como contraponto ao irracional, ou noutras palavras ao mitológico. Ou seja, nesses séculos que precederam Sócrates, é posta em prática uma atitude racional intimamente associada ao natural, à explicação e à especulação expurgada de causas divinas ou da ordem do sobrenatural. Pelo menos é o modo como nós interpretamos, embora Tales de Mileto, um dos sete sábios da Grécia e o primeiro dos filósofos especulativos tenha escrito algo do género Tudo está cheio de deuses. Sem esquecer, obviamente, a sua afirmação peregrina de que a água era o elemento primordial. Contudo, esta dicotomia entre mito/razão que tantas vezes invocamos não é tão linear e distinta como gostariamos, ou como se pretende impôr. A partir de Sócrates surge uma outra abordagem (surge ou tem continuidade em diferente grau?) racional, sempre especulativa mas muito mais voltada para a Ética, a Estética, a Moral. O evento Sócrates (quem diz Sócrates diz, em última análise, Platão) marca o nascimento do pensamento conceptual, desmaterializado, descarnado, puro. Obviamente que este tipo de pensamento descarnado, associado à virtuosidade e à justiça, sempre existiu, embora num plano divino e mitológico fundacional que o justificava só por si mesmo. Contudo, embora o pensamento natural tenha estado sempre presente, urge para este novo tipo de pensamento justificar também especulativamente aquilo que possibilita ao homem ser justo, viver uma «vida boa», ser bom cidadão. Ora, o mero estudo do natural e a busca pela physis não determina como deve viver o homem, não lhe dá regras nem orientações para ser feliz. A razão é, neste caso particular, a exploração daquilo que é meta-natural, ou numa palavra mais consensual, metafísico. O curioso, e é disto que se apercebe Platão (digo eu...) é que a razão tem uma espécie de capacidade autónoma para gerar a sua própria matéria prima de pensamento. A razão não pensa no vazio, ela elabora conceitos com os quais joga para formar ideias, raciocínios. Aquilo que terá despertado Platão para a luz no exterior da sua caverna talvez tenha sido a própria matemática. Platão viajou muito antes de ser o grande filósofo dramaturgo, díscipulo fidelissimo do seu mestre Sócrates. Nas suas viagens, Platão conheceu de perto a mitologia egípcia, bem como a hindu, e o que o terá impressionado em grande medida terá sido o modo como os egípcios utilizavam a matemática para contruir templos, noutras palavras, para criar o real. É óbvio que a tradição pitagórica já havia influenciado enormemente o pensamento de Platão, bem como a noção de que a matemática é o modo mais profundo de compreender a natureza e as leis que a regem. Portanto, se o mundo é matemática, como é possível que a Razão humana, por si só, gere os conceitos e a matemática possível para entender a própria natureza, exterior à Razão? O que há na razão de tão íntimo com a natureza última do Universo? É em grande medida esta dúvida circunstancial, nascida da prática matemática, que dá origem à teoria do conhecimento de Platão, e abre caminho sem dúvida a toda a especulação epistemológica que se lhe seguiu até aos dias de hoje. Conhecer é recordar, é uma anamnese daquilo que a razão já conhece pois antes de existir já existia num mundo superior, de essências, anterior e transcendente ao mundo do visível, dos sentidos, que lhe é inferior. Apenas um reflexo torpe e de aparências desse mundo que o transcende. De notar a influência do pensamento hindu, da ideia do Véu de Maya e da aparência do mundo, no pensamento de Platão. Viria a ser Aristóteles, durante muito tempo discípulo de Platão, que viria a provocar a tensão filosófica necessária para projectar a especulação filósofica em direcção aos séculos dos séculos. Se Platão era um Idealista, um crente nas formas puras, nas ideias e na superioridade de um mundo metafísico em relação ao sensível que, em boa verdade, nem sequer tinha consistência ontológica própria (não existia independentemente de outra substância), Aristóteles era em grande medida um Realista. Embora não descurasse a importância da Razão (é a Aristóteles que devemos a definição do homem como animal racional) este pensador era, antes de mais, um naturólogo. Era um adepto da experimentação, pelo que são vários os seus escritos sobre anatomia, botânica, zoologia. Ao contrário de Platão que só consideraria dignos de estudo as formas puras, através da geometria e da matemática, Aristóteles considerava que também os objectos da natureza eram dignos de análise e compreensão. Na verdade, não acreditava que existissem formas puras, ou noutras palavras, essências sem o correspondente concreto na natureza. Aliás, as ditas essências não eram na verdade transcendentes aos objectos, mas imanentes a eles. Uma casa não era um correspondente participante da casa ideal que existe no mundo das ideias, mas faz parte de uma espécie ou género a que se chama casa. E a consistência ontológica da casa não emana de um mundo supra-sensível, mas da própria definição. São os objectos individuais que dão origem à definição, à substância. Noutras palavras, é mais importante a substância individual (um homem por ex.), do que a substância humanidade, que corresponde a um género, e os géneros são substância em segundo grau. Para Platão não seria assim. A Humanidade como substância é a única verdadeiramente válidade e verdadeira, é na verdade da Ideia de Homem que todos os homens individuais vão beber a sua própria consistência ontológica, a sua existência, através da participação.

Contudo, não é dos conteúdos das teorias que estamos a falar, mas da razão e das várias formas que assumiu ao longo dos séculos.

O pensamento medieval é herdeiro, em grande medida, desta tensão entre Platão e Aristóteles. Obviamente, a Fé e não se colocava em causa, nem a Biblia como fonte de verdade. O objectivo do pensamento medieval foi o de adaptar o pensamento grego aos trâmites da religião, justificá-la e dar-lhe uma consistência racional que efectivasse o domínio do pensamento cristão sobre o pagão. A razão especulativa que estava na base do pensamento medieval era a de uma metafísica da Fé, arredada de naturalismos, com a excepção talvez de um Occam, ou de um Nicolau de Cusa que tentaram nadar contra a corrente dominante.

A partir do séc. XV, com o evento do renascimento, da imprensa, dos descobrimentos, há um renascimento, ou seja, perante uma nova abertura, uma nova liberdade de pensamento e um acesso mais alargado aos escritos greco-romanos, o pensamento assume uma nova forma a vários níveis. Voltou-se a dar valor ao pensamento natural, à matemática, à reflexão empírica. Apareceu um Galileu, um Da Vinci, e no séc. XVII um Newton, um Kepler, um Leibniz, um Descartes. Deu-se a Reforma da Igreja com Lutero, com Calvino, com a heresia de um Henrique VIII e a reforma anglicana. Deu-se a feroz resposta de uma Igreja ameaçada – a Inquisição. Foi profunda e vasta a revolução, quase que se poderia dizer que a revolução foi coperniciana, fazendo jus a Copérnico e à importância fundamental, não só a nível científico, mas também social, político e humano, do acto de retirar o homem do centro a atirá-lo para a periferia de um sistema em que o sol era o rei. Que tipo de razão surge nestes séculos? Podemos falar já em razão científica, ou noutras palavras, numa razão metódica e empírica. O pensamento metafísico sempre lá esteve, e podemos inclusive afirmar que Descartes inaugurou esta nova forma de pensamento. Descartes, com a sua dúvida metódica refundou os alicerces do pensamento, procurando em certa medida conjugar a metafísica com a ciência, tornando-a ela mesma (a metafísica) numa ciência. Se por um lado procurou encontrar um método infalível para as ciências, por outro, procurou também provar que a metafísica se basta a si mesma, e que a verdade fundacional (dúvidamos, pensamos, logo existimos) não precisa de dados sensíveis ou exteriores ao pensamento para ser atingida. Determinou também (e aqui parece haver uma espécie de conciliação milenar entre conceptualizações) o mundo extenso e o mundo das ideias (no caso de Descartes falamos em coisa pensante [res cogitans] constituida por ideias inatas) não precisam um do outro para terem consistência ontológica. São substâncias autónomas e independentes.

A razão metódica passa também pela invenção do método experimental nas ciências. Durante muito tempo as posições extremaram-se. Alguns, adeptos incondicionais das ciências e do empirismo, negaram qualquer possibilidade de conhecimento inato proveniente da razão (Locke, Hume). Descartes, por outro lado, era um verdadeiro racionalista, crente no poder da Razão para conhecer a abstrair do real a verdade do mundo, sobretudo através da matemática.

Nos dias de hoje, a Razão é acima de tudo método científico. A filosofia continua a ter um papel fundamental como motor de pensamento, como escrutinador de todas as actividades humanas, seja na ciência, na política, na religião. Para tal, já Popper, afirmou que a ciência verdadeira implica que as proposições que dela emanam sejam verificáveis, falsificáveis e refutáveis. Ou seja, está na base do próprio pensamento científico e da sua fiabilidade, o facto de poder ser posto em causa. Para Popper, toda a forma de ciência que não cumpra estes requisitos é pseudo-ciência ou pior. O autor não põe em causa a metafísica em si mesma, que considera necessária e válida, mas a metafísica que pretende ser ciência. Ele afirma também que os problemas filosóficos são legítimos, e emanam em grande medida de dúvidas e problemáticas que surgem no decorrer da prática científica, religiosa, política, ética, e de tudo o que estas dimensões implicam para o progresso da sociedade humana. Contudo, tais problemas têm por vezes soluções muito simples, arredadas do processo metafisico, por vezes propostas pelo progresso da ciência. Os problemas filosóficos podem ser, em última análise, problemas cientificos, e como tal, terem uma resolução científica. Por exemplo, a questão da mente e do processo do conhecimento teve, nas últimas décadas, importantes contributos a nível da neurociência, seja com a chamada «epistemologia naturalizada» de Quine, seja com o contributo do nosso tão português António Damásio com os seus estudos acerca das emoções e dos processos cerebrais nelas envolvidos. Para tal vale a pena ler O Sentimento de Si, ou o Erro de Descartes, escritos pelo mesmo autor.

Afinal, o que é a razão? A razão parece ser a faculdade humana do julgamento, do raciocínio, e em última análise, da decisão. Nos dias de hoje, a robótica, a ciência da computação, está novamente a procurar recorrer à filosofia para entender o que é a razão, como funciona, quais os seus limites, e de que modo esta pode ser reproduzida a nível tecnológico. É a tal Inteligência Artificial. De resto, a tendência natural, ao longo dos séculos tem sido a fragmentação da filosofia em inúmeras ciências e disciplinas, bem como o quase fechamento sobre si mesma numa tentativa solipsista para se auto-compreender. Afinal, não era esta a filosofia hegeliana? O Espírito (pensamento) procurando compreender-se de forma cada vez mais elevada até à síntese final, e ao fim da história? Em última análise, todos utilizamos essas faculdade de julgamento todos os dias, sem sequer termos disso consciência. Contudo, temos também consciência da falibilidade da razão, e do modo como os erros de pensamento podem conduzir-nos ao caos e à confusão. Contudo, porque continuamos a acreditar tanto nela, ou melhor, como é possível que continuemos a ter tanta FÉ NA RAZÃO?

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