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segunda-feira, agosto 15, 2016

Reabilitar a alma como resposta para o "hard problem" da consciência - porque não?



(for english version please click here. This article has also been published in Medium community.)

Considero que a hipótese da existência da alma deve ser tida em conta na resposta ao problema da consciência, ou, mais precisamente, ao chamado “hard problem” da consciência, o problema que diz respeito à natureza e origem da experiência subjetiva enquanto tal. Dito de outra forma, considero que deve ser ponderada a possibilidade que considero muito plausível de estarem esgotadas todas as tentativas estritamente fisicalistas ou materialistas de dar uma resposta cabal a este problema fundamental, e que o adágio "no brain, never mind" deve efetivamente ser revisto ou pelo menos reinterpretado, porquanto reflita acima de tudo um preconceito filosófico muito comum entre filósofos, neurocientistas e cientistas cognitivos que se têm debruçado sobre o mistério da consciência. Preconceito que é reflexo de um paradigma transversal a várias ciências, mas que não tem propriamente base empírica e científica. Paradigma orientador, que aponta horizontes de resposta, mas que no caso da consciência e do mistério da experiência subjetiva talvez esteja a apontar para o horizonte errado, pois há muito que a investigação estritamente fisicalista, fisiológica, materialista do cérebro se debate com o problema da natureza da consciência sem lhe encontrar uma saída consistente com esse pressuposto orientador. Tal como já escrevi num outro trabalho,

“…por mais rigorosos que sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e profundos que sejam os tratados que descrevem certos aspetos do seu funcionamento, há uma dimensão da consciência que continua a escapar aos melhores (cientistas e filósofos). Esta dimensão é precisamente o segundo nível do problema identificado por Chalmers, o do “hard problem” da consciência. Porque, admiravelmente, os neurocientistas são capazes de explicar em parte o modo como o nosso cérebro identifica, por exemplo, uma face conhecida na rua, descrevendo os processos neurológicos que lhe estão subjacentes; conseguem, inclusive, descrever com algum sucesso o modo como o cérebro transforma os dados dispersos que penetram pelos sentidos em padrões informacionais reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na prática, traduz a informação que vem do mundo (por ex., através da luz), em padrões, imagens mentais, ideias, perceções. Aquilo que eles falham permanentemente em explicar, a “pedra no sapato” da investigação neurocientífica, é o modo como somos capazes de percecionar subjetivamente esses padrões, essas imagens mentais, essas perceções. Dito de outro modo, a questão fundamental é a de saber como é possível a experiência subjetiva, que na prática significa perguntar acerca da natureza da mente e do mental, da sua qualidade (qualia).” (O bosão da consciência, Blog Casa do Ser, § 33)

Talvez esteja na altura, portanto, de uma revolução coperniciana, também no domínio das neurociências, que reabilite outras hipóteses, como a da alma, que possam desbloquear este problema.
Entendo aqui a “alma” num sentido minimalista, isto é, não no sentido de um órgão, substância ou entidade metafísica que substitua o cérebro e as suas incontornáveis funções de processamento cognitivo e sensorial, que hoje é mais do que inquestionável que têm origem nos processos neurológicos; não uma alma no sentido tradicional, isto é, origem do pensamento, da vontade, da inteleção, dos sentimentos, emoções e perceções, mas tão-só a base, digamos, metafísica, onde todos estes fenómenos produzidos pelo cérebro se refletem, ou seja, adquirem o seu caráter subjetivo. Cito de novo o já referido trabalho (Idem, § 21): “O ser consciente é, pois, reflexivo, porque dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a produz para outrem.”
Não nego, por conseguinte, como não podia negar face à vanguarda da investigação neurocientífica, que o cérebro - provavelmente o mais complexo de todos os sistemas biológicos e não-biológicos conhecidos -, seja de facto a origem de todas as funções neurológicas e cognitivas: intelectuais, emocionais, percetivas, volitivas, não-volitivas, etc. Mas não necessariamente da consciência que sustenta e torna possível a experiência subjetiva.
            Definiria “alma” como uma espécie de “essência senciente”, por natureza contínua, eixo fundamental, núcleo duro da identidade ou “si”, em cuja órbita se constrói o “eu”, que é a identidade sociocultural. O “si” não é o “eu”, pois este último pressupõe um conjunto de dimensões socioculturais e socio-identitárias, que dizem respeito à história e projeto de vida do sujeito (o que chamo de “identidade projecional” – sonhos, aspirações, objetivos de vida, etc.). O “si” é o alicerce, a medula do “eu”, a própria condição de possibilidade de qualquer identidade individual, porquanto seja a base de toda a reflexividade consciente – aquilo que outrora designei por “espetador”, que situado no mais profundo e misterioso reduto da toda a consciência individual, se constitui como retaguarda, consumidor final, observador primeiro e derradeiro dos eventos electroquímicos ou neurológicos do cérebro na sua face mental ou subjetiva - precisamente o factor que faz toda a diferença entre o simples computador, que não é consciente ou sensível aos produtos e padrões informacionais que produz, por não possuir tal “retaguarda”, e o ser consciente, o homem ou o animal, que não só possui dentro da sua caixa craniana o mais complexo e potente computador biológico, mas é consciente e sensível, de um misterioso ponto de vista subjetivo, aos seus produtos de ordem cognitiva, pois é dotado de interioridade.
Espetador fugidio, sem localização definida ou definível, fisicamente falando; natureza misteriosa, “olho do espírito”. Acerca da sua natureza podem elocubrar-se várias teorias, inclusive aquela que aventei na aventura especulativa que constituiu o trabalho anterior já por duas vezes citado (e que não passa disso mesmo, uma aventura especulativa como qualquer outra…).
Fundamento do “eu”, dizia, pois toda esta esfera socio-identitária que constitui o “eu”, sendo por natureza concetual e simbólica, seria insustentável sem a dimensão da interioridade ou subjetividade consciente, que por sua vez seria impossível sem a base ou fundamento de toda a experiência subjetiva, logo de toda a consciência – a dita “alma” ou “essência contínua senciente”, que porventura será independente do cérebro físico, ou situar-se-á num plano ontológico paralelo.
Eis algumas das razões porque defendo que a consciência não pode ser explicada sem o recurso a esta realidade fundamental. Embora a neurociência e as ciências cognitivas estejam perto de explicar os processos neurofisiológicos por via dos quais o cérebro produz perceções - que não são senão imagens e padrões mentais de carácter informacional -, está por resolver o fulcro do problema, que tem que ver com o modo como estas perceções – que na origem não são senão eventos electroquímicos no cérebro – são interpretadas subjetivamente, isto é, adquirem o caráter muito real de eventos mentais percecionáveis de um ponto de vista subjetivo, no contexto de uma interioridade consciente. Como é que um padrão electroquímico despoletado no cérebro de um dado sujeito que, por exemplo, se queima ao colocar as mãos no fogo, pode ser efetivamente sentido como dor para esse mesmo sujeito, de um modo absolutamente único e intransferível? Sim – como explicar que esse padrão originalmente neuroquímico possa adquirir esse caráter mental de “ser-para-alguém”? Este, parece-me, é o fulcro do problema. Sendo verdade que o nosso mundo mental é um fluxo interminável de diferentes perceções, imagens e eventos mentais vários, fruto de uma máquina biológica que evoluiu precisamente para ser capaz de a todo o momento extrair informações acerca do mundo interior e exterior, pensando-o e interpretando-o sensorialmente, é também verdade que existe um denominador comum a todas as perceções: são sempre “nossas”, confundem-se com a identidade do próprio sujeito que as perceciona; quer dizer, a experiência subjetiva não se distingue do próprio sujeito da experiência; um não se entende sem o outro, e, em boa verdade, não existe sem o outro. Como, aliás, o próprio “eu”, ou seja, a identidade social ou sociocultural, não existe fora do sujeito que, subjetivamente, a interpreta e pensa conceptualmente, sendo que a identidade enquanto constructo conceptual e simbólico é simultaneamente uma perceção ou evento mental complexo (a “ideia de si”) e o próprio “eu”, ao qual o sujeito se refere quando fala ou toma consciência de si próprio. Graças, portanto, à experiência subjetiva, a identidade adquire o seu carácter “reflexo”, ou seja, torna-se identidade de e para alguém; torna-se em ideia autorreferencial, porquanto continuamente parte de si para voltar a si – torna-se “eu”, portanto.
É como se a experiência subjetiva ocorresse num estranho e misterioso reduto da mente, onde os padrões informacionais electroquímicos misteriosamente se transmutam em eventos mentais, perceções, sentimentos. É como se, num qualquer “centro” mental ou fisiológico ocorresse uma comunicação, um contacto ou sobreposição total que permite uma continuidade entre realidades de naturezas distintas, um contacto integral, ponto por ponto, como numa plasmagem, entre uma realidade de ordem fisiológica e outra não-fisiológica, em que a informação electroquímica da primeira fosse transferida à segunda numa forma, digamos, imaterial, ou da matéria, seja ela qual for, que constitua o propriamente “mental” ou “consciente”. Recorrendo à terminologia kantiana relativamente à chamada “aperceção transcendental”, seria como se uma “unidade de perceção” contactasse integralmente, ponto por ponto, com uma “unidade de consciência”, numa sobreposição total entre ambas, só isso explicando que uma dada perceção – por ex., a visão de uma árvore à minha frente, a partir da janela – seja percecionada como uma totalidade, isto é, uma visão integrada à qual não falta nenhuma parte da qual eu possa ter diretamente consciência, nas atuais condições de distância, visibilidade, etc. Escreve Kant: “…as diversas representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas representações minhas se não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O pensamento de que estas representações dadas na intuição me pertencem todas equivale a dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo menos posso fazê-lo” (KANT, Crítica da Razão Pura, B133-B134, pp. 132-133)
E repare-se que esta questão da “unidade de consciência”, unificadora e integradora dos fluxos electroquímicos do cérebro em totalidades designadas perceções, é tão mais misteriosa quanto as neurociências ainda não foram capazes de determinar, de forma exata e conclusiva, no cérebro como no restante sistema nervoso, nenhum “centro” onde a referida transmutação físico-mental possa ocorrer. Não se conhece nenhum centro fisiológico onde possam convergir os vários fluxos informacionais de caráter neuro-electro-químico que se processam em sectores diferentes do cérebro, de modo a formar uma totalidade, um padrão informacional complexo que possa ser interpretado mentalmente como uma perceção complexa. Pois, como é sabido, a formação de uma perceção complexa envolve o contributo de vários sentidos e processos cognitivos, que ocorrem em “clusters” neuronais situados em pontos diferentes do cérebro. Por exemplo: tenho a perceção muito evidente, coerente e integrada, de que estou neste momento sentado numa cadeira de madeira um pouco dura, a escrever ao computador, em minha casa, sobre uma mesa de madeira com uma textura muito polida. Pela janela do meu lado direito entra a luz do sol; posso ouvir a música de fundo que toca na playlist do meu computador, e os meus dedos a bater nas teclas. Tenho na boca o sabor do café que acabei de beber e cuja chávena se encontra ao meu lado direito, sobre a mesa, e no nariz ainda um pouco do seu cheiro delicioso. Em resumo, é este o ambiente que me rodeia e onde me posso neste momento situar, de forma consistente e integrada - enfim, una, porquanto essa unidade que caracteriza a minha perceção complexa seja o reflexo ou projeção da “unidade de consciência” que me constitui.
Ora, todos os estímulos que constituem esta perceção complexa são processados e transformados em padrões electroquímicos em diferentes setores do cérebro, a saber: os táteis são processados na área somatossensória, localizada no lobo parietal; os auditivos, no córtex auditivo, localizado no lobo temporal; os visuais, no lobo occipital, localizado na parte de trás do cérebro. Não obstante a distância que separa os vários setores, a experiência subjetiva é sempre una, e não fragmentária e parcial. O fluxo de dados percecionais, embora alimentado por correntes de informação sensorial e cognitiva de natureza distinta e com origem em pontos diferentes do cérebro, é misteriosamente unificado por um laço que supera e suprime essa distância; um laço que supera o meramente o local; um laço, digamos, não-local



Mesmo que esse centro físico bem determinado no cérebro existisse, continuaria ainda por explicar o intrigante processo segundo o qual, nesse local em particular, o físico se transformaria em mental, quer dizer, o meramente electroquímico em experiência subjetiva consciente; o como e também o porquê desse local em específico possibilitar essa estranha alquimia que permite a introdução de um conjunto de fenómenos fisiológicos e electroquímicos observáveis e mensuráveis objetivamente, no mundo não observável e não objetivamente mensurável da subjetividade, onde só o sujeito é senhor da sua interioridade. Se, por outro lado, esse centro físico não existe, resta-nos conjeturar, por exemplo, que o cérebro é ele todo, integralmente, um “grande centro”, onde a realidade, digamos, imaterial da consciência (isso a que decidi chamar “alma”) coexiste paralelamente à realidade material, fisiológica do cérebro, talvez mesmo de um modo fundamental, celular ou quântico, permitindo uma imediata apreensão e unificação, a todo o momento, dos vários fluxos de informação sensorial e percetiva processados em setores situados em áreas diferentes do cérebro; ou seja, permitindo que diferentes processos sensoriais e cognitivos se transformem, imediatamente, em perceções complexas cujo caráter essencial é o de serem percecionadas de um ponto de vista subjetivo, de forma unificada e integrada. 


Web/Bibliografia

- O bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o “hard problem” da experiência subjetiva - Blog Casa do Ser, link: http://casadoser.blogspot.pt/2015/07/o-bosao-da-consciencia-uma-proposta.html.


- KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, trad. de Manuela Santos e Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.