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Considero que a hipótese da existência da alma
deve ser tida em conta na resposta ao problema da consciência, ou, mais
precisamente, ao chamado “hard problem” da consciência, o problema que diz
respeito à natureza e origem da experiência subjetiva enquanto tal. Dito de
outra forma, considero que deve ser ponderada a possibilidade que considero
muito plausível de estarem esgotadas todas as tentativas estritamente
fisicalistas ou materialistas de dar uma resposta cabal a este problema
fundamental, e que o adágio "no brain,
never mind" deve efetivamente ser revisto ou pelo menos reinterpretado,
porquanto reflita acima de tudo um preconceito filosófico muito comum entre
filósofos, neurocientistas e cientistas cognitivos que se têm debruçado sobre o
mistério da consciência. Preconceito que é reflexo de um paradigma transversal
a várias ciências, mas que não tem propriamente base empírica e científica.
Paradigma orientador, que aponta horizontes de resposta, mas que no caso da
consciência e do mistério da experiência subjetiva talvez esteja a apontar para
o horizonte errado, pois há muito que a investigação estritamente fisicalista,
fisiológica, materialista do cérebro se debate com o problema da natureza da
consciência sem lhe encontrar uma saída consistente com esse pressuposto
orientador. Tal como já escrevi num outro trabalho,
“…por mais rigorosos que sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e
profundos que sejam os tratados que descrevem certos aspetos do seu
funcionamento, há uma dimensão da consciência que continua a escapar aos
melhores (cientistas e filósofos). Esta dimensão é precisamente o segundo nível
do problema identificado por Chalmers, o do “hard problem” da consciência.
Porque, admiravelmente, os neurocientistas são capazes de explicar em parte o
modo como o nosso cérebro identifica, por exemplo, uma face conhecida na rua,
descrevendo os processos neurológicos que lhe estão subjacentes; conseguem,
inclusive, descrever com algum sucesso o modo como o cérebro transforma os
dados dispersos que penetram pelos sentidos em padrões informacionais
reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na prática, traduz a informação
que vem do mundo (por ex., através da luz), em padrões, imagens mentais,
ideias, perceções. Aquilo que eles falham permanentemente em explicar, a “pedra
no sapato” da investigação neurocientífica, é o modo como somos capazes
de percecionar subjetivamente esses
padrões, essas imagens mentais, essas perceções. Dito de outro modo, a questão
fundamental é a de saber como é
possível a experiência subjetiva, que na prática significa perguntar
acerca da natureza da mente e do mental, da sua qualidade (qualia).” (O bosão
da consciência, Blog Casa do Ser, § 33)
Talvez esteja na altura,
portanto, de uma revolução coperniciana, também no domínio das neurociências,
que reabilite outras hipóteses, como a da alma, que possam desbloquear este
problema.
Entendo aqui a “alma” num
sentido minimalista, isto é, não no sentido de um órgão, substância ou entidade
metafísica que substitua o cérebro e as suas incontornáveis funções de
processamento cognitivo e sensorial, que hoje é mais do que inquestionável que
têm origem nos processos neurológicos; não uma alma no sentido tradicional,
isto é, origem do pensamento, da vontade, da inteleção, dos sentimentos,
emoções e perceções, mas tão-só a base, digamos, metafísica, onde todos estes fenómenos produzidos pelo cérebro se
refletem, ou seja, adquirem o seu caráter
subjetivo. Cito de novo o já referido trabalho (Idem, § 21): “O ser consciente é, pois, reflexivo, porque
dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao
fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai
no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por
mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a
perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a
produz para outrem.”
Não nego, por conseguinte, como
não podia negar face à vanguarda da investigação neurocientífica, que o cérebro
- provavelmente o mais complexo de
todos os sistemas biológicos e não-biológicos conhecidos -, seja de facto a
origem de todas as funções neurológicas e cognitivas: intelectuais, emocionais,
percetivas, volitivas, não-volitivas, etc. Mas não necessariamente da consciência
que sustenta e torna possível a experiência subjetiva.
Definiria
“alma” como uma espécie de “essência senciente”, por natureza contínua, eixo
fundamental, núcleo duro da identidade ou “si”, em cuja órbita se constrói o
“eu”, que é a identidade sociocultural. O “si” não é o “eu”, pois este último
pressupõe um conjunto de dimensões socioculturais e socio-identitárias, que
dizem respeito à história e projeto de vida do sujeito (o que chamo de
“identidade projecional” – sonhos, aspirações, objetivos de vida, etc.). O “si”
é o alicerce, a medula do “eu”, a própria condição de possibilidade de qualquer
identidade individual, porquanto seja a base de toda a reflexividade consciente
– aquilo que outrora designei por “espetador”, que situado no mais profundo e
misterioso reduto da toda a consciência individual, se constitui como
retaguarda, consumidor final, observador primeiro e derradeiro dos eventos
electroquímicos ou neurológicos do cérebro na sua face mental ou subjetiva -
precisamente o factor que faz toda a diferença entre o simples computador, que
não é consciente ou sensível aos produtos e padrões informacionais que produz,
por não possuir tal “retaguarda”, e o ser consciente, o homem ou o animal, que
não só possui dentro da sua caixa craniana o mais complexo e potente computador
biológico, mas é consciente e sensível,
de um misterioso ponto de vista subjetivo, aos seus produtos de ordem
cognitiva, pois é dotado de interioridade.
Espetador fugidio, sem
localização definida ou definível, fisicamente falando; natureza misteriosa,
“olho do espírito”. Acerca da sua natureza podem elocubrar-se várias teorias,
inclusive aquela que aventei na aventura especulativa que constituiu o trabalho
anterior já por duas vezes citado (e que não passa disso mesmo, uma aventura
especulativa como qualquer outra…).
Fundamento do “eu”, dizia, pois
toda esta esfera socio-identitária que constitui o “eu”, sendo por natureza concetual
e simbólica, seria insustentável sem a dimensão da interioridade ou
subjetividade consciente, que por sua vez seria impossível sem a base ou
fundamento de toda a experiência subjetiva, logo de toda a consciência – a dita
“alma” ou “essência contínua senciente”, que porventura será independente do
cérebro físico, ou situar-se-á num plano ontológico paralelo.
Eis algumas das razões porque
defendo que a consciência não pode ser explicada sem o recurso a esta realidade
fundamental. Embora a neurociência e as ciências cognitivas estejam perto de
explicar os processos neurofisiológicos por via dos quais o cérebro produz
perceções - que não são senão imagens e padrões mentais de carácter
informacional -, está por resolver o fulcro do problema, que tem que ver com o
modo como estas perceções – que na origem não são senão eventos electroquímicos
no cérebro – são interpretadas subjetivamente,
isto é, adquirem o caráter muito real de eventos mentais percecionáveis de um ponto de vista subjetivo, no
contexto de uma interioridade consciente. Como é que um padrão electroquímico
despoletado no cérebro de um dado sujeito que, por exemplo, se queima ao
colocar as mãos no fogo, pode ser efetivamente sentido como dor para esse mesmo sujeito, de um modo absolutamente
único e intransferível? Sim – como explicar que esse padrão originalmente
neuroquímico possa adquirir esse caráter mental de “ser-para-alguém”? Este,
parece-me, é o fulcro do problema. Sendo verdade que o nosso mundo mental é um
fluxo interminável de diferentes perceções, imagens e eventos mentais vários,
fruto de uma máquina biológica que evoluiu precisamente para ser capaz de a
todo o momento extrair informações acerca do mundo interior e exterior, pensando-o
e interpretando-o sensorialmente, é também verdade que existe um denominador
comum a todas as perceções: são sempre “nossas”, confundem-se com a identidade
do próprio sujeito que as perceciona; quer dizer, a experiência subjetiva não
se distingue do próprio sujeito da experiência; um não se entende sem o outro,
e, em boa verdade, não existe sem o outro.
Como, aliás, o próprio “eu”, ou seja, a identidade social ou sociocultural, não
existe fora do sujeito que, subjetivamente,
a interpreta e pensa conceptualmente, sendo que a
identidade enquanto constructo conceptual e simbólico é simultaneamente uma
perceção ou evento mental complexo (a “ideia de si”) e o próprio “eu”, ao qual
o sujeito se refere quando fala ou toma consciência de si próprio. Graças,
portanto, à experiência subjetiva, a identidade adquire o seu carácter
“reflexo”, ou seja, torna-se identidade de
e para alguém; torna-se em ideia autorreferencial, porquanto continuamente
parte de si para voltar a si – torna-se “eu”, portanto.
É
como se a experiência subjetiva ocorresse num estranho e misterioso reduto da
mente, onde os padrões informacionais electroquímicos misteriosamente se
transmutam em eventos mentais, perceções, sentimentos. É
como se, num qualquer “centro” mental ou fisiológico ocorresse uma comunicação,
um contacto ou sobreposição total que permite uma continuidade entre realidades de
naturezas distintas, um contacto integral, ponto por ponto, como numa
plasmagem, entre uma realidade de ordem fisiológica e outra não-fisiológica, em
que a informação electroquímica da primeira fosse transferida à segunda numa
forma, digamos, imaterial, ou da
matéria, seja ela qual for, que constitua o propriamente “mental” ou
“consciente”. Recorrendo à terminologia kantiana relativamente à chamada
“aperceção transcendental”, seria como se uma “unidade de perceção” contactasse
integralmente, ponto por ponto, com uma “unidade de consciência”, numa sobreposição
total entre ambas, só isso explicando que uma dada perceção – por ex., a visão
de uma árvore à minha frente, a partir da janela – seja percecionada como uma totalidade, isto é, uma visão integrada
à qual não falta nenhuma parte da qual eu possa ter diretamente consciência,
nas atuais condições de distância, visibilidade, etc. Escreve Kant: “…as diversas
representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas
representações minhas se
não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O
pensamento de que estas representações dadas na intuição me pertencem todas equivale a
dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo menos posso fazê-lo” (KANT, Crítica
da Razão Pura, B133-B134, pp. 132-133)
E repare-se que esta questão da
“unidade de consciência”, unificadora e integradora dos fluxos electroquímicos
do cérebro em totalidades designadas perceções, é tão mais misteriosa quanto as
neurociências ainda não foram capazes de determinar, de forma exata e
conclusiva, no cérebro como no restante sistema nervoso, nenhum “centro” onde a
referida transmutação físico-mental possa ocorrer. Não se conhece nenhum centro
fisiológico onde possam convergir os vários fluxos informacionais de caráter
neuro-electro-químico que se processam em sectores diferentes do cérebro, de
modo a formar uma totalidade, um padrão informacional complexo que possa ser
interpretado mentalmente como uma perceção complexa. Pois, como é sabido, a
formação de uma perceção complexa envolve o contributo de vários sentidos e
processos cognitivos, que ocorrem em “clusters” neuronais situados em pontos
diferentes do cérebro. Por exemplo: tenho a perceção muito evidente, coerente e integrada, de que estou neste momento sentado numa
cadeira de madeira um pouco dura, a escrever ao computador, em minha casa,
sobre uma mesa de madeira com uma textura muito polida. Pela janela do meu lado
direito entra a luz do sol; posso ouvir a música de fundo que toca na playlist
do meu computador, e os meus dedos a bater nas teclas. Tenho na boca o sabor do café
que acabei de beber e cuja chávena se encontra ao meu lado direito, sobre a
mesa, e no nariz ainda um pouco do seu cheiro delicioso. Em resumo, é este o
ambiente que me rodeia e onde me posso neste momento situar, de forma
consistente e integrada - enfim, una,
porquanto essa unidade que caracteriza a minha perceção complexa seja o reflexo
ou projeção da “unidade de consciência” que me constitui.
Ora, todos os estímulos que
constituem esta perceção complexa são processados e transformados em padrões
electroquímicos em diferentes setores do cérebro, a saber: os táteis são
processados na área somatossensória, localizada no lobo parietal; os auditivos,
no córtex auditivo, localizado no lobo temporal; os visuais, no lobo occipital,
localizado na parte de trás do cérebro. Não obstante a distância que separa os
vários setores, a experiência subjetiva é sempre una, e não fragmentária e
parcial. O fluxo de dados percecionais, embora alimentado por correntes de
informação sensorial e cognitiva de natureza distinta e com origem em pontos
diferentes do cérebro, é misteriosamente unificado
por um laço que supera e suprime essa distância; um laço que supera o
meramente o local; um laço, digamos, não-local.
Mesmo que esse centro físico bem determinado no cérebro existisse, continuaria ainda por explicar o intrigante processo segundo o qual, nesse local em particular, o físico se transformaria em mental, quer dizer, o meramente electroquímico em experiência subjetiva consciente; o como e também o porquê desse local em específico possibilitar essa estranha alquimia que permite a introdução de um conjunto de fenómenos fisiológicos e electroquímicos observáveis e mensuráveis objetivamente, no mundo não observável e não objetivamente mensurável da subjetividade, onde só o sujeito é senhor da sua interioridade. Se, por outro lado, esse centro físico não existe, resta-nos conjeturar, por exemplo, que o cérebro é ele todo, integralmente, um “grande centro”, onde a realidade, digamos, imaterial da consciência (isso a que decidi chamar “alma”) coexiste paralelamente à realidade material, fisiológica do cérebro, talvez mesmo de um modo fundamental, celular ou quântico, permitindo uma imediata apreensão e unificação, a todo o momento, dos vários fluxos de informação sensorial e percetiva processados em setores situados em áreas diferentes do cérebro; ou seja, permitindo que diferentes processos sensoriais e cognitivos se transformem, imediatamente, em perceções complexas cujo caráter essencial é o de serem percecionadas de um ponto de vista subjetivo, de forma unificada e integrada.
Web/Bibliografia
-
O
bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o
“hard problem” da experiência subjetiva - Blog Casa do Ser, link: http://casadoser.blogspot.pt/2015/07/o-bosao-da-consciencia-uma-proposta.html.
-
KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, trad. de Manuela Santos e
Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.