Anúncios google

sexta-feira, agosto 28, 2015

Atravessar o deserto


Eis o que significa atravessar o deserto: enfrentar os próprios fantasmas, os próprios medos, os pensamentos e as mágoas do que fizemos ou não fizemos, os arrependimentos; vencer todos esses “Ciclopes e Lestrigões” (como dizia Kavafys no Ítaca) que todos temos dentro de nós, e teimamos em lançar à nossa frente no caminho, e que frequentemente nos paralisam. O medo que nos inspiram limita-nos, faz-nos desistir, impede-nos de andar para a frente e de realizarmos a nossa plena humanidade (cuja outra face é a nossa plena divindade, ambas sendo uma e a mesma coisa). Todos os Cristos e Budas que se lançaram no deserto – fosse de um modo literal ou por via de uma ascese, que sempre significa um internamento em si próprio - não tinham outra intenção senão a de habituarem os seus olhos espirituais à escuridão, para que, paradoxalmente, estes pudessem ter um vislumbre dessa luz plena e muito subtil que constitui o nosso ser profundo, a nossa consciência, e que participa do Verbo (Logos), i.e., da realidade metafísica, ontológica do mundo, a “Verdade” ou “Lei cósmica”. Mergulhar no deserto tem o sentido de uma dúvida radical e hiperbólica à la Descartes: esperar que do “nevoeiro” e da aridez informe do nada emirja uma evidência, uma verdade tão sólida e profunda que não possa ser “nadificada” pelo rolo compressor da dúvida. Neste caso, como em qualquer caso, a verdade e certeza que se espera que emirja, ao mergulhar no deserto, é a da própria Alma, que se espera que tome o lugar do nada lançando a sua luz. É uma profunda e radical busca pela autenticidade, pela essência.

É Heraclito que diz: “Os limites da alma não é possível descobri-los, mesmo percorrendo todos os caminhos, tão profundo é o Logos que a sustenta.”

Se o silêncio, a escuridão, a solidão, o vazio, a falta de estímulo sensorial, não te perturbam, ou te perturbam menos, então já venceste. Habituaste-te à Presença inefável da tua consciência, que tudo vê, bem enraizada na retaguarda do teu ser. Já não és escravo de sensações, e nem sequer de ideias, porque te descobriste superior a ambas; já não és guiado ou coagido por elas a ir por aqui ou por ali, escravo de apetites ou ilusões, mas és tu que as guias e pastoreias. Tornaste-te realmente no pastor dos teus pensamentos, no senhor da tua vontade, porque a cada momento reconheces que não és exclusivamente o que pensas ou sentes, nem sequer a soma de todos os teus pensamentos e sensações, mas a consciência que pensa ou sente, situada sempre aquém e além deles, e a eles sempre infinitamente superior. Essa consciência que podes entrever imperfeitamente na retaguarda da tua mente, como um espelho que tudo reflete, nem sequer se confunde com a tua ideia de “eu”, mas ultrapassa-a ao ponto de essa Presença te parecer – pelo menos no início -, estranha a ti próprio, alheia, como se fosse um “outro eu” que coexistisse contigo na mesma pessoa. Depois de te habituares a essa Presença, tornas-te nela, e desta feita já não é ela que te parece estranha, mas o próprio “eu” pessoal e identitário que te habituaste a alimentar ao longo da tua vida como sendo tu, a quem dás um nome e que reconheces ao espelho – descobres que esse “eu” não é senão uma fachada, uma máscara, uma existência apenas nominal. A tua consciência é muito mais vasta que os limites do teu eu nominal, embora não possas negar ao teu eu nominal a sua missão, e a sua verdade.


Dois "eus"


É como se em mim convivessem dois "eus". Um "eu" criando, abrindo caminho, iluminando o mundo para que nele o outro "eu" viva. O primeiro - o meu "eu" mais profundo e sólido, a fonte da minha consciência - cria, ilumina, abre perante mim o mundo, no qual o segundo - o meu "eu" mais imediato e mutável, a minha vontade livre, o meu ego pessoal e identitário - vive, age, se movimenta, existe. O primeiro "eu" a-presenta-me o mundo, mostra-me o caminho; o segundo "eu" a-presenta-se ao mundo, percorre o caminho. Um inconsciente, subterrâneo; outro consciente, superficial. Os dois são eu.

O "primeiro eu" aparece primeiro, "a priori", antes que o ego tome consciência de si próprio, antes da emergência de qualquer forma de identidade, personalidade, símbolo, conceito ou significado - logo, é inclusive anterior ao próprio mundo, na sua forma existencial, pois ainda não emergiu o exist(ente). Nesse primeiro e fugaz momento que precede o ego, a consciência é apenas luz, pura presença, onde não há forma ou individuação. E, no princípio, o ego que emerge, ainda embrionário, não faz mais do que "pairar sobre a superfície das águas", ainda incapaz de distinguir na homogeneidade branca da luz da consciência qualquer espécie de forma ou individuação. Ainda não há mundo, pois não se consumou ainda a cisão entre sujeito e objeto; ainda não se "separou a luz das trevas", nem se rasgou o "firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras").

Cedo passamos a existir na esfera existencial das coisas individuadas (formas, objetos, conceitos, ideias), cujo centro absoluto é o nosso ego (mais uma forma), esquecendo rapidamente da luz que o precede, que ilumina os objetos, que lhes dá ser (como rapidamente nos esquecemos do ar que respiramos). Somos por vezes levados a acreditar, como idólatras, que essas formas e objetos é que são "reais", que o mundo que existimos enquanto indivíduos é tudo o que existe, subsistindo por si próprio.(sim, é mesmo "mundo que existimos", e não "em que existimos", pois é o existente que existe o mundo, no sentido em que o mundo "é existido" pelo existente, i.e., é uma projeção, extensão ou exsudação de si próprio).

Mas esquecemo-nos rapidamente que sem consciência não há mundo; ou seja, que é através da experiência subjetiva - cuja qualidade é ideal ou mental (como quem diz, imaterial) -, que a concretude material do mundo chega a nós, ou toma forma no nosso espírito. Dito de outra forma: a primeira, mais imediata, evidente e "real" de todas as realidades é a consciência. Todas as outras realidades que constituem a esfera do nosso mundo, da nossa realidade existencial, devem a sua luz à luz da consciência, em maior ou menor grau. São, a bem dizer, realidades mediatas, em segunda-mão, pois só a consciência é "prima facie". E o que é realmente intrigante é que a fonte dessa luz está radicada bem no interior de nós, sendo talvez o aspecto mais importante e que melhor define a nossa natureza, a natureza de todos os seres sencientes, e a própria vida enquanto fenómeno.


E saber olhar, meditar sobre o que se está a ver (sejam objetos ou ideias), não é mais do que captar o seu caráter fundamental de "pura presença", que é sobretudo a consciência atravessando a forma, reconhecendo-se a si própria nela, e por isso dissolvendo temporariamente a distinção entre sujeito e objeto, restaurando a visão plena da consciência de si para si.

segunda-feira, julho 20, 2015

O bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o “hard problem” da experiência subjetiva




O mistério da consciência – nota introdutória

           
            O filósofo norte-americano David Chalmers divide o problema da consciência em dois níveis[1]. O primeiro, o dos “easy problems”, tem que ver com o funcionamento dos processos neurológicos relativos à cognição, perceção, emoção, etc. Isto é, tem que ver com a compreensão do funcionamento da “maquinaria” biológica que faz do cérebro um extraordinário mecanismo de processamento de informação, reconhecimento de padrões, conhecimento, perceção, etc. A neurociência têm atalhado estas questões com bastante sucesso nas últimas décadas, e não é de todo implausível que a maior parte delas venha a ser resolvida satisfatoriamente nos próximos dez, quinze anos. Este sucesso deve-se sobretudo ao progresso significativo das tecnologias de análise e mapeamento ao serviço da investigação neurocientífica. Aliás, como se sabe, foi posto em marcha recentemente um projeto de mapeamento total do cérebro para os próximos anos (o “BRAIN Initiave”[2]) apadrinhado pelo governo norte-americano, que visa precisamente fazer um mapa completo da anatomia do cérebro e resolver – ou lançar as bases para a resolução – de muitas destas questões.
            De facto, por mais rigorosos que sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e profundos que sejam os tratados que descrevem certos aspetos do seu funcionamento, há uma dimensão da consciência que continua a escapar aos melhores (cientistas e filósofos). Esta dimensão é precisamente o segundo nível do problema identificado por Chalmers, o do “hard problem” da consciência. Porque, admiravelmente, os neurocientistas são capazes de explicar em parte o modo como o nosso cérebro identifica, por exemplo, uma face conhecida na rua, descrevendo os processos neurológicos que lhe estão subjacentes; conseguem, inclusive, descrever com algum sucesso o modo como o cérebro transforma os dados dispersos que penetram pelos sentidos em padrões informacionais reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na prática, traduz a informação que vem do mundo (por ex., através da luz), em padrões, imagens mentais, ideias, perceções. Aquilo que eles falham permanentemente em explicar, a “pedra no sapato” da investigação neurocientífica, é o modo como somos capazes de percecionar subjetivamente esses padrões, essas imagens mentais, essas perceções. Dito de outro modo, a questão fundamental é a de saber como é possível a experiência subjetiva, que na prática significa perguntar acerca da natureza da mente e do mental, da sua qualidade (qualia).
Pois, apesar da reconhecida importância da descrição e explicação dos processos fisiológicos que estão na origem da cognição, memória, reconhecimento de padrões, etc., não se pode negar que o cérebro não se limita a ser uma máquina de processamento de informação, mera exterioridade toda ela circuitos, módulos e redes neuronais. Existe uma realidade por detrás de tudo isso que não podemos ignorar ou “atirar para debaixo do tapete”, porque todos a experimentamos a cada momento de uma forma intensa e vívida, e sem ela não seriamos diferentes do nosso computador pessoal, ou, em verdade, de um simples microondas. É a experiência da interioridade, ou, se quisermos, da subjetividade, esse espaço interno, irredutível e intransmissível onde decorre toda a nossa vida mental, cognitiva, emocional, em suma, significante para nós. Se duas pessoas olham para a mesma árvore, é certo que ativam os mesmos circuitos neuronais responsáveis pela cognição e perceção (ativação que pode ser visível através de um scan), mas cada um chamará sua à perceção que tem da árvore, porque cada um a ela terá acesso no reduto intransmissível da sua subjetividade (algo que está completamente inacessível à tecnologia de rastreio, por mais desenvolvida que seja). Se duas pessoas se queimam com um fósforo, o mesmo acontece: cada um sentirá a dor respetiva de um modo único, subjetivo, pessoal, intransmissível.
            Toda a perceção interna ou externa (i.e., de estados internos como a tristeza e a alegria, ou resultantes de estímulos provenientes dos sentidos) tem uma componente subjetiva. Com efeito, se quisermos ser rigorosos, não há perceção externa, porque toda a perceção é interna, isto é, ocorre no espaço de uma interioridade subjetiva. E na perceção interna, enquanto experiência subjetiva, reside o núcleo do problema da consciência.
            Insistimos neste ponto: a descrição fisiológica do modo como o cérebro produz imagens mentais, padrões, ideias, não explica esse “ver” subjetivo (chamemos-lhe assim), que constitui a perceção interna acessível, de forma privilegiada, exclusivamente aquele sujeito que habita uma dada interioridade. Um supercomputador é também capaz de processar informação e produzir “imagens”, mas estas não são percecionadas subjetivamente por ele. É preciso que outrem que não o computador interprete essas imagens projetadas num ecrã, um outrem dotado de uma subjetividade.
Entendemos, por conseguinte, que o desbloqueamento do impasse do problema da consciência - que algumas das melhores mentes consideram pura e simplesmente irresolúvel, e outras resolúvel a seu tempo, mas ainda fora do alcance dos nossos instrumentos técnicos e teóricos[3] - implica uma mudança de paradigma que não atribua a emergência da consciência exclusivamente aos processos bio-fisiológicos do cérebro, mas, quem sabe, a dimensões do mundo quântico ainda desconhecidas. Neste trabalho apresentamos uma hipótese que vai nesse sentido, ainda que de um modo preliminar e, admitimos, bastante especulativo. Limitamo-nos, em parte, a insistir na proposta já feita por alguns físicos, entre os quais Roger Penrose[4], de que o mundo quântico talvez possa ter um papel muito importante – senão mesmo fundamental – na resolução do “hard problem” da consciência.
Além do mais, partilhamos também da visão de Chalmers[5] segundo a qual o fenómeno da consciência deve cada vez mais ser entendido como algo que está de algum modo inscrito no tecido fundamental do próprio universo, uma espécie de força ou grandeza tão fundamental como, por exemplo, a gravidade, o electromagnetismo ou até o espaço e o tempo, e não como um simples subproduto biológico do cérebro, sem grande mistério.
Não dispomos, nem do conhecimento, nem da evidência, nem dos necessários instrumentos científicos e matemáticos para sustentar cientificamente a nossa proposta. Este é um artigo, antes de mais, especulativo, filosófico. O progresso do conhecimento também se faz de imaginação, e por vezes, tal como propunha Einstein, é preciso recorrer a uma nova forma de pensar, se um problema persiste em não se deixar solucionar recorrendo aos velhos modos. Por vezes é preciso dar um passo atrás, ver a “big picture”, e aceitar que as respostas podem vir precisamente de onde menos se espera.
Ainda que a hipótese que propomos seja falsa, ou apenas incompleta, deve pelo menos ser atendida por quem tem o necessário conhecimento e instrumentos para a avaliar e testar. Este artigo foi escrito por filósofos (passe a imodéstia), e não por físicos. Se for verdadeira, total ou parcialmente, melhor. Se não for, como é extremamente provável que não seja, terá pelo menos sido mais um degrau no processo de tentativa e erro através do qual progride o conhecimento. É, todavia, segundo entendemos, dever de quem pensa, pensar, e pensar diferente quando necessário, mesmo correndo o risco de errar, mesmo correndo o risco de perder as boas graças do seus pares, o seu estatuto, a sua reputação. Tal como defendia Popper, o progresso científico tem paralelo com a evolução biológica: são mais os erros, as conjeturas que se vieram a revelar falsas, do que aquelas que se vieram a revelar verdadeiras, do mesmo modo que foram mais os erros e os ramos sem saída da evolução biológica do que os sucessos. Todavia, sem esta imensidão de erros e falsas partidas nenhum progresso seria possível, ainda que o preço a pagar tenham sido gerações inteiras de esforços e sacrifícios nunca devidamente recompensados.

           
As forças fundamentais do universo – partículas, campos quânticos, e interação entre eles


São conhecidas quatro forças fundamentais no universo, cada uma delas dispondo de uma partícula que a transporta e transmite: a força electromagnética é transmitida pelo fotão, a força gravitacional pelo gravitão (ainda por descobrir), a força nuclear forte pelo gluão, e a nuclear fraca pelas partículas W e Z. Estas partículas-transporte de força (force-carrier particles) são normalmente incluídas na categoria dos “bosões”.[6] Acresce a existência do chamado “bosão” ou “campo” de Higgs, que confere massa à maioria das outras partículas pelo modo como interage com elas, e está presente em toda a parte no universo.
Com efeito, cada uma destas partículas-transporte de força (ou “partículas mensageiras”, como também são chamadas) deve ser vista, não no sentido clássico, como uma espécie de berlinde de matéria em dimensão micro, mas como um “quantum” de energia, isto é, como uma certa quantidade, muito pequena, de energia pura, inserida num campo energético mais vasto que podemos designar por “campo quântico”. Tal como explica Gribbin (1986),

“A energia surge em unidades definidas, chamadas quanta, cada uma das quais com uma quantidade definida de energia, ou de massa. As partículas são pedaços energéticos do campo, confinados a uma certa região pelo princípio da incerteza[7].” (211)

Neste contexto, cada campo de força, seja gravitacional, nuclear ou electromagnético, não é senão um campo de energia onde ocorrem flutuações e trocas energéticas constantes através de pequenas unidades ou “pacotes” energéticos que se movimentam ao longo de “linhas de força”[8]. Cada um desses “pacotes” é uma partícula, como um fotão, um electrão, um gravitão, ou um gluão, mas pode também ser visto como uma onda, dado que cada unidade definida de energia possui o seu próprio campo quântico, as suas flutuações energéticas próprias, e só pode ser convenientemente descrito através de uma “função de onda”[9]. É daí que vêm a chamada “dualidade onda-partícula” que caracteriza o mundo subatómico, e que está na base da física quântica.
O que nos importa aqui sublinhar, acima de tudo, é que existem várias espécies de campo de força, que são, na prática, campos de energia ou “campos quânticos”, que estão por toda a parte no universo, constituídos por unidades definidas, “quantas” de energia às quais se convencionou chamar de “partículas”, mas que também podem ser vistos como “ondas”, dado o seu comportamento flutuante e fundamentalmente imprevisível. Com efeito, podemos pensar na totalidade do universo como “uma multiplicidade de campos e partículas a interagirem” (Id.: 208).
De facto – e este parece-nos um dos pontos mais relevantes -, nós próprios e os restantes corpos materiais do universo, todos constituídos por partículas atómicas e subatómicas, pedaços de energia, campos quânticos, interagimos com todas e cada uma das forças que constituem a trama fundamental do cosmos, de tal modo que se assim não fosse, seriamos de certo muito diferentes daquilo que somos. As forças cósmicas que melhor conhecemos – gravitacional, electromagnética, nuclear forte e fraca, campo de Higgs -, não se manifestam por si só, mas pelo modo como interagem e influenciam o comportamento e estrutura da matéria, não apenas a nível microscópico mas também macroscópico. Pois vejamos: a luz propaga-se através do campo electromagnético (cuja partícula-transporte é o fotão). Mas, apesar de a luz estar por toda a parte, em vários comprimentos de onda, só somos capazes de ver a luz do dia se a nossa retina – ou a matéria atómica e subatómica da nossa retina – estiver no caminho da luz, e for por isso capaz de interagir com o campo electromagnético (logo, com as partículas-onda fotónicas). Só somos capazes de ouvir as pessoas que falam connosco ao telemóvel, do outro lado da linha, porque existe um dispositivo dentro do telemóvel que é sensível, isto é, interage com o campo hertziano (uma outra forma de campo electromagnético que está por toda a parte) que nós, seres humanos, nos tornamos capazes de manipular de forma a comunicarmos a grandes distâncias, através da transmissão electromagnética de “pacotes de informação”.
Analogamente, é através da interação com o campo gravitacional – dos mais ubíquos do universo – que a matéria se agrega para formar estrelas e todos os restantes corpos astronómicos, que os planetas orbitam as suas estrelas respetivas, e que nós próprios somos exatamente aquilo que somos, com a nossa estrutura corporal adequada à medida exata da força da gravidade terrestre, graças à qual nós e tudo ao nosso redor – até o próprio ar que respiramos - se mantém bem preso ao chão. Parafraseando Greene (2004:255), estamos todos imersos num mar de campos gravitacionais. Em boa verdade, estamos imersos numa plêiade de vários campos de força, com os quais interagimos permanentemente sem nos darmos conta, e sem os quais jamais seriamos aquilo que somos, nem sequer o próprio universo seria o mesmo. A nossa própria história evolutiva – e a de todos os seres vivos conhecidos – foi decisivamente influenciada pela interação com as várias forças cósmicas, na medida em que constituíram e constituem o contexto físico em que a evolução se deu e dá ainda. Tudo o que somos, bio-fisiologicamente falando, diz muito acerca do que o próprio universo é.  
O campo de Higgs (também designado por “bosão de Higgs”) é um outro exemplo de um campo de força com uma importância fundamental e, segundo se crê, verdadeiramente ubíquo (há quem o chame de “oceano de Higgs”, por permear todo o universo como uma espécie de “relíquia gelada” dos primeiros segundos do Big Bang[10]). Segundo se crê, é através da interação, a um nível quântico bastante profundo, com o campo-partícula de Higgs (o tal “bosão”), que todas as outras partículas subatómicas adquirem massa, e, por inerência, toda a matéria. Por conseguinte, uma partícula, como, por exemplo, um electrão ou um protão, têm tanto mais massa quanto maior for a sua interação com o campo de Higgs; isto é, dito de outra forma, quanto maior é a resistência que o campo de Higgs oferece ao movimento dessa partícula. Outras partículas, como o fotão por exemplo, pura e simplesmente não têm massa, visto que são tão pequenas que passam despercebidas ao campo de Higgs, i.e., simplesmente não interagem com ele.[11]
A nível macroscópico, todos podemos de facto “sentir” o campo de Higgs, em especial quando experimentamos um movimento de aceleração (como quando o carro arranca subitamente e ficamos com as costas pregadas ao assento, ou quando fazemos uma curva apertada na estrada e somos como que projetados na direção do movimento). Na verdade, o campo de Higgs pode ser uma forma de explicar a lei da inércia, segundo a qual todos os corpos tendem a resistir às mudanças de estado (do repouso ao movimento, do movimento ao repouso).[12] Quanto maior a massa do corpo (ou seja, a sua quantidade de matéria), maior é a resistência que oferece, o que não admira porque mais matéria significa mais partículas, logo, mais resistência oferecida pelo campo de Higgs a nível quântico.[13]




Um bosão da consciência? – o fenómeno da experiência subjetiva como emergência de uma possível interação entre a matéria do cérebro vivo e um campo quântico (ainda) desconhecido

A tese que aqui propomos é a de que a consciência, em particular enquanto experiência subjetiva (awareness) da qual todos os seres vivos sencientes são dotados, é não apenas produto emergente do cérebro vivo, mas também de uma força cósmica ainda por explicar e descrever, que se comporta de modo semelhante às forças já descritas, i.e., através de partículas, campos quânticos ou campos de força. Mais concretamente, propomos que existe uma espécie de “bosão” ou campo quântico que, em relação com a matéria do cérebro vivo, faz emergir a consciência ou vida mental, tornando possível a experiência subjetiva nos seres vivos. Propomos que existe uma espécie de partícula-transporte da consciência semelhante às que assistem às outras forças, mas muito mais subtil. Esta partícula ou campo, ao interagir com o cérebro, tornaria possível a experiência subjetiva, condição indispensável à existência de uma interioridade mental.
Não pretendemos com isto defender uma versão maximalista de um qualquer tipo de “substância” dotada de todas as faculdades intelectuais, cognitivas e emocionais do sujeito consciente (muito semelhante, em todos os aspetos, a uma “alma”), não deixando qualquer margem de participação às funções bio-fisiológicas do corpo em geral e do cérebro em particular na realização destas faculdades. Não defendemos nenhuma espécie de teoria da “encarnação” da consciência num corpo físico, visto apenas como um continente ou depósito dessa substância, passivo, tornando irrelevante o cérebro e as suas funções. Propomos, sim, uma versão minimalista tendente a explicar, exclusivamente, a realidade da experiência subjetiva, partindo do pressuposto inegável de que o cérebro, enquanto complexo biológico – na verdade o mais complexo dos mecanismos biológicos conhecidos – é de facto a origem de todas as funções neurológicas conhecidas: intelectuais, cognitivas, emocionais, voluntárias e involuntárias, na linha do que nos mostra a vanguarda da investigação neurocientífica.            Admitimos, inclusive, o pressuposto fisicalista do no brain, never mind (sem cérebro não há mente). O que negamos, por outro lado, é que as funções fisiológicas do cérebro vivo sejam o único factor responsável pela consciência, i.e, que esta seja um produto exclusivamente bio-fisiológico. Noutras palavras, propomos que sem esta interação misteriosa entre a matéria do cérebro vivo e o que nós designamos por “bosão da consciência” (algo que só um mecanismo da complexidade de um cérebro pode conseguir) a um nível quântico bastante profundo, simplesmente não há vida mental nem consciência (logo, no conscienton, never mind).
Propomos que esta interação do cérebro – ou de algo que emerge do cérebro biológico vivo – com o nível quântico fundamental desta partícula-campo que está por toda a parte, semelhante, pelo menos nesse aspeto, ao bosão-campo de Higgs – é o que torna possível a emergência da experiência subjetiva no domínio de uma interioridade mental (não apenas subjetiva mas pessoal, se falamos de seres intelectualmente mais complexos tais como o homem). Como se o cérebro – repetimos: o mais complexo e extraordinário mecanismo biológico conhecido – fosse capaz de “sintonizar-se” com um determinado nível quântico fundamental, inscrito na trama mais básica do tecido cósmico, associando-se a ele para produzir consciência, vida mental, subjetividade. A possibilidade dessa interação diferenciá-lo-ia, por ex., de uma simples máquina de processamento de informação (vulgo computador), que por muito sofisticada e rápida que seja a fazer cálculos, não pensa, não sente, em resumo, não tem vida mental ou interioridade; ou, para utilizar a terminologia filosófica em voga, não tem qualia.
Não defendemos com isto que uma máquina não possa vir a adquirir a sofisticação suficiente para produzir ou simular pensamentos, sentimentos e emoções, mas não terá de facto interioridade, vida mental, qualia, enquanto não for capaz de “sintonizar-se” a nível quântico com esta partícula ou campo quântico de energia (o tal hipotético “bosão da consciência”), algo que só um mecanismo da complexidade de um cérebro pode fazer, através de um processo ainda desconhecido.
Embora o ser consciente seja dotado, tal como um computador, de um hardware, ou seja, de um mecanismo capaz de processar e armazenar informação (o cérebro), indispensável à sua vida mental, é além do mais sensível à informação produzida, sendo capaz de visualizar mentalmente uma imagem, uma ideia, um significado; é também capaz de percecionar subjetivamente uma sensação física (dor, quente, frio, etc.), tudo no espaço irredutível de uma interioridade, uma espécie de dimensão imaterial constituída exclusivamente de estados mentais, na qual o fenómeno electroquímico só pode existir na sua face mental; qualquer estado mental (ideia, imagem mental, padrão) ao projetar-se no espaço mental encontraria eco numa retaguarda, um limite que não é indiferente à ideia projetada, condição sine qua non da reflexividade. O ser consciente é, pois, reflexivo, porque dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a produz para outrem.
 Ora, esta subtil “retaguarda” consciente que, segundo sugerimos, torna possível a subjetividade, é constituída pelo que designo por núcleo quântico da consciência, que talvez se comporte como uma espécie de “campo de força”, que, tal como qualquer outro campo – p. ex. os campos gravitacional, nuclear forte e fraco, electromagnético ou o campo de Higgs – resulta do intercâmbio de “quanta” ou partículas de energia. Estas partículas, embora ubíquas, embora presentes, tal como supomos, em toda a parte no universo, só poderiam efetivamente influenciar sistemas físicos de grande complexidade, tais como cérebros, ao ponto de, interagindo com eles, fazer emergir a experiência subjetiva nos seres vivos. Como se, em termos quase metafóricos, a consciência existisse como potência no tecido cósmico mais fundamental, aguardando que certos sistemas atingissem suficiente complexidade para com ela interagir e fazer emergir sujeitos conscientes.
Deste modo, sugerimos que consciência não é produzida, nem apenas pelo cérebro físico (pressuposto fisicalista), nem apenas por uma espécie de “alma” dotada de todas as faculdades da consciência, mas antes por uma relação misteriosa, ao nível quântico, entre o cérebro e um determinado campo de força ou quântico, análogo ao de Higgs mas mais subtil, ou então com uma espécie de “partículas-transporte da consciência”, análogas aos fotões ou gravitões, existentes a um nível quântico muito subtil do tecido cósmico. Esta consciência não estaria toda dada já no tecido cósmico, a priori constituída, sendo apenas uma potência aberta, uma possibilidade, tal como o campo de Higgs não é a própria massa já constituída, mas a condição de possibilidade para que a massa exista nos corpos materiais.
Seria - não é demais repetir - como se o tecido mais fundamental do cosmos contivesse um potencial de consciência, que só seria atualizado em condições muito particulares, isto é, a níveis muito elevados de complexidade, ao nível dos que permitem a vida e a emergência de mecanismos biológicos altamente complexos, como o cérebro. Assim, certas possibilidades inscritas a níveis quânticos fundamentais do tecido cósmico iriam sendo atualizadas à medida que o próprio cosmos se fosse complexificando, e encontrando, na sua própria matriz, os germens de novas emergências, no decorrer do processo de evolução e expansão.
Isto conferiria, não o negamos, um caráter teleológico à evolução do universo, como se este evoluísse em direção à concretização de certos objetivos, inscritos a priori, enquanto potências, na trama fundamental do cosmos, numa espécie de evolução por desdobramento de certas potências básicas (entre as quais, a consciência).
Eis, em síntese, a ideia fundamental deste artigo: a consciência enquanto experiência subjetiva é um produto emergente da relação entre o cérebro e o nível quântico das partículas ou campos quânticos (os “conscientões”). Este nível quântico seria mais subtil, i.e., situar-se-ia a um nível mais fundamental que o nível das quatro forças físicas conhecidas, ou seja, gravidade, forças nucleares forte e fraca, e electromagnetismo. Um nível tão fundamental que só um dispositivo biológico suficientemente complexo poderia com ele interagir de modo a produzir uma nova espécie de força – a consciência (tal como, à guisa de analogia, os efeitos da gravidade, a mais fraca de todas as forças conhecidas, só se manifesta significativamente em corpos de grandes dimensões)[14].  
Vejamos: não pretendemos que a consciência ou vida mental subjetiva exista como que de modo independente, fora do sujeito ou dispensando um, a priori já totalmente constituída na sua estrutura fundamental, a esse nível quântico, como uma espécie de “homúnculo” cósmico, do mesmo modo que a massa ou gravidade não estão constituídas a priori, como forças, nas suas partículas ou campos respetivos. Todo o campo de força se manifesta pelo modo como interage com a matéria: a massa emerge da relação entre certas partículas atómicas de maior dimensão, como protões e neutrões, com o campo de Higgs; a gravidade – supõe-se - emerge do intercâmbio de gravitãos entre os átomos da matéria (quanto mais massa ou quantidade de matéria tem um corpo, mais forte é a sua força de atracão gravítica); de modo análogo, também a consciência, isto é, a condição de possibilidade da experiência subjetiva emergiria, supomos, da relação entre a matéria neuronal (p. ex. a nível atómico ou subatómico), de apenas um módulo ou cluster neuronal localizado, ou da totalidade do sistema neuronal, e as tais partículas ou campos quânticos que designamos por “conscientões”.
A questão que se coloca é a seguinte: será implausível que um campo de força ainda desconhecido seja parcialmente responsável pela emergência da consciência enquanto experiência subjetiva? Propomos, precisamente, que a resposta é sim, e que portanto o cérebro será de algum modo afetado por essa força fundamental, tal como qualquer corpo, de modo análogo, é afetado pela gravidade, ou um simples íman é afetado pela força electromagnética, ou o núcleo atómico se mantém unido através da força nuclear forte.
A visão fisicalista convencional defende que a consciência é um produto exclusivo do cérebro, uma emergência que resulta de processos neuro-biológicos misteriosos que, apesar de toda a nossa sofisticação tecnocientífica, continuam a escapar-nos. Daí o filósofo Chalmers se ter referido ao problema da consciência como um “hard problem”.
Não obstante todas as dificuldades, este paradigma da consciência que tudo reduz ao fisiológico mantém-se vigente como uma ortodoxia materialista entre a comunidade de investigadores. O impasse atual na resolução do “hard problem” da consciência talvez exija uma mudança de paradigma que abra a porta a outras possibilidades, por mais estranhas que possam parecer. Não dizemos que um planeta produz a sua própria gravidade, mas antes que a matéria de que é constituído é afetada pelo campo gravitacional, sendo que a face visível dessa influência é, por ex., a queda de um corpo, as órbitas dos planetas, ou a deflexão da luz de uma estrela distante; não dizemos que um corpo produz a sua própria massa, mas antes que as partículas atómicas e subatómicas que o constituem são afetadas por outra força mais fundamental – o campo de Higgs; analogamente, será assim tão implausível que a matéria do cérebro seja afetada por uma força que lhe é exterior, inscrita de algum modo a nível quântico, sendo a face visível dessa influência precisamente a consciência enquanto experiência subjetiva?
 Mas como? Poderíamos supor que os átomos do cérebro intercambiassem entre si estas partículas-transporte, através de um campo de força que abrangesse toda a estrutura neuronal do cérebro, uma espécie de “rede quântica”[15] de tal forma complexa e ao mesmo tempo subtil, abrangente e forte ao ponto de ser capaz de superar a dispersão fragmentária dos fenómenos neurológicos, unindo-os num todo quase indestrutível, uma “unidade de consciência” que poderíamos designar de “proto-sujeito”, por se tratar do substrato quântico de toda a experiência subjetiva, e consequentemente a base da própria subjetividade. Esta “rede quântica”, que designamos por núcleo quântico da consciência, seria o ponto de origem do continuum do “si”, ou seja, o eixo irredutível, uno que concretiza aquela cisão entre consciência e mundo que caracteriza o “despertar” subjetivo do sujeito, condição fundamental de todo o pensar e todo o conhecer. Seria, para usar uma metáfora cinematográfica, como a tela onde toda a ideia, todo o padrão informacional produzido pelo cérebro se projetaria, e seria efetivamente percecionado subjetivamente como mental. A tal tela que permite o estar-desperto (being-aware) que caracteriza a consciência, desperto ao mundo e também para si próprio, sendo capaz de auto-referência, de consciência de si. Sem esta espécie de “embasamento” consciente, toda a perceção se dissiparia num nada, pois não existiria uma “unidade de consciência” que unisse os vários fragmentos de imagens, perceções, representações mentais, numa única perceção dotada de uma “unidade de representação” que a consciência reconheceria como sua por com ela se identificar completamente.
O filósofo alemão I. Kant, na Crítica da Razão Pura, escreveu, muito a propósito, que “…as diversas representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas representações minhas se não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O pensamento de que estas representações dadas na intuição me pertencem todas equivale a dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo menos posso fazê-lo”[16].
Ou seja, não poderíamos, por exemplo, ter perceção visual subjetiva de uma árvore à nossa frente, se a imagem mental produzida pelo nosso cérebro não encontrasse pela frente uma consciência que, precisamente por ser unificada (um “eu penso” para falar como Kant), confere “unidade de consciência” aos diferentes fragmentos de perceção que constituem a imagem mental da árvore: “Se qualquer representação particular fosse completamente alheia às demais, se estivesse como que isolada e separada das outras, nunca se produziria alguma coisa como o conhecimento, que é um todo de representações comparadas e ligadas.”[17]
Com efeito, esta “unidade de consciência” ocorre espontaneamente (isto é, imediatamente, inconscientemente), através daquilo que Kant designa por “unidade originariamente sintética da aperceção”[18], de tal modo que o resultado desta síntese está depois em condições de ser apresentado à consciência como algo unificado: uma imagem mental, uma ideia, um conceito. Dito de outro modo, só há perceção subjetiva, conhecimento, quando aos processos cognitivos que produzem perceções, imagens mentais, padrões, se associa um “espetador”, essa consciência unificada, esse “eu penso” disposto a receber esses produtos, a tomar consciência deles na sua unicidade (que é, basicamente, reflexo da própria unicidade da consciência do “espetador”). Tal como diz Kant, “…a recetividade, só unindo-se à espontaneidade, pode tornar possíveis conhecimentos.”[19]
Só é possível a perceção subjetiva (e, por consequência, o conhecimento), se todos os padrões, ideias, imagens mentais produzidas pelo cérebro se submeterem à consciência unificada, de tal modo que ela própria, isto é, o “eu penso” se possa identificar com essa perceção, encontrar-se nela, não só no seu todo mas em cada uma das suas partes, de tal forma que o sujeito lhe possa chamar de sua (“A minha dor”, “O meu sentimento”; “A minha memória”). O reconhecimento imediato, espontâneo, da unidade de uma perceção por parte do sujeito espetador, é simultaneamente o reconhecimento da unidade do próprio espetador, refletida na unidade da perceção. Uma dor percecionada de forma fragmentada, parcialmente, não é uma dor minha. Tem de haver uma sobreposição total, imediata, entre a consciência unificada do “espetador” e os estados mentais, ou não pode haver experiência subjetiva. Sobreposição que implica contacto, cuja natureza constitui o grande mistério da experiência subjetiva: contacto entre o quê, ou entre o quê e quem, e como? Duas substâncias à la Descartes? Apenas uma? Qual a natureza da consciência unificada, do “espetador” privilegiado?
Com efeito, cremos que existe um facto que concorre a favor do caráter quântico desta “consciência unificada” (o reduto do “espetador”), condição da própria unidade de qualquer espécie de experiência subjetiva (a tal “rede quântica” que propomos). Pois vejamos: a produção cerebral de qualquer padrão ou imagem mental (sensação, perceção visual, etc.) implica a ativação de várias áreas ou “clusters” neuronais separados, em simultâneo, cada um responsável por diferentes funções cognitivas. Isto é, apesar de áreas diferentes, distantes entre si, serem responsáveis pela produção de uma mesma imagem mental, a experiência subjetiva dessa mesma imagem é sempre una, pelo que seria de esperar que fosse possível localizar no cérebro uma espécie de “centro da experiência subjetiva”, onde todos os processos concorrentes na produção de um conteúdo mental convergissem, num ponto bem determinado, para dar origem à experiência subjetiva de uma perceção unificada. Ora, tanto quanto se sabe, esse centro não existe. Como é então possível que uma imagem mental seja percecionada subjetivamente como uma unidade irredutível, se os processos que lhe dão origem ocorrem em pontos separados do cérebro, e não existe um local onde estes possam convergir? É como se, na verdade, não existisse um centro bem localizado para a experiência subjetiva, ou como se este “centro” estivesse em toda a parte e em parte nenhuma do cérebro, isto é, como se fosse não-local. Isto é, se o nosso cérebro for colocado sob um scan, precisamente enquanto ouvimos a 9ª sinfonia de Bethoven, veremos diversos “flashes” em pontos separados do cérebro, uns responsáveis pela audição, outros pelo reconhecimento de padrões, etc., enquanto, ao mesmo tempo, sem qualquer interregno ou lapso temporal significativo, experienciamos subjetivamente, unificadamente, a própria melodia. Ou seja, a imagem mental é como que unificada permanentemente, mas de uma forma não-local, sem centro definido. Como bem se sabe, a não-localidade é um aspeto da realidade quântica que tem sido corroborado uma e outra vez por diversas experiências e observações, que apesar de extremamente contra-intuitivo, parece fazer parte do trama mais fundamental do cosmos, contrariando os fundamentos da visão clássica da física.
Há algo que para nós é uma evidência: a intensidade e vivacidade da experiência subjetiva, seja qual for o seu conteúdo cognitivo, é justificação mais do que suficiente para a crença na realidade deste fenómeno. Poderíamos inclusive falar, neste caso, numa crença fundacional, auto-evidente, talvez a única que exista. De todos os fenómenos do universo, este é talvez aquele do qual temos mais certezas e garantias empíricas, precisamente porque somos dele testemunhas imediatas e privilegiadas. Mais até do que a chuva, o fogo, ou a explosão de supernovas, porque para cada um destes fenómenos há sempre a possibilidade da alucinação, do sonho, do erro de perceção, do erro de cálculo.[20] Não devemos, por isso, negar o carácter cosmológico do fenómeno da consciência, remetendo-o para um mero subproduto biológico, sem mais, procurando ignorar que este também deve caber numa “teoria de tudo”, por ser precisamente o mais vívido dos fenómenos que podemos experienciar, e inclusive a nossa condição de possibilidade para experienciar seja o que for.
A perceção subjetiva imediata, mesmo do fogo ou da chuva sonhada, é uma realidade inegável, porque a sua negação implicaria a negação de toda e qualquer experiência subjetiva, mesmo da experiência do próprio pensamento sobre a possibilidade da negação. Repare-se: mesmo que negássemos um “eu penso”, uma identidade como algo de auto-evidente, não poderíamos negar a experiência subjetiva enquanto tal, porque se, como Kant admite, podemos de algum modo “deduzir” a unidade do “eu penso” da unidade de uma dada perceção (que é, no fundo, uma racionalização a posteriori a partir do imediato de uma perceção subjetiva), a partir de um esforço racional para compreender a origem e razão de ser dessa unidade, não podemos fazer o inverso, isto é, deduzir da unidade abstrata do “eu penso” a própria perceção subjetiva. Uma experiência não pode ser inferida a partir de um conteúdo cognitivo, de premissas num raciocínio, porque experiência subjetiva e conteúdo cognitivo têm naturezas (qualidades) distintas. Uma experiência simplesmente é, ou seja, vale qualitativamente pelo que é. A razão é que, quanto à experiência subjetiva, estamos a falar, não de um objeto, não de um conteúdo cognitivo, mas de uma experiência qualitativa básica que vale por si própria, pela experiência que suscita, isto é, não pode de modo algum ser inferida a partir de um raciocínio, de um conteúdo cognitivo: ou se experiencia ou não se experiencia. Calculo mentalmente 20 x 20, e concluo que é igual a 400. Embora a evidência deste resultado seja um produto lógico, a experiência subjetiva que dele tenho, enquanto imagem mental, não o é, mas constitui ainda assim a condição básica da própria experiência da evidência lógica, o seu substrato. A sua qualidade, enquanto experiência subjetiva, situa-se a um nível diferente que o da quantidade, isto é, do que o próprio conteúdo cognitivo do pensamento, tal como o número de passos que dou enquanto ando, a intenção ou a rapidez com que o faço, é qualitativamente diferente do chão que serve de base ao meu andar, independentemente de como o faço, ou com que objetivo. Todavia, sem o chão não haveria andar. O mesmo, diríamos nós, se passa com o “embasamento” (o tal “espetador”) que torna possível a qualidade de uma experiência subjetiva, independentemente do seu conteúdo.
Descartes, depois de colocar tudo em dúvida (sentidos, razão, mundo) concluiu que só uma coisa era indubitável – o facto de pensar, e de o fazer enquanto sujeito que pensa (“Cogito ergo sum”). De facto, negar que se pensa é negar a própria possibilidade de se pensar a negação do pensamento, porque ao se pensar a negação já se está a pensar. Mas, mesmo que fossemos mais fundo e admitíssemos que, na verdade, não pensamos de todo (porque, suponhamos, há a possibilidade de um “génio maligno” nos fazer acreditar que pensamos por nós próprios quando estamos simplesmente a ser manipulados), é absolutamente inegável que, em qualquer momento do pensamento, possuímos experiência subjetiva de qualquer coisa, de um modo imediato, pessoal e intransmissível.
Isto é: podemos ser em tudo enganados, manipulados, como no exemplo do génio maligno; pode haver algo ou alguém que se substitua a nós em todos os nossos processos de pensamento, perceção, etc. Mas ninguém nos pode substituir na experiência subjetiva. Essa é só nossa. Ninguém pode, neste sentido, substituir o espetador que se encontra no reduto fundamental da nossa consciência. Dito de outra forma, as funções neurológicas podem ser simuladas (p. ex., num computador), mas a experiência subjetiva, enquanto tal, não pode jamais ser simulada. Ou existe ou não existe porque, enquanto tal, só pode existir para o sujeito que a experimenta.
Esta irredutibilidade é que nos deve levar de facto a pensar se a consciência não deve ser tratada, cada vez mais, como expressão de uma realidade mais básica e fundamental, situada ao nível quântico, ao invés de uma mera emergência de segundo ou terceiro grau de processos bio-fisiológicos, na prática reproduzível artificialmente a longo prazo, desde que se possua a “maquinaria” certa.
Sem este “embasamento consciente” que emerge do núcleo quântico da consciência, também a capacidade de deliberar e decidir, ou seja, o exercício efetivo de uma vontade, fica comprometido, porque toda a deliberação implica abstração, reflexão, exercício livre de um pensamento que livremente analisa, isto é, fragmenta, escrutina, e também sintetiza, tudo fenómenos conscientes que só podem ocorrer se, algures no reduto mais fundamental da mente, existir um observador. Ora, este observador é antes de mais, como já vimos, um espetador, porque na realidade a sua função não é nem pensar, nem deliberar, nem decidir.
Como já dissemos, a partícula-campo do “conscientão”, esse tal reduto quântico fundamental do cosmos (o “bosão da consciência”) não pensa, não delibera, não decide, não tem vontade, em suma, não é ativo (pelo menos em si próprio). Não é um sujeito a priori inscrito na trama mais básica do universo, mas apenas uma força, uma espécie de energia muito subtil que, por alguma razão, é capaz de se relacionar com o cérebro vivo de modo a fazer emergir a consciência. A sua função, repetimos, é a de fazer emergir o espetador, tornando, ao mesmo tempo, viável e útil o próprio cérebro enquanto máquina de processamento de informação, reconhecimento de padrões, pensamento, emoção, vontade.
Esta força quântica, se assim lhe quisermos chamar, ao fazer emergir a experiência subjetiva, confere, de facto, autonomia ao cérebro, porque se não existisse ninguém a “observar” o que acontece no espaço mental imaterial, se não existisse esta fugidia figura do espetador privilegiado, origem e fundamento do qualia, as múltiplas possibilidades e funções de que dispõe a complexa máquina cerebral não poderiam cumprir-se em toda a sua extensão. Tal como acontece num supercomputador, por mais sofisticado que seja. Enquanto a inteligência artificial não for capaz de simular este “embasamento”, e de o integrar num hardware, jamais um computador será um sujeito. Dito de outro modo, enquanto a inteligência artificial não for capaz de criar um hardware suficientemente complexo para interagir com este campo quântico fundamental, caracterizado por partículas ou “quantuns” de energia, mais subtil que a própria gravidade, dificilmente será possível produzir robôs com vida mental.
Mesmo que tenhamos dúvidas quanto à sua natureza, não podemos ter dúvidas de que é absolutamente necessário que exista um espetador, porque sem ele nenhuma perceção é possível, e sem perceção nada daquilo que é típico de um sujeito é possível: nem conhecimento, nem pensamento, nem vontade. Sem um espetador, isto é, sem um “consumidor final” recetivo aos produtos do cérebro (imagens mentais, representações, padrões, sensações, emoções, etc.), a hipercomplexidade do sistema neurológico não faz qualquer sentido. Porque esta hipercomplexidade não é um fim em si própria, mas está ao serviço de uma subjetividade.  
Processamento de informação sem espetador seria como um computador pessoal a funcionar numa sala vazia, sem ninguém por perto para interpretar a informação projetada no ecrã.
Podemos, naturalmente, de acordo com a visão fisicalista tradicional, supor que este espetador é também ele um produto do cérebro, mais uma função que se desenvolve paralelamente a todas as outras funções neurológicas. A questão-chave está em saber se efetivamente o cérebro, não obstante toda a sua complexidade, suporta sozinho a produção, simultaneamente, da função do espetador – i.e., da subjetividade que permite a experiência subjetiva – e de todas as outras funções mentais, cognitivas, emocionais, etc., através das quais ele traduz o mundo em conhecimento. Uma outra questão-chave está em saber - caso isso não seja assim mas antes do modo como propomos - o que torna o cérebro particularmente sensível ao tal nível quântico fundamental onde se situa o hipotético “bosão da consciência”, essa espécie de partícula-campo situada a um nível quântico bastante profundo.
Voltamos a insistir neste ponto: este “espetador” não é um ego, não se confunde com o meu eu, a minha identidade, a minha “alma”. Ele é a condição de possibilidade, aberta pela relação entre o cérebro e o campo quântico muito subtil das partículas ou “quantuns” da consciência (os “conscientões”), de todo o funcionamento autónomo normal do cérebro, o ingrediente sem o qual este não cumpre a sua real função, função esta que é a razão de ser de toda a sua maquinaria biológica, que é a de fazer emergir uma nova dimensão de realidade que não encontra paralelo em nenhuma outra parte do mundo físico – a vida mental ou experiência subjetiva.
À luz desta proposta, podemos especular que o cérebro, com toda a sua maquinaria, todo o seu hardware biológico, com todas as suas funções cognitivas, percetivas, de processamento e armazenamento de informação, tem como principal função a de “traduzir” o mundo, isto é, transformar aquilo que lhe chega, os sense data, os inputs, em informação passível de ser interpretada e utilizada por uma subjetividade, que não terá necessariamente a mesma origem bio-fisiológica que as restantes funções cerebrais.
Talvez a emergência da consciência enquanto experiência subjetiva seja a expressão de um modo de o universo se conhecer a si próprio, ou melhor, de “regular” a sua própria evolução no sentido de uma maior complexidade, como se procurasse ver-se “desde de dentro”, experimentar-se a partir de diversos pontos de vida constituídos a partir de diversas singularidades subjetivas. Se pensarmos que a consciência é um fenómeno real, incontornável, e que cada um dos seres vivos sencientes e conscientes é, também, universo ou parte dele, então talvez esta ideia não pareça assim tão descabida ou despropositada. Acaso será provável que um universo tão complexo, do qual conhecemos pouco mais de 4%, não tenha sido capaz de criar as condições para se conhecer ou “regular” a si próprio através de múltiplas formas de vida e consciência? Não implicaria isto já, de algum modo, um potencial de consciência inscrito na trama mais básica do cosmos, à espera de se atualizar a partir de um determinado nível de complexidade da matéria, sendo a biológica, sem sombra de dúvida, de todas a forma de matéria mais complexa que se conhece?

                       
Bibliografia

KANT, Immanuel (1997), Crítica da Razão Pura, trad. de Manuela Santos e Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Webgrafia
LEWIS, Tania (2014, 5 de junho), “Ambitious Brain-Mapping Project's Science Goals Revealed”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/46143-brain-initiative-unveils roadmap.html?cmpid=514627_20140607_25507726.    

Lewis, Tânia (2013, 31 de maio), “Will We Ever Understand Consciousness? Scientists & Philosophers Debate”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/37056-scientists-and-philosophers-debate-consciousness.html.


THAN, Ker (2005, 8 de agosto), “Why Great Minds Can't Grasp Consciousness”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/366-great-minds-grasp-consciousness.html.








[1] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[2] Sigla para Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies. Ver Lewis, Tania (2014, 5 de junho).
[3] O filósofo britânico Colin McGinn é um exemplo dos que defende a insolubilidade do problema da consciência, por uma questão de incapacidade da consciência em compreender-se a si própria. Neurocientistas como Christof Koch, por outro lado, defendem que o problema é solúvel no quadro do experimentalismo neurocientífico, pelo que a sua visão se mantém num registo fisicalista convencional (Ver artigo da Live Science sobre o debate acerca da natureza da consciência que decorreu durante o “World Science Festival” em 2013, que reuniu os painelistas Colin McGinn, Christof Koch, Nicholas Shiff e outros [Lewis, Tânia, 2013, 31 de maio]).
[4] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[5] Ver Ibidem.
[6] A propósito das forças e correspondentes partículas-transporte, ver Greene (2004: 254-256) e CERN, “The Standard Model” (2014).
[7] O princípio de incerteza tem que ver com o carácter indeterminado e probabilístico da mecânica quântica. Cada partícula-onda pode ser descrita segundo uma “função de onda”, que mais não é senão um campo de probabilidades acerca da sua posição num dado momento. Não é possível saber com absoluta exatidão a posição em que certa partícula vai estar num dado momento partindo de certas variáveis como a sua posição anterior, o momento angular ou a velocidade, porque uma vez medida uma dessas variáveis, as outras tornam-se impossíveis de medir. Não é possível saber exatamente para onde uma partícula se dirige, nem que caminho seguiu para passar de A a B (ver Gribbin, 1986:198). Ademais, “(…) Podem medir com precisão a quantidade de movimento de um electrão, mas então a sua posição é indeterminada. O simples acto de atribuir uma localização específica a um electrão introduz uma perturbação incontrolável e indeterminada no seu movimento, e vice-versa. Além disso, esta restrição incontornável ao nosso conhecimento do movimento e localização do electrão nãoé simplesmente o resultado de uma deficiência experimental: é inerente à própria natureza.” (Davies e Brown, 1991:18).
[8] Este conceito foi inventado por Faraday para designar um aspeto da constituição dos campos magnéticos e electromagnéticos, mas foi posteriormente alargado a todos os tipos de campo (ver Gribbin, 1986: 210-211).
[9] Introduzir aqui explicação acerca função de onda
[10] Ver Greene, 2004:256-257
[11] “If a particle moves smoothly trough the Higgs ocean with little or no interaction, there will be little or no drag and the particle will have little or no mass. The photon is a good example (…). If, to the contrary, a particle interacts significantly with the Higgs ocean, it will have a higher mass.” (Id.:263).

[13] Para ilustrar este ponto, Greene sugere o seguinte ao leitor: “Take your arm and swing it back and forth. You can feel your muscles at work driving the mass of your arm left and right and back again. If you take hold of a bowling ball, your muscles will have to work harder, since the greater the mass to be moved the greater the force they must exert.” (Id.:260-261)
[14] Usar ex. do papel electrificado livro Física Quântica e cosmologia
[15] A imagem que melhor pode ilustrar esta rede quântica será a de um campo de força, análogo ao campo electromagnético que possibilita a propagação da luz, ou ao campo gravitacional que envolve a Terra, ou de um campo magnético que une dois ímans. Neste caso, não sendo o cérebro o produtor deste “campo de consciência” – do mesmo modo que não é a Terra a produtora do seu campo gravitacional (embora produza um campo electromagnético) -, podemos especular que o cérebro, pela sua configuração e estrutura bio-fisiológica singular, seria capaz de interagir com este campo de força a um nível quântico básico. Propunhamos, muito audaciosamente, que o tecido fundamental do espaço-tempo onde nos movemos é, ele próprio, a téla onde permanentemente o cérebro projeta todas as suas imagens mentais, de tal modo que quem vê não somos de facto nós, mas o próprio universo na sua forma singular de se ver a si próprio desde dentro.
[16] KANT, B133-B134, 1997, pp. 132-133
[17] Ibidem, p. 133
[18] Ver Idem, §16-17, pp. 131-138
[19] Idem, B134, p. 133
[20] Em boa verdade, nem relativamente à experiência subjetiva de outrem podemos estar absolutamente certos, não tanto como em relação à nossa própria. Esta constatação está na base do famoso problema cético das outras mentes, que naturalmente não pretendemos tratar aqui. Admitamos, como hipótese de trabalho, que a experiência subjetiva é um fenómeno que existe para além da minha própria mente, para não cairmos no solipsimo. Seja como for, ainda que qualquer um de nós, eu próprio ou o leitor, fossemos os únicos a possuir vida mental, ainda assim seria pertinente tentar explicar a sua origem, dada a radicalidade e incontornabilidade deste fenómeno.  

quinta-feira, maio 21, 2015

A "mónada" humana - em cada homem a humanidade



Cada homem contém em si toda a humanidade. De facto, se pensarmos que cada homem/mulher é expressão particular de um código genético comum a todo o género humano (genoma); que cada homem/mulher contém em si traços comuns a toda a espécie, que refletem precisamente a história evolutiva da espécie em geral (5 dedos das mãos, um neocórtex cerebral, bipedismo, etc.), torna-se evidente que o geral está imbuído no particular, o Todo na Parte. É aquela ideia ontológica-metafísica da mónada, de que o Todo é, ao mesmo tempo, totalidade em extensão e compreensão; isto é, o Todo não apenas está por toda a parte absolutamente, como está, absolutamente, em cada uma das suas partes. 

Veja-se o simples átomo: ele não é uma expressão parcial das leis do universo. Ele não depende, para ser átomo, de outros átomos. Ele é, por natureza, absoluto, no sentido em que todas as leis do universo estão nele contidas e nele se exprimem absolutamente: força electromagnética, força nuclear forte, força nuclear fraca. Todas estas forças, no seu conjunto, não vêm de fora do átomo, mas emergem da sua própria constituição, brotam misteriosamente da relação entre as partículas que o constituem (electrões, protões, neutrões, etc.), como se já estivessem contidas, como possibilidades, na "medula" ontológica dessas partículas. O Universo que podemos ver - e o que não podemos ver - está por toda a parte, mas tudo aquilo que ele que é "extensivamente" brota, "compreensivamente", dos seus constituintes mais básicos e fundamentais. Se há alguma permanência nas leis do universo, isto é, se aquilo que é verdade aqui, em termos físicos, é verdade na galáxia vizinha, ou nos confins do universo conhecido, é porque o que é verdade para um átomo da minha pele é verdade, fundamentalmente, para qualquer átomo, aqui ou a biliões de biliões de quilómetros daqui. Do mesmo modo, a uma escala menor, o que é verdade para uma rosa que brota na minha roseira, é verdade para uma rosa que brota numa roseira na China, ou na Papua Nova Guiné. 

Esta constância que pervade o universo como um Todo só é possível porque cada uma das suas partes, cada uma das suas partículas ou complexos de partículas, cada um dos "tijolos da criação", contribui para ela com a mesma "solidez" física, com a mesma "absoluteidade" ontológica, sendo cada um uma expressão absoluta, total - embora particular - das leis do universo, ou pelo menos contendo em si, radicalmente, o potencial a partir do qual todas essas leis - a bem dizer, um novo universo - podem a qualquer momento emergir. Um átomo, só para tomar o exemplo mais óbvio de um "complexo de partículas", contém em si, a bem dizer, o potencial para um novo universo, sendo ele próprio, pelo modo como os seus constituintes se relacionam entre si para fazer emergir as leis físicas, um universo por direito próprio, bem radicado na fonte de onde brotam todas as leis e toda a criação - a insondável e sempre fugidia realidade última; a natureza fundamental, fundacional, absoluta do real. 

No fundo, cada átomo, cada partícula, sendo expressão particular de um absoluto, é idêntico à semente, ao grão de pólen, à célula animal ou vegetal, que embora constituindo uma parte muito ínfima, quase negligenciável, da planta, da flor ou do animal, contêm em si o potencial para a emergência de um novo indivíduo completo, total, absoluto à sua maneira, igual, no fundamental, a qualquer outro indivíduo da sua espécie, predecessor ou contemporâneo. E é assim que o Universo progride e avança, de acordo com o poema de Alberto Caeiro: sendo todo em cada coisa, pondo quanto é no mínimo que faz. 

E é assim que cada homem se faz realmente Homem. Sendo expressão digna de si, da sua dignidade ontológica, que assenta no facto de que ele é, não apenas um indivíduo, um cidadão, uma identidade particular; não apenas uma mera função social/profissional, uma simples peça de engrenagem, mas a expressão viva, encarnada, total e absoluta à sua maneira, da Humanidade, mas também, e de forma mais geral e fundamental, da Vida, do Universo, do Real. 

segunda-feira, abril 13, 2015

Demasiado sofrimento



Há demasiado sofrimento no mundo. A maior parte dele está completamente longe da nossa vista, quando mais do nosso coração. De vez em quando passamos por um velho mendigo na rua, ou uma mulher, ou uma criança triste, e ao vê-los prostrados e reduzidos, ao nível do chão, sujos e maltrapilhos, somos tocados pela sua miséria. Quando tal acontece pergunto-me em silêncio "O que comeu este homem hoje?", "Que espécie de enxerga o espera à noite?", "Que abrigo da noite fria?", "Que abrigo da solidão"?, "Que espécie de desespero?"... E faço-o do alto da minha condição, erecto e sadio, estômago cheio e já à espera da próxima refeição, dinheiro no bolso, uma casa, um quarto e uma cama para voltar depois das agruras do dia, uma palavra amiga e familiar e uma refeição quente...e uma espécie de esperança que me ilumina o hoje e o amanhã.

Há demasiada dor, demasiado desespero. Agora mesmo, há demasiada gente doente à espera de morrer numa cama de hospital, para quem a noite, a solidão e o silêncio têm o sabor da desesperança e o odor da morte que espreita. Nenhum futuro, nenhuma esperança de salvação. Homens, velhos, crianças. Há demasiada gente sem voz por essas periferias escusas do mundo das quais ninguém quer saber. Gente sem lei, homem ou instituição que a proteja, que a represente. Gente exilada, refugiada sine die por causa de guerras e conflitos que não provocou, que não pediu (falo eu, o exilado/refugiado por capricho e opção...). Gente que trabalha em antigas e novas formas de escravatura, de sol a sol, tratados como mercadoria, maltratados, espoliados, explorados, meras máquinas sem rosto, números que não merecem sequer um olhar de humanidade - e tudo isto para ganharem uma côdea de pão que não lhes chega para matar a fome, nem a sua nem a dos seus filhos, cujo choro esfaimado são impotentes para calar, de dia e de noite.
Há demasiada gente presa, alguns por coisa nenhuma, outros apenas por pensar em voz alta, outros porque ousaram dizer o que outros preferem calar, por medo ou comodismo. Há quem adormeça e acorde todos os dias num eterno crepúsculo, que viva cada hora - sempre demasiado longa - imerso no frio da solidão e de um medo que é terror e não desata. Há demasiada gente que não tem para onde ir à noite, depois das agruras do dia; que não tem onde descansar, lugar a que chamar lar, onde pousar a cabeça, onde aquecer o corpo e alma e encontrar uma presença amiga, que às vezes nem precisa de falar mas só estar. E mesmo entre aqueles que têm para onde ir e que não estão sós, há quem tenha casa sem ter lar. Desses, há quem só queira ter paz, viver com quem não lhe bata, quem não o atormente, quem não o prenda, quem não o use, quem não o subjugue, quem não o mate. Já não se pede que o ame, mas apenas que o liberte, que o respeite. Há quem só queira que o pouco lar que tem não se transforme num inferno - já lhe basta, tantas vezes, o inferno que encontra na rua, no trabalho, na vida.

Há demasiada gente, mesmo entre os que "têm tudo", que sofre como se não tivesse nada. Presos por ilusões, dependências e más escolhas que fizeram, porque pensavam que era nelas, nas dependências que criaram e más decisões que tomaram, que se encontrava a sua frágil felicidade. Lançaram-se a si próprios numa teia da qual já não conseguem libertar-se, num labirinto do qual já não sabem sair.

Penso também em todos aqueles que todos os dias, várias horas por dia, consentem em deixar à porta dos seus trabalhos e ocupações (muitas vezes detestáveis, inumanas) a sua soberania pessoal, como se deixa o casaco ou o guarda-chuva, para se tornarem parte de uma engrenagem que prontamente os esmaga à mínima hesitação ou sinal de inadaptação, ou se por acaso decidem ser diferentes e afirmar o seu próprio e humano ritmo. Na maior parte do tempo não somos senhores de nós próprios, abdicamos da nossa vontade e liberdade para mendigarmos umas horas de gozo, umas quantas horas para podermos sentir o pulso do nosso "eu", para vivermos um pouco no espaço da nossa intimidade e dos nossos sonhos, umas poucas "folgas" da pressão da roda dentada para que sintamos a agradável sensação de sermos senhores de nós próprios e do nosso destino. Pena que na maior parte das vezes essa sensação seja apenas como um sonho de Cinderela, sem consequências práticas para a nossa vida, sem que sejamos capazes ou sequer queiramos, nessas horas de soberania, fazer mais do que sonhar a nossa própria liberdade, lançar reais sementes de projeto, construir um futuro mais de acordo com o que realmente somos e queremos realmente ser.

Há, pois, que tecer o futuro, um que esteja de acordo com o sentimento de autenticidade e soberania pessoal que todos encontramos nas poucas horas de liberdade que a máquina nos consente, essa máquina/sistema que joga tão bem com as nossas necessidades e dependências - e que nós permitimos, porque embora muitas das necessidades sejam reais, outras são completamente inventadas, e nós consentimos e absorvemos, como bons e obedientes consumidores que não estão realmente dispostos a perder em coisas, posses e bens materiais para ganhar em liberdade, espírito, soberania pessoal, cultura.
Mas há sofrimentos e dores muito mais profundos, e é bom que os tenhamos sempre em mente, em nome da consciência e da verdade. Neste exato momento, há quem tenha perdido um filho(a), um irmão(ã), um pai, uma mãe, um amigo(a), seja num acidente de carro, de aviação, seja levado por uma doença, seja num atentado terrorista, seja na sequência de um obus disparado numa qualquer zona de guerra por este mundo fora - apenas mais um "dano colateral" de um conflito onde se jogam mais altos interesses, que raramente são os do povo, que é sempre, mesmo na vitória, aquele que mais perde. Falo por mim: leio a notícia do jornal, a pequena breve ou primeira página que seja, e passo à frente. Não me interessa; não me diz respeito. Nem cai o céu nem o mundo pára por causa disso. Se fosse comigo... haviam certamente de cair os sete céus, o carmo e a trindade; e a indiferença do mundo iria doer-me como mil punhais.
Se por um momento calarmos o nosso ego e nos dispusermos a ouvir, é certo que ouviremos os gritos dessa mãe, desse irmão, desse pai, desse amigo; de todos aqueles que, agora mesmo, num instante imprevisto, perderam aquilo que tinham de mais precioso e clamam por justiça divina. E ouviremos esses gritos multiplicados por mil, ou por milhões, e o sol de primavera que agora mesmo nos ilumina com a cor da alegria (o mesmo sol que ilumina todos esses que sofrem para além de qualquer palavra) já não nos parecerá tão jovial e alegre.

A verdade é que há demasiada dor no mundo, e nós indiferentes, anestesiados, até que nos calhe a nós. Há quem diga, para não ter de se incomodar, que não há nada que possamos fazer quanto a isso, ou que o que quer que façamos é pura e simplesmente irrelevante (o que para mim é mais grave). A miséria material e moral, a doença, a dor, são tudo fatalidades.

Quanto à miséria moral e material, basta dizer que é urgente abandonarmos uma série de preconceitos bem mais enraizados do que possamos imaginar, segundo os quais 1) a miséria é uma punição sobre aqueles que não se "souberam governar" ou adaptar às exigências da sociedade, do mercado e do mérito; 2) que a miséria é uma "condição de nascimento", isto é, de que quem nasce miserável, ou é originário de um meio ou classe de indigentes, há de ser miserável toda a vida, ou tem como que o gosto pela miséria, ou "predisposição" para tal; 3) que a miséria faz parte do modo como o sistema económico funciona e se comporta, e portanto é condição necessária ao progresso económico das sociedades. Ora, estou de acordo que a desigualdade seja uma condição necessária à verdadeira justiça social, se a entendermos como justiça distributiva baseada no trabalho e no mérito. Naturalmente, quem trabalha mais e melhor merece receber mais e melhor; quem tem mais qualificações merece ser mais bem pago do que quem tem menos qualificações, etc. Todos podemos, em princípio, concordar com isto. Mas isto está muito longe de legitimar o darwinismo social, isto é, o pressuposto de que a vida em sociedade se deve basear na "lei do mais apto", ao ponto de se considerar justa a exclusão de milhões de "inadaptados", fracos e frágeis, sejam velhos e doentes que não podem trabalhar, sejam indivíduos que, por qualquer circunstância, não tiveram acesso a uma educação ou formação adequada, seja quem, por causa de um negócio falhado ou por não conseguir encontrar trabalho regular, se vê de repente atirado para as malhas da pobreza e da indigência.

Por fim, há que abandonar a ideia perigosa - embora muito cómoda - de que o que quer que façamos, a nível individual, é irrelevante. O velho doente e prostrado que encontro na rua e a quem ofereço o almoço, ou simplesmente um sentido "Bom dia!" de olhos nos olhos, de certo não sentirá a minha pequena ação como irrelevante. Pode ser irrelevante para mim, nunca para ele. É verdade que não posso mudar a sociedade de um dia para o outro, mas quem falou em mudar a sociedade? A minha pequena-grande ação, somada a um milhão de ações semelhantes todos os dias, em toda a parte, há com certeza de ser relevante um milhão de vezes, para um milhão de pessoas; e o que é relevante para um milhão de pessoas pode ser, pelo seu impacto imediato ou apenas pelo exemplo, relevante para milhões de famílias ou comunidades. Por fim, devagar, talvez se consiga fazer o que se julgava impossível: mudar a sociedade.


Até lá, é preciso que nos mudemos a nós próprios, começando por mudar de mentalidade. Há demasiado sofrimento no mundo - e não é ontem nem a semana passada, mas já, agora mesmo! Ter isso em mente é o princípio de um acordar, o princípio de uma expansão de consciência que nos pode levar a agir se esse sofrimento não for sentido como algo alheio, mas como algo que nos toca como se fosse nosso, que nos incomoda e nos perturba.