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quarta-feira, julho 06, 2011

A irracionalidade consagrada



Começa a ser fatigante. A dependência dos Estados, sobretudo dos mais endividados e politicamente mais fracos relativamente às poderosissimas Moody´s, Fitch e Standard & Poors, é sintoma da irracionalidade crescente do sistema económico-político. Dá que pensar. Os estados democráticos estão constantemente sob uma espada de Dâmocles que, a qualquer momento, pode desabar sobre as suas cabeças, remetendo o que resta da sua credibilidade externa perante os investidores para o "lixo". Lixo, pois, é o que representa hoje a credibilidade de Portugal. Num mundo cada vez mais dominado pela especulação, pelo comércio de tudo, pela desinformação e pela competição desenfreada que tudo legitima, é no mínimo de bom senso que os governos - se é que ainda resta algum vestígio de poder político efectivo - se esforcem por compreender o que está por detrás dos "mercados", das agências e dos seus critérios de análise de duvidosa cientificidade. Compreender e, já agora, regular. Não ponho em causa o mercado, o sistema dito liberal ou capitalista. Ponho em causa os defeitos e vícios que o minam lentamente, gerando novos poderes, oligarquias e plutocracias que fogem a todo e qualquer controlo político e democrático. Isto não é aceitável. Não é aceitável que a "ansiedade" e a "delicadeza" emocional dos mercados subvertam a "razão" dos estados que é, como quem diz, o primado da Lei (é verdade! Já se fala hoje nos aspectos emocionais dos mercados financeiros, como noutros tempos era imperioso considerar as emoções e os estados de espírito dos soberanos absolutos, quando o poder ainda era um capricho e não uma expressão de um dever de serviço baseado no Direito). Talvez não precisemos já de políticos, economistas e técnicos de finanças, mas de psicólogos! Não existem receitas práticas, e o valor dos acordos e da bilateralidade dos estados entre si, ou dos estados entre as associações de estados, periga hoje em detrimento da consagrada imprevisibilidade do sistema, fundado cada vez mais na irracionalidade da especulação. Portugal assinou um acordo com instituições internacionais para não se ver subitamente desarmado, expropriado, incapaz de cumprir os seus compromissos internos e externos. Nestas circunstâncias, é o próprio estado que está ameaçado na sua existência. Está em causa a coesão de uma sociedade, e o equilíbrio entre a ordem e a anarquia. Isto é muito sério, e não pode estar dependente de factores "emocionais" que subvertem a letra da lei.

A questão é simples: ainda que Portugal cumpra escrupulosamente os seus compromissos, não existe nenhuma garantia de que a sua credibilidade recupere a ponto de voltar daqui a três ou quatro anos a tomar o seu lugar nos mercados financeiros. Nesse caso, o nosso país poderá acabar como uma Grécia, no fio da navalha da desagregação, no limbo do colapso social e económico. Porquê? Porque os "emocionais" mercados não reagem, resistem e aumentam a pressão. E a Europa e o primado da Lei? Dificuldades, silêncios, meias palavras. A solidariedade quebra-se perante os cordelinhos do poder efectivo, oculto nos corredores das instituições europeias, nos governos e na interdependências das dívidas.

Fala-se muito em criar uma agência europeia de rating para contrariar a influências das agências norte-americanas. Toda a gente já percebeu - ainda que muitos responsáveis governativos europeus tardem em perceber - que existe uma agenda oculta dos investidores norte-americanos para destabilizar, destruir, enfraquecer o Euro. Neste sentido, é fácil concluir que não existe nenhuma boa vontade por parte desses mesmos investidores na recuperação das economias periféricas do euro. Assim, é difícil de entender que se continue a dar alguma credibilidade que seja aos ratings das agências norte-americanas e não se ponha em acção, desde já, um plano europeu de clarificação dos critérios de análise postos em prática por estas. Não podemos esquecer que estamos a pagar, temos contratos celebrados com estas agências. No caso português, estão destinados 9 milhões do Orçamento de Estado, todos os anos, para pagar os serviços destas agências. Seria de exigir, no mínimo, que cada descida ou subida de rating fosse acompanhada de uma fundamentação criteriosa. Que métodos, que critérios científicos, que dados considerados para a análise. Os estados deviam exigir essas informações, e não aceitarem passivamente o "julgamento" destas agências. Para tal, os estados deveriam poder recorrer à concorrência. Não falo propriamente da existência de uma agência de rating europeia, mas de recorrer às que já existem! E, é um facto, existem bastantes por toda a Europa, inclusive em Portugal. Seria justo pedir mais que uma opinião, como se faz com os médicos. É necessária maior transparência, concorrência e objectividade nas análises. Não precisamos de mercados "ansiosos", mas de rigor, objectividade e critérios científicos (na medida do possível e tendo em conta, como é óbvio, os limites dos métodos e da objectividade científica quando falamos em economia). Ou isso, ou talvez seja preferível rescindir unilateralmente esses contratos. Talvez não fiquemos muito pior..

O sistema é absurdo, e a sua irracionalidade reflecte-se no fenómeno designado por "profecia auto-cumprida". Portugal está num caminho que se pretende que seja o da reabilitação. A sua recuperação depende da credibilidade que mês a mês, ano a ano, venha a merecer dos investidores, ou seja, de quem nos empresta dinheiro. Contudo, os mesmos diversos prognósticos de rating que fizeram subir os juros e nos empurraram para a ajuda externa, afirmam hoje nas suas análises que é muito possível que Portugal venha a pedir uma segunda ajuda por vir a estar, no futuro, em risco de não cumprir o primeiro acordo. Ora, precisamente a divulgação deste tipo de análises, associada a crendice dos investidores nas mesmas, conduzirão muito provavelmente a concretização deste tipo de "profecias".. Isto aconteceu muitas vezes, e vai continuar a acontecer, num ciclo vicioso cujo epilogo poderá bem vir a ser a desagregação da zona euro, ou, como quem diz, da Europa.

Porém, a culpa não deve morrer solteira. Os estados durante anos, mercê de más governações sucessivas e sem visão de futuro, puseram-se a jeito. Sofrem hoje as consequências das decisões apressadas, do adiar de reformas estruturais fundamentais de médio e longo prazo. Isso, porém, é outra história.