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quinta-feira, novembro 04, 2010

Homo Politicus



O que significa dizer que o homem é um animal político? O que define o âmbito do político? Não me parece possível responder à primeira pergunta sem responder à última. Afirmar que o homem é, em si mesmo, ou seja, que contêm na sua humanidade uma dimensão política, pressupõe um entendimento claro do que é isso de política.

Aristóteles foi o primeiro a afirmar peremptoriamente a natureza política do homem. Para o filósofo, o homem procura naturalmente a companhia dos outros homens, organiza-se, hierarquiza-se, é um animal gregário, social. Na busca dos seus propósitos individuais ou colectivos, o homem insere-se em comunidades, respeita hierarquias, luta pelo poder e domínio dos outros e das coisas, engendra teorias abstractas de organização dos indivíduos, faz planos e elabora estratégias.

Contudo, esta característica não é exclusiva do homem. Outras espécies animais existem que são políticas na medida em que se organizam, se submetem a rígidas hierarquias, respondem a regras não-escritas de sociabilização, poder e domínio que as tornam, em muitos aspectos, muito mais eficazes que qualquer tipo de organização política humana que exista ou tenha existido no passado. Lembro-me imediatamente das formigas e das abelhas. O que torna o homem diferente? Será o homem mais político que outras espécies animais, ou estamos a falar de diferentes tipos de politicidade?

O homem, como animal que é, não pode deixar de responder aos mesmos instintos de organização, sociabilização e hierarquização que as outras espécies animais. Não pode, mas pode. O homem, quando nasce, nasce inserido num contexto. Uma família, um clã, uma tribo, uma civilização. O seu processo de sociabilização, organização e hierarquização parte do particular para o geral, do núcleo familiar para a comunidade mais chegada, da comunidade mais chegada para a cidade, da cidade para a nação. Talvez isto não se passe exactamente assim, mas parece-me que existe uma certa verdade nesta linha de raciocínio, pelo que vale a pena pôr a coisa nestes termos, ainda que de uma forma a modos que caricatural.

O homem parece ser capaz de romper o âmbito da mera tribalidade, da simplicidade dos afectos, da comunidade isolada, para se abrir ao outro, para lançar pontes e abrir-se a novas possibilidades de organização que lhe permitem responder a outras necessidades que não a da mera sobrevivência. É possível que esta perspectiva padeça de um certo optimismo forçado, mas ao longo da história humana podemos constatar o modo como as pequenas comunidades se foram progressivamente abrindo, ligando e religando, crescendo e expandindo, anexando o diferente e o diverso. Da pequena tribo ao clã, do clã à pequena vila, da pequena vila à cidade, da cidade à cidade-estado, da cidade-estado à nação, da nação à confederação de nações. Obviamente que este processo não foi nem é linear, e, sublinhe-se, na maioria das vezes muito pouco pacífico. A guerra é e foi sempre parte do processo, não uma anomalia.

O conflito serve determinados propósitos, também eles, políticos. A guerra sempre foi um meio de unir a tribo, o clã, a nação. Ela sedimenta e reforça a unidade no seio da diversidade, e determina também, em larga medida, o modo como se organiza a comunidade em termos políticos. A própria hierarquia de valores das comunidades guerreiras foi, em muitos aspectos, determinada pela dimensão guerreira da mesma, premiando a valentia, a bravura, a coragem e a lealdade, em detrimento da cobardia e da deslealdade, vistos como pecados gravíssimos dignos de repulsa. Não é por acaso que os primeiros reis são, antes de mais, grandes generais, e que, numa primeira fase, a hierarquia política se confunda com a hierarquia militar. A legitimidade do chefe reside no seu génio guerreiro, na sua liderança e destreza militar. Aspirar a um lugar na hierarquia da comunidade implica dar provas de que se é corajoso, valente e bom guerreiro.

O político, no humano, manifesta-se primordialmente pela expressão da necessidade de auto-preservação e sobrevivência. Este é eminentemente territorial, proteccionista e baseado em afectos simples que se confundem praticamente com os afectos familiares ou de clã. O mundo exterior é geralmente hostil e imprevisível, cheio de armadilhas e perigos, pelo que é importante reforçar as relações de solidariedade entre os diversos elementos da comunidade. O outro é visto quase sempre como uma ameaça à integridade do grupo. A diferença é perigosamente subversiva, e o homem do paleolítico não pode correr o risco de se ver subitamente arredado da protecção da tribo ou do clã.

Num estado meramente tribal, o homem pouco se diferencia dos primatas superiores, como o chimpanzé ou o gorila. Partilhamos muitos aspectos do processo de sociabilização com estas duas espécies, os nossos primos em termos evolutivos. Porém, enquanto os chimpanzés e os gorilas se organizam basicamente do mesmo modo há centenas de milhares de anos, o político no homem assume um carácter evolutivo, ainda que existam algumas excepções a que a antropologia política chama de sociedades não-históricas, ou de história repetitiva. Desde os aborígenes da Austrália, aos Masai em África, passando pelas tribos da Amazónia até os esquimós do Ártico, os exemplos são diversos.

Há, no entanto, um aspecto de fundo que faz toda a diferença e que reside no critério de adaptabilidade. Os chimpanzés, mesmo que fossem pressionados pela civilização a tornarem-se civilizados, ou mesmo que nascessem num contexto democrático, jamais conseguiriam adaptar-se a um novo modelo político e serem nele agentes participativos e influentes. O mesmo não acontece com os Masai ou com as tribos amazónicas. É verdade que a maioria das sociedades ditas não-históricas oferecem geralmente uma enorme resistência à modernidade, recusando por motivos de cultura e tradição a mudança ou a integração em modelos mais vastos de organização política. Porém, não está escrito nos seus genes que tenha de ser assim. Um Masai nascido em Nova Iorque, desde que devidamente integrado, adaptar-se-á a um modelo político em tudo diverso do dos seus antepassados. Diversas tribos africanas renderam-se, por exemplo, ao uso da tecnologia para executarem as suas tarefas tradicionais, e mesmo à internet e ao telemóvel como modo de comunicação. Assim, a excepção confirma a regra no caso do homem. O político no homem não é apenas necessidade, mas antes possibilidade. Está aberto à contingência, e não limitado por um determinado património genético.

É precisamente esta abertura à contingência que nos permite questionar o político. A organização das comunidades humanas é dinâmica e, portanto, muito difícil de determinar e delimitar. Verdadeiramente, não existe uma ordem estabelecida, final e definitiva. O chamado status quo está continuamente em crise e exposto à subversão. O político está mais próximo de um devir do que de uma essência explicável e compreensível. A pretensão da antropologia política em desvendar os princípios que subjazem a toda e qualquer forma de organização política, e desta forma elaborar uma espécie de paradigma categórico do político, talvez seja, nesta perspectiva, demasiado ambiciosa, irrealista e redutora. O mesmo se poderá dizer do materialismo histórico descendente directo do hegelianismo. A pretensão de fazer da história uma ciência pura, positiva e previsível, com leis bem definidas de tese, antítese e síntese, de contínua superação de contradições latentes, foi já desmentida pela própria sucessão dos factos históricos.

Se não é então possível definir o político claramente, acredito ser possível pelo menos uma aproximação. O político é dinâmico, subversivo, promotor ao mesmo tempo da ordem e do caos. O político é só, em parte, acção concreta de instituições políticas. Na verdade, a política é apenas a ponta do iceberg do político. Nesta dinâmica, o político latente na acção do indivíduo, do colectivo, da sociedade civil, e dos diversos sectores – também eles dinâmicos -, em conjunto com o fervilhar ideológico mais ou menos definido, só em muito pequena percentagem logra vencer o caos do conflito de interesses para se cristalizar em instituições e regimes, ou seja, para se tornar acção política promotora de uma determinada ordem e de um status quo. O equilíbrio desta ordem é frágil, e nem a imposição totalitária – conservadora por natureza – sobrevive tempo suficiente para domesticar a dinâmica do político. Pelo contrário, uma dinâmica totalitária, pela sua natureza conservadora, imediatamente provoca uma clivagem entre as instituições políticas e o resto da sociedade naturalmente dinâmica e aberta. Em última análise, empurra as forças criadoras para a clandestinidade, reforçando e alimentando o seu poder subversivo, a pressão libertadora e emancipadora, conduzindo, geralmente, a fenómenos revolucionários mais ou menos violentos.

Assim, no homem, o ser político é também aspiração e sonho. É projecto, planificação e ideal. Se, como já vimos, existe a dimensão ordenadora e conservadora do político, normalmente cristalizada em órgãos de acção política concreta, a outra face da moeda é a dimensão subversiva e desorganizadora, ou caótica, não cristalizada e sustentada por uma hierarquia de valores.

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