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sábado, setembro 29, 2012

EPISTEMOLOGIA E O HOLOGRAMA DA VERDADE







A EPISTEMOLOGIA E AS LUTAS PELA SUPREMACIA ENTRE CRITÉRIOS DE   VERDADE E JUSTIFICAÇÃO

Toda a ciência é precedida de uma epistemologia. Qualquer disciplina do pensamento que coloque como fim a descoberta da verdade e, portanto, se aplique ao estudo e compreensão de um determinado objeto – logo, tenha pretensão à objetividade – baseia-se já, mesmo que de forma natural e inconsciente, em pressupostos acerca do que se deve entender por verdade e objetividade. Baseia-se, portanto, numa epistemologia. Isto porque qualquer ciência com pretensão à objetividade tem também pretensão à universalidade.
Não faria sentido estabelecer critérios de verdade e de evidência para uma ciência se esta não pretendesse que os seus resultados fossem objetivos, verdadeiros e universais. Não fosse a própria epistemologia uma ciência da verdade, que partilha da mesma pretensão de universalidade de todas as outras ciências. Pois, existe uma epistemologia da epistemologia? Existe uma epistemologia da epistemologia que por sua vez está na base da epistemologia? Onde acaba a ciência da verdade? Existe uma ciência última ou primeira da verdade que subjaz a todas as outras? Estes debates são muito antigos e opuseram durante séculos defensores de perspetivas fundacionalistas, coerentistas, subjetivistas, empiristas, racionalistas, entre outros.
A ciência última, a epistemologia última, dar-nos ia o critério derradeiro para distinguirmos a verdade da falsidade, a certeza do erro. Descartes identificou precisamente este critério último de verdade com a evidência “clara e distinta”. Tudo o que se apresentasse “clara e distintamente” ao seu espírito deveria ser considerado verdadeiro. No fundo, toda a certeza que se emergisse claramente, cuja obviedade fosse absolutamente resistente a qualquer tentativa de refutação, deveria ser considerada verdadeira, sem mais - como quem diz, sem necessidade de nenhuma justificação adicional, portanto, auto-evidente -. Se existiam, para Descartes, algumas verdades deste género, “claras e distintas”, outras porém exigiriam um maior esforço da razão para conquistar a sua evidência.
O problema de uma epistemologia última (ou primeira) é precisamente o de ter de se mostrar capaz para produzir critérios de verdade aplicáveis, não só às outras ciências, mas também a si própria. A epistemologia primeira tem de ser capaz de se auto-justificar. Tem de produzir critérios de verdade universais e, ao mesmo tempo, explicar porque é que ela própria é verdadeira precisamente à luz dos mesmos critérios. Tem não só de estabelecer o que é a verdade, mas também de ser a verdade. Pois, afinal, como será possível dar crédito a uma ciência com pretensão de verdade se os princípios nos quais se estabelece não forem verdadeiros? Ora, uma ciência última da verdade não poderia encontrar a sua justificação noutra ciência mais fundamental. Não poderia ser verdadeira em função dos critérios estabelecidos por outra ciência mais radical. Teria de ser verdadeira por si, em si, a priori.
Tal ciência a priori constitui uma demanda filosófica desde Platão, e talvez mesmo antes com a noção de arké ou de princípio último da realidade visível. Precisamente, procurava-se desvendar a arké de toda a realidade, o princípio último que lhe conferia consistência e verdade. Neste sentido, toda a filosofia e cosmologia começou por ser uma arqueologia, uma ciência do princípio último de tudo o que existe. Quanto ao mundo físico, ao universo, esse princípio de consistência teria de material como o próprio mundo.
Porém, e como já os pitagóricos séculos antes de Platão haviam defendido, tal princípio poderia ser também da ordem do imaterial – o número, a forma geométrica. As qualidades do mundo seriam, na sua essência mais fundamental, no seu arké, quantidades geometricamente dispostas, extensas. O universo seria, portanto, um desdobrar de quantidades extensivas que partiu, na sua origem, do ponto, logo, da unidade não extensa. A Platão – certamente um admirador dos pitagóricos – interessava menos a questão cosmológica da origem do Universo do que a questão do mistério de ser possível aceder, por via do exercício da razão, às formas últimas da realidade. A razão parecia constituir uma faculdade quase divina, capaz em última análise de aceder a um meta-mundo, aquilo que hoje chamaríamos de uma outra dimensão da realidade, precisamente a dimensão que conferia inteligibilidade à dimensão do mundo físico.
O mundo sensível, só por si, não poderia ser compreendido sem o suporte da inteligibilidade que um outro mundo mais simples – o mundo das formas puras – lhe conferia e ao qual a razão, por via do de um exercício que hoje chamaríamos de abstração, simplificação ou redução, era capaz de aceder. A verdade situava-se, precisamente, neste meta-mundo de inteligibilidades simples do qual o mundo sensível, no seu vasto espectro de contrastes, contradições e multiplicidades constituía apenas uma sombra, uma aparência esbatida e demasiado mutável para constituir, em si próprio, um mundo de certezas. Para parafrasear um dito muito posterior a Platão, o reino da verdade não era, de facto, deste mundo.
            Os racionalistas, com as devidas variantes ao longo da história da Filosofia, sempre defenderam a supremacia da razão enquanto faculdade privilegiada no acesso à verdade. Fosse por via do acesso a um meta-mundo de inteligibilidades, fosse por via do acesso a ideias inatas da razão, fosse por via da razão enquanto suporte e sustentáculo da própria realidade objetiva sem o qual o mundo simplesmente não seria, fosse por via de uma identificação clara entre a realidade e a razão, ou a razão e a realidade, ou ambas ao mesmo tempo.
Kant e a sua via crítica, ainda que tenha retirado à razão a primazia da objetividade – a razão não produz objetos nem sequer possui ideias constituídas acerca do mundo -, continuou a dar-lhe a primazia no processo de constituição do fenómeno. A razão continua a ser, para Kant, a faculdade que confere inteligibilidade. É a variável inteligente da equação do conhecimento, sendo que a sensibilidade, só por si, é “cega” se os seus dados não forem devidamente organizados pelas categorias a priori do entendimento.
A objetividade, para Kant, não se atinge pelo conhecimento do objeto em si próprio, simplesmente porque nenhuma faculdade do sujeito é capaz de aceder à mesmidade ontológica da “coisa em si”. Não existe identificação ontológica entre a razão e a realidade em si do mundo. A relação não é imediata e privilegiada. É antes mediada, exige adaptação, tradução, conferência de inteligibilidade e de ordem aos dados que chegam, desordenados, aos sentidos. Neste sentido, há um maior grau de subjetividade nesta abordagem, simplesmente porque se coloca o sujeito na equação como “legislador”.
            Em termos gerais, podemos designar os racionalistas e idealistas enquanto defensores da imediaticidade da verdade, portanto, de uma objetividade irrestrita. É possível atingir a verdade em si mesma, na sua essência, não como aparece mas como é enquanto é o que é. A razão não só contém em si própria algumas destas verdades mas também contém em si os critérios últimos que permitem decidir acerca do que é verdadeiro e do que é falso. São critérios sobretudo lógicos, simples e auto-evidentes que, por si mesmos, excluem qualquer possibilidade de erro. Assim, o mundo exterior, físico, dos sentidos, tem de se submeter a estes critérios pois o sujeito é precisamente aquele que, por via da razão, tem acesso ao subjectum – ao que subjaz, ao que está subjacente, à estrutura do mundo -. O sujeito, por via da faculdade da razão, transcende o próprio mundo para trazer à imanência da compreensão a urdidura matemática, lógica, fundamental do mundo. No idealismo essa transcendência é, ao mesmo tempo, imanência. O mundo ou certos aspetos dele existem porque eu sou capaz de os produzir, pensar, idealizar. O mundo existe enquanto eu existir (e mesmo que eu deixe de existir, Deus há-de garantir que tudo continuará a existir pois ele vê tudo, ao mesmo tempo, em todos os momentos). As coisas existem enquanto puderem ser alvo da minha perceção e reflexão (O Esse est percipi de Berkeley).
            Por outro lado, os empiristas conferem um outro estatuto à razão. Em diferentes graus, o cepticismo derivado das perspetivas empiristas do conhecimento retiram à razão o seu estatuto de juiz último da verdade. A verdade não é cognoscível em si, imediatamente, na sua totalidade e dentro dos seus limites objetivos. Mesmo os princípios lógicos, matemáticos, não constituem a verdade, a estrutura última e permanente do mundo acessível ao poder da razão, nem sequer podem ser entendidos como critérios objetivos para decidir definitivamente acerca da verdade ou da falsidade seja do que for. Não é possível ter contacto direto e imediato com as essências e formas puras e universais que subjazem aos objetos do mundo, mas apenas com os vários tipos de sensações que eles despertam quando o sujeito os percepciona por intermédio dos sentidos.
É a partir deste contacto – sempre parcial, sempre incompleto – com os objetos do mundo que o conhecimento faz o seu caminho. Neste contexto, não se pode afirmar que existe sequer uma soberania absoluta da experiência. Para os empiristas como David Hume, a experiência é, sem si própria limitada, parcial e incompleta. Não podemos ter acesso à totalidade do mundo que é, como quem diz, à totalidade da experiência ao mesmo tempo. Ora, daqui se conclui necessariamente que as nossas crenças acerca do mundo só podem ser provisórias, e qualquer pretensão à universalidade é perigosa e até, na perspetiva humeana, “irracional”.
Não existe nenhuma garantia lógica, racional, absoluta e necessária que confira verdade universal às conclusões obtidas por via da indução. Portanto, mesmo as verdades da ciência – as leis newtonianas por exemplo – baseiam-se num princípio que, bem vistas as coisas, não podem ser justificado racionalmente, pois não é racional fazer previsões ou generalizações matemáticas ou lógicas a partir de casos particulares da experiência. A simplificação/redução - que para os racionalistas constituíam os processos de raciocínio que permitiam aceder à verdade fundamental do universo -, constituem, para os empiristas/céticos, processos perigosos de generalização/previsão que não possuem qualquer validade em si próprios, pois a razão por si só não tem qualquer privilégio no acesso à verdade.
           

  VERDADE – SEMPRE A VERDADE! -, OS VALORES E O DIÁLOGO DA COMPLEXIDADE


Apesar da predominância social e cultural das ciências experimentais, físicas e matemáticas nos dias de hoje, continua a colocar-se o problema da verdade e da justificação das nossas crenças. Ainda assim, existe um outro problema que se vai impondo, hoje mais do que nunca. Não se trata tanto da dimensão epistemológica ou gnosiológica, mas da questão ética e axiológica.
Pois vejamos: a verdade continua a ser um problema de ordem gnosiológica, pelo menos para aqueles que se dedicam aprofundadamente à questão – geralmente os filósofos – e não se satisfazem apenas com a verdade científica, experimental. A verdade é, hoje, um problema de ordem valorativa, ética, mais do que nunca.
Aparentemente – e sublinho a aparência – a ciência, pelos seus resultados extraordinários, pela sua dimensão utilitária e funcional, pelo seu progresso exponencial - sobretudo no século passado - sem precedentes em toda a História humana registada, parece ter esvaziado o discurso epistemológico e gnosiológico acerca da verdade e da objetividade. A ciência funciona, os seus métodos quase não encontram adversário no espectro das disciplinas do pensamento humano. Existe de facto um outro critério epistemológico, não já da ordem da evidência, mas da ordem da utilidade. Esta perspetiva epistemológica acerca da verdade muito deve ao pragmatismo.
            Ao mesmo tempo que a discussão epistemológica parece ter-se esvaziado, a questão ética e axiológica parece ter tomado a ribalta. O movimento é curioso por ser o inverso daquele a que a Europa assistiu na transição da idade média para a modernidade: o esvaziamento da verdade enquanto dimensão axiológica e moral e a emergência da discussão da verdade em termos epistemológicos e gnosiológicos. A Igreja e a sua soberania moral e intelectual – e muitas vezes temporal – estabelecia claramente os limites da verdade e da falsidade no campo da moralidade. Fazia-o também em termos de verdade e falsidade cosmológica e filosófica, na medida em que a crença nos cânones da moralidade dependia de uma fé irrestrita na visão do mundo oferecida pela igreja e os seus sacerdotes. Tal explica que a perseguição àqueles que, pela via do conhecimento filosófico, científico e epistemológico colocaram em causa esta mundivisão, tenha sido tão dura e sem quartel. Se a igreja e os guardiães da sua doutrina tinham a sua própria epistemologia na medida em que definiam o critério da fé enquanto critério de verdade, os filósofos metafísicos e naturais defendiam, por outro lado, o critério da racionalidade, da observação e experimentação. Assim nasceu o método científico, precisamente como resposta epistemológica que viria, uns séculos mais tarde, a submeter a predominância moral da religião sobre os espíritos.
            Hoje, essa via da racionalidade parece ter tomado o seu lugar ao ponto de, em certa medida, se ter tornado também numa questão de fé com a sua doutrina e a correspondente elite de guardiães e sacerdotes. A sua predominância é da ordem do intelectual mas, curiosamente, a maior ameaça a visão do mundo que propõe é da ordem da ética, da moral e da axiologia. É hoje consensual que é necessário pensar a ciência e o seu desenvolvimento à luz dos valores da dignidade humana e da democracia, estabelecendo-lhe limites éticos claros.
Porém, a própria racionalidade científica e tecnológica defende-se procurando, em muitos momentos, naturalizar, reduzir e simplificar o raciocínio ético e valorativo atribuindo-lhe uma explicação natural ou naturalista que o esvazia de conteúdo e de sentido. Neste sentido, a melhor defesa é precisamente a de impedir a suspensão da reflexão axiológica e ética por via de uma discussão racional e filosófica permanente que se oponha as tentativas naturalistas e neopositivistas para terminar, numa penada biologista, com todas as justificações em detrimento das explicações. Talvez seja mesmo necessária uma epistemologia da axiologia, ou seja, uma reflexão acerca dos critérios de verdade e evidência que estão na base de uma filosofia dos valores, do bem e do mal, do certo e do errado, dos princípios morais e éticos que procuram responder à questão de Como devemos agir.
A fé na técnica e na racionalidade científica não deve conduzir à suspensão do pensamento relativamente a outras formas de racionalidade, do mesmo modo que a fé na doutrina da igreja pressupunha a suspensão da racionalidade filosófica e naturalista.
Há sempre uma perigosa tendência de tomar a parte pelo todo, de assumir uma postura totalitária procurando alargar um tipo de metodologia ou racionalidade que funciona muito bem em certas dimensões muito específicas da realidade, a todas as dimensões. A racionalidade, como defende Edgar Morin, pode degenerar em racionalização. A racionalização é um processo de redução e simplificação que reduz a realidade complexa, multifacial e multidimensional a uma só dimensão. Há sempre um risco de um determinado tipo de racionalidade querer assumir uma postura hegemónica no campo do conhecimento, reduzindo todas as outras abordagens a uma só, como se esta última estivesse no fundamento de todas as outras e explicasse todos os fenómenos. Dá-se com as tentativas de reduzir os fenómenos biológicos a fenómenos físicos, explicáveis numa ou em várias fórmulas físico-matemáticas, na tentativa de reduzir a discussão ética e moral ao estudo neurocientífico das estruturas naturais do cérebro, ou no esforço para reduzir o estudo da consciência e dos processos mentais às ciências da computação ou da cibernética.
            Existe o chamado princípio da complexidade que determina que a complexidade do real não pode nem deve ser reduzida e simplificada nos limites fechados de um tipo estrito de racionalidade. O Universo é não só extremamente complexo como essa complexidade ainda não terminou – e não se sabe se alguma vez terminará – de se complexificar. Uma só abordagem não pode dar conta de toda esta simplicidade. Hoje, mais do que nunca, é necessário estabelecer pontes entre as disciplinas, entre os tipos de racionalidade, entre os campos do vasto espectro do conhecimento humano.
É verdade que cada tipo de racionalidade, cada disciplina, tem a sua própria epistemologia e, consequentemente, os seus critérios de verificação ou falsificação. Porém, é possível e necessário estabelecer uma epistemologia mínima que só o diálogo racional, aberto e sem preconceitos entre as disciplinas e racionalidades pode conseguir. Várias epistemologias não significam que a subjetividade venceu sob a capa de cordeiro da objetividade. Significa antes que a própria complexidade do real solicita hoje uma redefinição do conceito de objetividade e subjetividade. Nenhuma ciência pode conter a totalidade, mas todas juntas, em diálogo estreito e aberto, podem ir desenhando uma imagem do Universo - não será antes Multiverso? - que se aproxime pouco a pouco da realidade objetiva, como se todos os campos do conhecimento humano concorressem, por fim, para um monumental holograma da Verdade. 

domingo, setembro 23, 2012

Neurobiologia e ética - o totalitarismo do "empiricamente objetivável"





A propósito do artigo intitulado As raízes neurobiológicas da justiça, publicado num blog relacionado com as neurociências (http://jus.com.br/revista/texto/22670/as-raizes-neurobiologicas-da-justica#ixzz27Ivt75n8), achei por bem tecer algumas considerações que me parecem pertinentes no sentido de introduzir alguma prudência na tentativa "empírica" de justificar a condição ética do ser humano. 


"Já há indícios de alguma disposição para estabelecer um debate entre as ciências que se ocupam do cérebro e da conduta e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, no sentido de admitir que a partir da aceitação dos melhores dados disponíveis acerca de como são os seres humanos será possível reconstruir, sobre bases empiricamente mais sólidas e seguras, os fundamentos do direito, da justiça e da moral." Portanto, estes senhores propõem que se assentem as bases do direito, segundo compreendi, em "bases empiricamente mais sólidas e seguras" de "como são os seres humanos".

Aquilo que eu pergunto é o seguinte: o que significa neste contexto o "ser", a "natureza" humana que se pretende empiricamente desvendar? Pois, eu também defendo que, no limite, a posse do conhecimento acerca da "natureza" humana nos daria uma base segura para respondermos à questão de "como devemos viver". Não sou porém tão otimista como estes senhores ao defender que tal natureza seja objetivável por via da investigação empírica, científica, biológica. O ser humano - é triste que tenha de lembrar sobretudo aqueles que defendem uma perspetiva evolucionista - é o animal menos determinado em termos biológicos. A genética, ainda que tenha um papel estruturador básico, não determina definitivamente aspetos tão simples como a língua que falamos, as nossas crenças, o nosso agir perante a contingência do mundo. Mais: precisamente essa indeterminação permitiu-nos enfrentar e superar a contingência, ao oferecer-nos instrumentos de resposta adaptativa perante a imprevisibilidade e a mutabilidade do mundo, sempre prenhe de desafios à sobrevivência. Assim - e já Piaget o tinha afirmado e muito bem - as nossas estruturas cognitivas e morais desenvolvem-se numa relação irredutível a qualquer uma das partes: meio ambiente (mundo), genética e ação do indivíduo no mundo.

A que chamam os neurobiólogos, portanto, de "natureza humana"? Essa mesma que pode e deve ser "empiricamente objetivável"? À genética "a priori", chamemos assim, ou às estruturas cerebrais de um adulto formado? Vejamos o que diz o artigo:

"Ernst Fehr e seus colaboradores (2002) estudaram esta questão explorando os cérebros de sujeitos mediante a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) enquanto estes decidiam se castigar a uma pessoa que havia abusado previamente de sua confiança violando uma norma justa. O estudo demonstrou que a parte do cérebro crucial no circuito da recompensa ou gratificação se ativa enquanto os sujeitos estão decidindo se castigar ou não. Pesquisadores anteriores demonstraram que esta mesma área se ativa quando, por exemplo, os sujeitos recebem dinheiro, vêem caras formosas, consomem cocaína ou no caso de indivíduos enamorados ao ver imagens de seus amados ou amadas."

Partindo da tomografia de um cérebro adulto - com as estruturas já formadas ou na fase mais avançada da sua formação - os cientistas concluíram - vejam bem! - que a resposta cerebral ao ato de condenar ou castigar alguém por ter violado uma regra comunitária considerada por todos como "justa" é uma resposta de satisfação ou reforço positivo, semelhante ao que se passa quando consumimos uma droga, ou quando estamos com a pessoa que amamos ou - acrescento eu - quando nos congratulam por algo que fizemos corretamente. O que diz isto acerca da justiça ou dos seus princípios? Em primeiro lugar, trata-se de um adulto já formado e, portanto, não compreendo porque parecem menosprezar ou esquecer todo o processo de socialização e de estruturação construtivista que já se deu ao longo do processo de desenvolvimento. Por outro lado, se o mesmo se passa quando comemos chocolate ou consumimos uma droga, então tal significa que a nossa "natureza" já possui em si as estruturas a priori para apreciarmos "aquele" chocolate em particular ou para nos sentirmos bem com "aquela" pessoa por quem nos apaixonamos? O reforço positivo e a satisfação manifestados numa área do cérebro podem explicar, em parte, o porquê de nos sentirmos bem por termos cumprido uma regra justa. Mas não diz "que" regra justa, ou sequer quão abrangente e pertinente é essa "regra" justa que cumprimos tão satisfatoriamente. Ou seja, dito de outra forma, podemos ficar satisfeitos por termos cumprido uma regra que consideramos justa do mesmo modo que um cão se sente satisfeito por obedecer à ordem do dono, ou do mesmo modo que um oficial de Hitler se sentia satisfeito em enviar judeus para os campos de concentração.

Como bem sublinha Nagel, no máximo a explicação neurológica pode ensaiar uma explicação causal para a justiça, mas nunca oferecer razões a favor ou contra uma determinado regra ou princípio de justiça. As explicações naturalistas não podem servir de fundamento último, empiricamente indiscutível e axiomático, fim de toda a reflexão ética. O facto de possuirmos a capacidade "natural", "a priorística" para seguir o bem e fugir do mal, nada nos diz acerca do bem que perseguimos e do mal de que fugimos. 

E quanto à seguinte citação:

"Isto é importante porque, da mão do castigo altruísta, o que aparece em realidade é a evidência de que os seres humanos se inclinam por natureza a castigar a injustiça, quer dizer, de que a disposição das pessoas para castigar aos indivíduos que mentem, enganam, roubam ou violam as normas sociais (morais ou jurídicas), inclusive quando não tenham sofrido nenhum dano ou se beneficiado pessoalmente, é parte de nossa biologia, um comportamento característico do ser humano. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem. É este sentido da justiça o que subjaz a idéia de John Rawls (1978)acerca da capacidade para lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de justiça universal, e não de interesses particulares, as regras do jogo."

Parece-me que existe aqui alguma confusão. Por um lado, o autor defende que é da nossa natureza castigar a injustiça. No limite, não distingo isso da vingança das turbas enfurecidas. Também elas se satisfazem com a "justiça" praticada. Devemos fazer a seguinte questão: perante esta circunstância da natureza humana se satisfazer com este "facto biológico" o que deve um juiz fazer perante um homem que matou outro porque este lhe tinha violado a filha? Afinal, o homem limitou-se a "castigar altruisticamente" o homem que prevaricou. Deve, por isso, ser absolvido? Não. O homem deve "conter", precisamente em nome de uma justiça mais elevada, a sua potencial satisfação permitindo que não se abra um perigoso precedente e não voltemos todos ao tempo da justiça pelas próprias mãos. Depois, diz o seguinte: "Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem". Eu pergunto: que equidade pode existir pelo simples facto de se sentir satisfação na condenação do outro que prevaricou? Estarei disposto, caso seja eu a prevaricar, a sofrer o mesmo castigo? Por uma questão de equidade, sim, deveria estar disposto, ainda que tal não me "satisfaça" muito em termos biológicos.

Gostaria de saber, portanto, se é possível algum tipo de objetividade ética a axiológica num contexto irremediavelmente subjetivista. Ainda que defendam a "objetividade empírica", o que dizer da objetividade dos princípios da justiça? Ah. Claro. Não existe. A justiça e os seus princípios dependem da satisfação, da prática variada e subjetiva dos seres humanos cuja única coisa que têm em comum é um conjunto de estruturas "naturais." Ora, pelo menos seria de esperar que fossem coerentes estes senhores e que, portanto, admitissem que não existe qualquer motivação valorativa na sua atitude científica. Trata-se de "ciência pura" no sentido de pôr os resultado mais recentes da neurobiologia ao serviço do direito e da justiça. Ora, neste sentido, como devo entender a seguinte citação?

"Como disse W. K. Clifford (1879) há mais de um século, temos o dever pessoal e social de combater as crenças não respaldadas pela evidência ou que se opõem ativamente a ela, do mesmo modo que temos a obrigação pessoal e social de tratar de evitar a propagação de uma enfermidade."

Terei lido bem? "Temos o dever social e pessoal". Não se trata isto da enunciação de um princípio ético, valorativo, de justiça, com pretensão de verdade e universalidade? E não é, de acordo com o autor do artigo, precisamente com base neste princípio ético que se pretende subjugar a ética e as conceções de justiça às estruturas subjetivas da natureza humana? A pergunta que eu faço é então a seguinte: onde vai buscar este princípio a sua universalidade, se o que interessa a priori são as estruturas "naturais" que são a condição de possibilidade da sua própria validade? Afinal, é ou não possível e necessário o raciocínio ético para além da mera abordagem empírica da sua natureza? Porquê este princípio e não outro qualquer? Talvez porque existam razões para que se considere este princípio melhor que outro. Razões que certamente ultrapassarão a mera justificação naturalista. Caso contrário, cairiamos no seguinte absurdo lógico: é nosso dever de justiça provar que a justiça não tem validade em si própria mas depende das estruturas cerebrais do homem. É nosso dever provar que o dever não passa de uma atitude instintiva da "natureza humana". A questão que posso colocar é simples e decisiva: então, que razões tenho para cumprir esse dever?