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sexta-feira, outubro 05, 2012

O CALVÁRIO DA REPÚBLICA



Hoje, durante o astear da bandeira nas comemorações do 5 de outubro.
Não é a bandeira que está ao contrário, mas antes Portugal inteiro que está a fazer o pino para fazer o dinheiro chegar ao fim do mês. 



A república está moribunda. Está ferida, doente, anémica, pálida, incapaz de se sustentar, de cumprir as suas promessas. A república está refém dos erros de todos aqueles que absolutizaram a liberdade e relativizaram a responsabilidade em todos os domínios da "coisa pública" - político, económico, moral -. A república é hoje uma mulher mal amada, e sobre cujas vestes - já de si esfarrapadas - foram tiradas sortes. Como noutros tempos, muitos ou quase todos gritam desalmados "crucifiquem-na!", "crucifiquem-na, pois ela não cumpriu as suas promessas de paraíso! O reino não veio como ela prometeu!".

Porque não sabem o que fazem, vão acabar por crucificá-la: como sempre, a mensageira perece como bode expiatório dos pecados de todos nós. Não foi a república que não cumpriu as suas promessas: fomos nós, todos nós, que a levamos ao calvário por causa dos nossos pecados. A república pressupõe a gestão da coisa pública, ou seja, a administração dos espaços comuns baseada em valores comuns, para o benefício de todos. A democracia, pressupõe que esta gestão se faça pelos cidadãos, diretamente ou por via dos seus representantes eleitos. Ora, se a "res pública" degenerou em "res privada", também a democracia parece ter degenerado em partidocracias e "cracias" várias, pelo que o divórcio é flagrante entre os centros de decisão e os cidadãos.

Os gestores da coisa pública, na sua maioria, já não representam: apenas se representam. Mas a culpa não é apenas "dos políticos"; é também, e sobretudo, dos cidadãos ao terem permitido este divórcio, por andarem distraídos com a sua "individual, subjetiva e absoluta felicidade". Ninguém se deve esquecer que o seu espaço privado não existe por si só, isolado e insular. É antes peninsular, está ligado inexoravelmente ao continente do espaço público, para o bem e para o mal. A minha família, a minha "felicidade" está inextrincavelmente ligada ao sucesso e à felicidade dos outros.

A emancipação do individual não se faz à custa da opressão do coletivo, nem a emancipação do coletivo à custa da opressão individual. O liberalismo político - essa grande conquista da modernidade -, trouxe a intenção de uma emancipação do indivíduo, política, civil e económica. Mas toda a revolução - por mais bem intencionada - atrai a sua conta de oportunistas da "pior espécie", como bem defendia Carlyle. Logo, a "emancipação" foi tomada como absoluto, em si mesma. Alguns, a bem da sua emancipação, da sua "felicidade", acharam legitimo e pertinente relativizar a "felicidade" dos outros, como quem diz, colocá-la ao serviço da sua "soberana liberdade".

A liberdade, que começou por ser vista enquanto "liberdade objetiva do sujeito" - inalienável portanto do respeito pelo outro enquanto "fim em si mesmo" - , degenerou naquilo a que se chama hoje muito prosaicamente de "liberdade individual", que mais não é do que a absolutização da liberdade subjetiva. Aquilo que Valadier diz, neste contexto, faz todo o sentido: relativizamos os valores que os outros defendem, mas absolutizamos os nossos. Relegamos os valores dos outros para o reino da subjetividade - é a "tua" opinião -, mas queremos que os valores que defendemos sejam tomados universalmente, mesmo que digamos "é apenas a minha opinião...". Intimamente pensamos, "eu estou correto, e ele está errado."

A democracia e a república só sobrevivem se os indivíduos, na sua subjetividade legítima, se voltarem para fora desta mesma subjetividade. Se é verdade que o indivíduo se emancipou da opressão exterior dos absolutos políticos, religiosos ou outros, também é verdade que existe um absoluto do qual este ainda não se emancipou - o absoluto relativismo do "eu próprio".

Não é que não seja necessária uma cultura do indivíduo. Nenhum de nós está disposto a abdicar - justamente - da sua personalidade jurídica, dos seus direitos consagrados, da sua liberdade e autonomia, do reduto intocável da sua consciência, do primado do fundamento radical da sua liberdade. Justíssimo, desde que sejamos capazes de reconhecer, nos outros, a mesma personalidade, a mesma liberdade e a mesma autonomia - ou pelo menos o seu potencial de autonomia -. Nem sempre estamos prontos a reconhecê-la, pois tal reconhecimento traz consigo um quadro de deveres e obrigações. Os deveres e as obrigações forçam-nos - por vezes preguiçosamente como quem tem preguiça de se levantar da cama - à exteriorização, à saída de nós próprios e do nosso "ego de conforto". Obriga a um empenho relativamente à "coisa pública", a um ou a vários compromissos, não apenas para connosco, com este ou aquele homem, mas para com a humanidade.

A decadência de qualquer civilização ou sociedade começa precisamente quando o nível de compromisso para com os deveres atinge o seu mínimo. Não digo que o compromisso com os direitos não seja também importante. É-o muitas vezes absolutamente fundamental, sobretudo quando esta decadência civilizacional traz consigo a opressão de alguns sobre muitos. Porém, essa mesma opressão é sinónimo de uma decadência: a do compromisso do agente público, do político, para com as suas obrigações e deveres "públicos".