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quarta-feira, junho 25, 2014

"Se", de Rudyard Kipling

(Tradução minha do original "If"; ver original aqui

Se não perdes a cabeça quando todos à tua volta
Perderam as suas e te culpam por isso,
Se te manténs confiante quando todos duvidam de ti,
Mas reconheces o seu direito a duvidar;
Se és capaz de esperar sem desesperar,
Ou de nunca mentir, mesmo quando mentem sobre ti,
Ou de nunca odiar, mesmo quando és odiado,
E ainda assim não te revelas bom demais, nem presunçoso ao falar:

Se és capaz de sonhar sem te deixares subjugar pelos teus sonhos;
Se és capaz de pensar sem que o pensamento seja o teu único fim;
Se, quando confrontado com o Triunfo e a Desgraça,
Tratas estes impostores com igual desprezo;
Se suportas ver as verdades que uma vez pronunciaste 
Distorcidas por gente sem escrúpulos para servirem de armadilha aos tolos,
Ou se te deparas com a ruína de tudo aquilo por que lutaste,
E tens força para reconstruir tudo de novo com ferramentas gastas:

Se és capaz de arriscar todas as tuas conquistas passadas,
Numa única jogada de sorte,
E perder, e começar tudo do início
E jamais abrir a boca sobre a tua perda;
Se és capaz de dar o máximo do teu coração, nervos e tendões,
Mesmo depois de terem perdido toda a serventia,
E persistir quando já nada mais existe em ti
Senão essa Vontade que não cessa de lhes dizer: "Persistam!"

Se és capaz de te dirigir às multidões sem perderes integridade,
Ou caminhar lado a lado com Reis, sem perderes a simplicidade, 
Se não te deixas magoar, nem por inimigos nem por amigos muito amados;
Se todos os homens podem contar contigo, mas nenhum em demasia;
Se consegues encher cada minuto que passa, implacável,
Com sessenta segundos que valham uma vida inteira,
O mundo é teu e tudo o que nele há,
E, acima de tudo, serás um Homem, meu filho!

terça-feira, maio 27, 2014

Quais os nossos deveres para com as gerações futuras? - O "decrescimento" como proposta

Artigo proposto a concurso na edição 2013 do Concurso de Ensaio Filosófico da Sociedade Portuguesa de Filosofia (versão sem cortes e com nome acrescentado a posteriori)

Resumo: Este artigo começa por problematizar o pressuposto de que temos deveres para com as futuras gerações, antes de enunciar qualquer dever. Qual o fundamento ético desse dever? Um caminho possível é o do princípio de responsabilidade de Jonas, que institui como primeiro dever para com as gerações futuras, o dever de prudência. Este traduz-se “numa nova espécie de humildade” que reconhece a debilidade do poder de prever e ajuizar face ao poder de agir. Largos domínios tecnológicos – biotecnologia, da genética, etc. – estão abrangidos por este princípio pois influem diretamente na matriz da condição humana. Os riscos são tanto maiores quanto maior é o desconhecimento das consequências. Há todavia domínios cujas consequências para o ser humano estão cientificamente bem documentadas e decorrem da ação humana no planeta. Conhecemos não apenas as consequências, mas temos também o poder de agir. Falamos do impacto da ação humana no planeta, traduzida em consequências ecológicas graves que decorrem do sistema económico-político das chamadas “sociedades do crescimento”. Se nada for feito para diminuir a “pegada ecológica” da ação humana, o futuro do planeta ficará seriamente comprometido e com ele as futuras gerações. Neste contexto, é não só prudente como urgente agir. O crescimento pelo crescimento é pernicioso para as sociedades e para a biosfera como um todo. Assim, elegemos a proposta do “decrescimento sereno” como hipótese de trabalho económica e quadro ético-político para a mudança que urge implementar. A proposta tal como é sistematizada por Latouche (2012) consiste não apenas numa reestruturação do económico (menos consumo e predação de recursos, respeito pelos ritmos da natureza), mas sobretudo do político, com base num quadro ético que privilegia os valores da verdade, do sentido de justiça e da solidariedade, e atribui maior prioridade aos bens convivenciais, relacionais e espirituais do que ao bens materiais.

Palavras-chave: prudência, crescimento, decrescimento, economia, capitalismo, ecologia, política, obsolescência programada, consumo. 

quarta-feira, janeiro 15, 2014

Ensaio sobre a substância dos valores

Bosch, "O jardim das delícias"

Os valores não são entidades metafísicas independentes do sujeito valorativo e da esfera cultural. Não existem em nenhum plano metafísico, num mundo de idealidades ou formas puras. É no contexto de uma cultura, primeiro como significados, depois como símbolos, que os valores encontram o seu “ser” e substância. O mundo dos valores é a esfera onde residem, sincrónica e diacronicamente, todos os aspetos imateriais, simbólicos e semânticos de uma cultura; é nesta dimensão, coexistente à dimensão física espacio-temporal, que os sujeitos se movem e constroem as suas identidades socioculturais, logo morais. É nesta dimensão que os valores nascem, emergem e adquirem progressivamente densidade ontológica, como se construídos pela lenta sedimentação de camadas significantes. É nesta dimensão que os valores se tornam urgentes, incontornáveis, comunicáveis e até universais, e também a partir dela que aqueles influem na ação dos homens, logo, na história. A substância de um valor sedimenta-se lentamente, passo a passo, à medida que uma dada cultura, no seu fluxo auto-reprodutivo, vai oferecendo fundamento e significado a esse mesmo valor. Temos vários exemplos como o valor da dignidade humana, da liberdade ou qualquer outro, que têm a sua história própria e ainda se nos apresentam como inacabados, limitados, abstratos à sua maneira, carecendo de um trabalho semântico contínuo, de manutenção, de conceptualização permanente. Porque os valores são substâncias culturais, simbólicas e semânticas, não significa que se oponham à natureza humana, ou que lhe sejam completamente alheios, se entendermos que esta se manifesta, também, na e pela cultura. Tal como dissemos, a esfera axiológica coexiste a esfera física espacio-temporal, não se lhe opõem porque a segunda serve de substrato à primeira. No homem, a dimensão fisiológica serve de substrato à esfera axiológica, e é também legítimo pensar que a natureza ou condição humana, não sendo meramente fisiológica, se desdobra e exprime plenamente exclusivamente e necessariamente através da cultura, que mais não é do que uma atribuição humana de significados, uma reapropriação humana da natureza e do mundo que diz mais acerca do homem do que acerca desse mesmo mundo; se entendermos que a cultura não se resume apenas a uma forma de dominação do “animal humano”, mas ao modo pelo qual o humano plenamente se realiza, numa dialética sempre inacabada entre biologia e cultura.

Há por isso valores que emergem na aurora de uma dada cultura, para os quais há necessidade de encontrar todo um fundamento, um significado, um sentido, precisamente porque tais valores aparecem como urgentes à emancipação da condição humana (em resposta, por exemplo, a certos tipos de opressão). A opressão, nas suas várias formas, é sempre parasitária, tende a contaminar a substância dos valores, a inoculá-los com as suas ambiguidades, como um vírus, mantendo-lhes todavia a sua aparência benigna, emancipadora e virtuosa, transformando-os em cavalos de Tróia da opressão. Basta ver como o valores da verdade, da ordem, da honra, da bondade, da justiça, e até da liberdade, foram e são ainda frequentemente instrumentalizados pelos totalitarismos de toda a espécie, com rosto ou sem rosto, políticos, económicos ou financeiros. Quanto mais abstratos os valores, mais corrompíveis. Para evitar a corrupção dos valores, para lhes fazer a manutenção que merecem, não há outra via que não seja a cultura, que é feita de produção de significados novos, de interpretação de significados antigos, de criação e tradução, de exemplos bons, de práticas concretas de bem-agir que são sempre a forma mais eficaz de conferir substância vital aos valores, de os encarnar, dando-lhes uma face mais concreta, definida e permanente.

Os piores vícios da natureza humana exprimem-se também por via da cultura, e contribuem desse modo para a corrupção dos valores, seja produzindo novos, seja parasitando os antigos de face virtuosa. Há valores que se bastam a si próprios e a maioria das culturas consagraram como virtuosos, como o altruísmo, a lealdade ou a abnegação. Outros, como o egoísmo, só podem ser defendidos como virtuosos à luz de um utilitarismo: são-no na medida em que produzem um bem maior; são-no na medida em que abrem portas, segundo se diz, à concretização de valores virtuosos.

Entendemos como viciosos ou “negativos” todos os valores que favorecem de algum modo a opressão, e como virtuosos ou “positivos” todos o que favorecem emancipação do homem. É óbvio que o entendimento do que é “opressão” e “emancipação” humana é em si mesmo discutível, remetendo-nos para as profundidades da ética e da antropologia. Emancipação e opressão serão, em si mesmos, valores, igualmente passíveis de corrupção e carentes de manutenção permanente, através da cultura. Isto, todavia, não deve fazer-nos cair num relativismo sem solução, porque acreditamos que existem aspetos da condição humana que são, em princípio, universais, mas cujos contornos talvez ainda não sejam totalmente claros para nós. Estes talvez se exprimam e condensem em valores, positivos e negativos, revelando tendências mais consistentes que atravessam a história das civilizações e culturas humanas, que não se dissipam facilmente e tendem a emergir e reemergir logo que se tornam urgentes num dado período histórico. Estes podem surgir, na mesma cultura em diferentes períodos históricos, ou em culturas distintas, com faces e histórias diferentes, e certamente com distintos conteúdos experienciais. Os valores não são estáticos nem estão dados. O que resiste deles é a sua face virtuosa ou viciosa, que num dado período histórico emerge como urgente, apontando caminhos e respondendo a determinadas aspirações humanas que vão sempre no sentido da mudança, da emancipação, da liberdade, e não em sentido inverso. No início da uma nova era civilizacional - como no renascimento europeu, no pós-revolução francesa ou no pós-segunda guerra mundial - os indivíduos viram-se sempre confrontados com a necessidade de dar corpo às aspirações de emancipação mais profundas dos povos, de definir, assim sendo, a natureza do bem e o mal, fosse produzindo novos valores, fosse abrindo um processo de re-significação, limpeza e depuração de valores antigos cujo significado foi contaminado ou parasitado por forças perversas, mas cuja urgência para a civilização futura justificava esse esforço de reabilitação.

De certo modo, o que aqui dizemos é que os valores mais persistentes, enquanto “substâncias culturais” (chamemos-lhes assim), revelam importantes tendências da condição humana, boas ou más, virtuosas ou viciosas. São produto do enfrentamento, confrontamento, interpenetração da natureza humana – entendida aqui estritamente como produto da evolução biológica, estruturas genéticas definidoras e definitórias – com as condicionantes impostas e possibilidades abertas pelo mergulho num dado período histórico, espaço simultaneamente físico, espacio-temporal, simbólico e semântico. Espaço material e imaterial no qual a natureza humana se debate, joga e luta para encontrar um lugar, que na verdade não se “encontra” como se estivesse dado, mas se constrói; debate, jogo e luta que resulta em criação, em produção de cultura, em enriquecimento do património simbólico e semântico. Jogo sempre inacabado, verdadeiramente trágico, que consiste precisamente na nossa condição – a condição humana.  

Em suma, os valores são objetivos (logo, objetos), mas não são nem essências nem formas puras no sentido clássico. São significados passíveis de despoletar experiências significantes (encarnar valores como a bondade, lealdade, altruísmo traduz-se em ações concretas, mas também em satisfação e até em prazer estético visto que é visto como “belo” agir bem e heroicamente por um valor elevado a ideal…), e de serem comunicados através de símbolos, ou seja, de linguagem. Eles adquirem consistência ontológica à medida que o homem se esforça por construir o seu “ethos” próprio, a sua morada. Para este efeito, ele só pode fazê-lo através da cultura, que por sua vez exige memória, anamnese coletiva, capacidade para ir às raízes, interpretar e reformular criativamente as heranças da tradição. A cultura e, por inerência, os valores, não podem ser vistos como objetos estáticos que a crista da tradição conduz na sua onda, linearmente, do passado para o futuro, sem mais, sem retrocessos nem necessidade de memória, que as gerações do passado transmitem, intocadas e intocáveis, às gerações futuras. Quando se entende que as novas gerações não têm nada a acrescentar à substância dos valores, e que esta se encontra bem definida por autoridades a isso consagradas, detentoras derradeiras do seu significado e da sua verdade, é como se se procurasse conter o fluxo incessante e auto-reprodutivo da cultura, que a cada geração tem necessidade de se renovar, de se enriquecer de símbolos e experiências. Tal como um fluxo de um grande rio não pode ser travado, o fluxo da cultura também não. Querer atribuir definitivamente um significado unívoco, universal, extra-histórico a um dado valor ou conjunto de valores, é arrancá-los daquilo que lhes confere concretude e vitalidade histórica. É torná-los progressivamente desconhecidos e estranhos aos olhos e corações dos homens concretos e suas aspirações. É torná-los progressivamente instrumentos daquela opressão de que falamos já, que oculta por detrás da face virtuosa de valores como a liberdade, a justiça, o amor ou a verdade, uma agenda de dominação que os transforma, por fim, em pálidas sombras das melhores virtudes e mais altas aspirações humanas.

A cultura, tal como o nome indica, implica o cultivar incessante de significados, e portanto de virtudes e valores que uma dada civilização elege como estruturantes à sua própria existência e perenidade. Cada geração tem o direito e o dever de redefinir a sua existência histórica à luz das heranças que a cultura lhe outorgou, seja através da arte, da literatura, da ciência, da filosofia, dos saberes teóricos ou práticos. É talvez este o papel das chamadas humanidades, que na verdade deveriam congregar todos os saberes, práticas, artes e ciências que são fruto da atividade humana e contribuem para enriquecer a esfera semântica e simbólica da nossa cultura. Mas não: hoje as humanidades são sinónimo de “letras”, ou seja, literatura, línguas, e todas aquelas disciplinas que o cientismo da nossa época decidiu menorizar por falta de “exatidão” e “culto excessivo da subjetividade”. Hoje, uma vez mais, urge fazer um trabalho de re-significação que devolva às humanidades o seu crédito, à luz de um ideal de unidade da cultura. E isso é possível, porque, até ver, nenhuma autoridade ou cátedra tem o monopólio exclusivo de tais significados, como não tem de nenhuns.