Há demasiado
sofrimento no mundo. A maior parte dele está completamente longe da nossa
vista, quando mais do nosso coração. De vez em quando passamos por um velho
mendigo na rua, ou uma mulher, ou uma criança triste, e ao vê-los prostrados e
reduzidos, ao nível do chão, sujos e maltrapilhos, somos tocados pela sua
miséria. Quando tal acontece pergunto-me em silêncio "O que comeu este
homem hoje?", "Que espécie de enxerga o espera à noite?",
"Que abrigo da noite fria?", "Que abrigo da solidão"?,
"Que espécie de desespero?"... E faço-o do alto da minha condição,
erecto e sadio, estômago cheio e já à espera da próxima refeição, dinheiro no
bolso, uma casa, um quarto e uma cama para voltar depois das agruras do dia,
uma palavra amiga e familiar e uma refeição quente...e uma espécie de esperança
que me ilumina o hoje e o amanhã.
Há demasiada
dor, demasiado desespero. Agora mesmo, há demasiada gente doente à espera de
morrer numa cama de hospital, para quem a noite, a solidão e o silêncio têm o
sabor da desesperança e o odor da morte que espreita. Nenhum futuro, nenhuma
esperança de salvação. Homens, velhos, crianças. Há demasiada gente sem voz por
essas periferias escusas do mundo das quais ninguém quer saber. Gente sem lei,
homem ou instituição que a proteja, que a represente. Gente exilada, refugiada
sine die por causa de guerras e conflitos que não provocou, que não pediu (falo
eu, o exilado/refugiado por capricho e opção...). Gente que trabalha em antigas
e novas formas de escravatura, de sol a sol, tratados como mercadoria,
maltratados, espoliados, explorados, meras máquinas sem rosto, números que não
merecem sequer um olhar de humanidade - e tudo isto para ganharem uma côdea de
pão que não lhes chega para matar a fome, nem a sua nem a dos seus filhos, cujo
choro esfaimado são impotentes para calar, de dia e de noite.
Há demasiada
gente presa, alguns por coisa nenhuma, outros apenas por pensar em voz alta,
outros porque ousaram dizer o que outros preferem calar, por medo ou comodismo.
Há quem adormeça e acorde todos os dias num eterno crepúsculo, que viva cada
hora - sempre demasiado longa - imerso no frio da solidão e de um medo que é
terror e não desata. Há demasiada gente que não tem para onde ir à noite,
depois das agruras do dia; que não tem onde descansar, lugar a que chamar lar,
onde pousar a cabeça, onde aquecer o corpo e alma e encontrar uma presença
amiga, que às vezes nem precisa de falar mas só estar. E mesmo entre aqueles
que têm para onde ir e que não estão sós, há quem tenha casa sem ter lar.
Desses, há quem só queira ter paz, viver com quem não lhe bata, quem não o atormente,
quem não o prenda, quem não o use, quem não o subjugue, quem não o mate. Já não
se pede que o ame, mas apenas que o liberte, que o respeite. Há quem só queira
que o pouco lar que tem não se transforme num inferno - já lhe basta, tantas
vezes, o inferno que encontra na rua, no trabalho, na vida.
Há demasiada
gente, mesmo entre os que "têm tudo", que sofre como se não tivesse
nada. Presos por ilusões, dependências e más escolhas que fizeram, porque
pensavam que era nelas, nas dependências que criaram e más decisões que
tomaram, que se encontrava a sua frágil felicidade. Lançaram-se a si próprios
numa teia da qual já não conseguem libertar-se, num labirinto do qual já não
sabem sair.
Penso também em
todos aqueles que todos os dias, várias horas por dia, consentem em deixar à
porta dos seus trabalhos e ocupações (muitas vezes detestáveis, inumanas) a sua
soberania pessoal, como se deixa o casaco ou o guarda-chuva, para se tornarem
parte de uma engrenagem que prontamente os esmaga à mínima hesitação ou sinal
de inadaptação, ou se por acaso decidem ser diferentes e afirmar o seu próprio
e humano ritmo. Na maior parte do tempo não somos senhores de nós próprios,
abdicamos da nossa vontade e liberdade para mendigarmos umas horas de gozo,
umas quantas horas para podermos sentir o pulso do nosso "eu", para
vivermos um pouco no espaço da nossa intimidade e dos nossos sonhos, umas
poucas "folgas" da pressão da roda dentada para que sintamos a
agradável sensação de sermos senhores de nós próprios e do nosso destino. Pena
que na maior parte das vezes essa sensação seja apenas como um sonho de
Cinderela, sem consequências práticas para a nossa vida, sem que sejamos
capazes ou sequer queiramos, nessas horas de soberania, fazer mais do que
sonhar a nossa própria liberdade, lançar reais sementes de projeto, construir
um futuro mais de acordo com o que realmente somos e queremos realmente ser.
Há, pois, que
tecer o futuro, um que esteja de acordo com o sentimento de autenticidade e
soberania pessoal que todos encontramos nas poucas horas de liberdade que a
máquina nos consente, essa máquina/sistema que joga tão bem com as nossas
necessidades e dependências - e que nós permitimos, porque embora muitas das
necessidades sejam reais, outras são completamente inventadas, e nós consentimos
e absorvemos, como bons e obedientes consumidores que não estão realmente
dispostos a perder em coisas, posses e bens materiais para ganhar em liberdade,
espírito, soberania pessoal, cultura.
Mas há
sofrimentos e dores muito mais profundos, e é bom que os tenhamos sempre em
mente, em nome da consciência e da verdade. Neste exato momento, há quem tenha
perdido um filho(a), um irmão(ã), um pai, uma mãe, um amigo(a), seja num
acidente de carro, de aviação, seja levado por uma doença, seja num atentado
terrorista, seja na sequência de um obus disparado numa qualquer zona de guerra
por este mundo fora - apenas mais um "dano colateral" de um conflito
onde se jogam mais altos interesses, que raramente são os do povo, que é
sempre, mesmo na vitória, aquele que mais perde. Falo por mim: leio a notícia
do jornal, a pequena breve ou primeira página que seja, e passo à frente. Não
me interessa; não me diz respeito. Nem cai o céu nem o mundo pára por causa
disso. Se fosse comigo... haviam certamente de cair os sete céus, o carmo e a
trindade; e a indiferença do mundo iria doer-me como mil punhais.
Se por um
momento calarmos o nosso ego e nos dispusermos a ouvir, é certo que ouviremos
os gritos dessa mãe, desse irmão, desse pai, desse amigo; de todos aqueles que,
agora mesmo, num instante imprevisto, perderam aquilo que tinham de mais
precioso e clamam por justiça divina. E ouviremos esses gritos multiplicados
por mil, ou por milhões, e o sol de primavera que agora mesmo nos ilumina com a
cor da alegria (o mesmo sol que ilumina todos esses que sofrem para além de
qualquer palavra) já não nos parecerá tão jovial e alegre.
A verdade é que
há demasiada dor no mundo, e nós indiferentes, anestesiados, até que nos calhe
a nós. Há quem diga, para não ter de se incomodar, que não há nada que possamos
fazer quanto a isso, ou que o que quer que façamos é pura e simplesmente
irrelevante (o que para mim é mais grave). A miséria material e moral, a
doença, a dor, são tudo fatalidades.
Quanto à miséria
moral e material, basta dizer que é urgente abandonarmos uma série de
preconceitos bem mais enraizados do que possamos imaginar, segundo os quais 1)
a miséria é uma punição sobre aqueles que não se "souberam governar"
ou adaptar às exigências da sociedade, do mercado e do mérito; 2) que a miséria
é uma "condição de nascimento", isto é, de que quem nasce miserável,
ou é originário de um meio ou classe de indigentes, há de ser miserável toda a
vida, ou tem como que o gosto pela miséria, ou "predisposição" para
tal; 3) que a miséria faz parte do modo como o sistema económico funciona e se
comporta, e portanto é condição necessária ao progresso económico das
sociedades. Ora, estou de acordo que a desigualdade seja uma condição
necessária à verdadeira justiça social, se a entendermos como justiça
distributiva baseada no trabalho e no mérito. Naturalmente, quem trabalha mais
e melhor merece receber mais e melhor; quem tem mais qualificações merece ser
mais bem pago do que quem tem menos qualificações, etc. Todos podemos, em
princípio, concordar com isto. Mas isto está muito longe de legitimar o
darwinismo social, isto é, o pressuposto de que a vida em sociedade se deve
basear na "lei do mais apto", ao ponto de se considerar justa a
exclusão de milhões de "inadaptados", fracos e frágeis, sejam velhos
e doentes que não podem trabalhar, sejam indivíduos que, por qualquer
circunstância, não tiveram acesso a uma educação ou formação adequada, seja
quem, por causa de um negócio falhado ou por não conseguir encontrar trabalho
regular, se vê de repente atirado para as malhas da pobreza e da indigência.
Por fim, há que
abandonar a ideia perigosa - embora muito cómoda - de que o que quer que
façamos, a nível individual, é irrelevante. O velho doente e prostrado que
encontro na rua e a quem ofereço o almoço, ou simplesmente um sentido "Bom
dia!" de olhos nos olhos, de certo não sentirá a minha pequena ação como
irrelevante. Pode ser irrelevante para mim, nunca para ele. É verdade que não
posso mudar a sociedade de um dia para o outro, mas quem falou em mudar a
sociedade? A minha pequena-grande ação, somada a um milhão de ações semelhantes
todos os dias, em toda a parte, há com certeza de ser relevante um milhão de
vezes, para um milhão de pessoas; e o que é relevante para um milhão de pessoas
pode ser, pelo seu impacto imediato ou apenas pelo exemplo, relevante para
milhões de famílias ou comunidades. Por fim, devagar, talvez se consiga fazer o
que se julgava impossível: mudar a sociedade.
Até lá, é
preciso que nos mudemos a nós próprios, começando por mudar de mentalidade. Há
demasiado sofrimento no mundo - e não é ontem nem a semana passada, mas já,
agora mesmo! Ter isso em mente é o princípio de um acordar, o princípio de uma
expansão de consciência que nos pode levar a agir se esse sofrimento não for
sentido como algo alheio, mas como algo que nos toca como se fosse nosso, que
nos incomoda e nos perturba.