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terça-feira, agosto 03, 2010

Filosofia, Marx e o homem novo




“Já muitos interpretaram o mundo. O importante agora é mudá-lo”. Com esta frase Marx pretendeu selar o seu entendimento do papel da filosofia. A filosofia deveria deixar de ser uma disciplina meramente especulativa, para assumir gradualmente o papel de agente transformador ou, numa expressão mais ao gosto do próprio Marx, de agente revolucionário.

Sou, em certa medida, um marxista por acreditar nisto. O filósofo não deve limitar-se ao mister da especulação racional, ainda que não deva cair no extremo oposto de pretender ser apenas homem de acção. Ele deve sim ser actuante. Não pode ser indiferente ao mundo nem às eventuais consequências – negativas ou positivas – do seu pensar. Porquê? O perigo do homem de acção que toma para si a missão de concretizar a mudança pensada, é o de transfigurar as ideias e os sistemas filosóficos que o precedem em ideologias. O perigo do homem que só reflecte sobre o mundo e não age sobre ele está no progressivo desfasamento do seu pensar em relação à teia do concreto. A filosofia deve tecer-se, não puramente no abstracto, mas urdindo sobre certos pontos de orientação que se fixam no real. De que outra forma pode a filosofia chegar à verdade? Que sistema filosófico pode afirmar estar completo e ser reflexo da totalidade do mundo se abdicar de uma ou outra face da realidade?

Este é o aspecto descritivo da filosofia. Não haverá também um carácter prescritivo? A filosofia deve prescrever sobre os dados descritos, sobre a realidade, ou pode também prescrever mudanças concretas? É tal possível? Interpretar é descrever. Para mudar o mundo, como queria Marx, talvez se deva começar por compreender o que está descrito, reinterpretar teorias e ideias, entender o seu alcance e a sua aplicabilidade. No entanto, mudar o mundo é querer que o mundo se vergue à teoria, que os factos se alinhem de acordo com os trâmites da ideia. Não é isto já um erro? Não tem a realidade um tempo, um ritmo próprio que não se compadece com os ritmos humanos? Estarão todas as interpretações do mundo fechadas e prontas a usar, ou serão antes sistemas abertos à contínua interpretação?

A ciência, irmã e filha da filosofia, procura descrever o mundo, o modo como funciona e se comporta. Ao mesmo tempo procura prescrever, e a isso se chama técnica. A filosofia questiona métodos, põe em causa teorias, procura sentidos e finalidades. A filosofia vai até onde a ciência não pode ir, ao eminentemente humano, ao social, ao político, ao religioso e ao ético. Muitos filósofos, na ânsia de encontrar a vida boa, o sentido para a vida, apressaram-se a descrever uma espécie de natureza humana. Para um Rousseau, a natureza humana consiste numa bondade essencial, comum a toda a humanidade. A sociedade destrói e deturpa esta bondade. Para Kant, a natureza humana é a liberdade, a autonomia racional que permite ao indivíduo viver de acordo com normas universais se este tiver boa vontade e se guiar por imperativos categóricos. Outros afirmam, como Nietzsche, que não existe qualquer natureza humana, mas apenas uma vontade de poder que determina toda a acção do indivíduo. Porque será tão importante compreender a natureza do homem? Porque é sobre uma hipótese acerca da natureza humana que é possível fundar uma ética. É sobre os fundamentos de uma essência universal que é possível prescrever normas, políticas, regras, e até criar futuros possíveis que contemplem projectos de organização humana ditos perfeitos, expurgados dos defeitos das sociedades que tais utopias pretendem ultrapassar em cada momento da História. Esta compreensão da natureza humana permite a fundação de um direito natural, ou seja, um conjunto de normas orientadoras que radicam na natureza essencial do homem, em vez de o oprimirem contrariando a sua natureza. É neste direito natural que radica a Declaração Universal dos Direitos do Homem que hoje subsiste ainda como farol ético e normativo da sociedade dita ocidental. É por natureza um sistema normativo aberto, que permite a pluralidade e a diferença, ainda que seja intransigente em relação a alguns aspectos basilares como o direito à vida e à dignidade. Não procura fundar um homem novo, mas lançar as bases para que o homem se construa a si mesmo, de acordo com a sua liberdade e autonomia.

O erro de Marx talvez tenha sido o de colocar a tónica na interpretação do mundo, e não na interpretação do homem como mundo (microcosmos). O Marxismo pretende que o mundo se divide em classes que se substituem continuamente através de processos dialécticos de luta e superação de umas por outras. A contradição está em gérmen no seio de uma determinada ordem social, mas mais cedo ou mais tarde esta subverte a ordem assumindo um carácter hegemónico sobre as outras classes que, contudo, continuam a subsistir no seio da nova ordem e se adensam em novas contradições. O materialismo marxista pretende que é possível superar todas as contradições instaurando uma ordem perene. Marx bebeu de forma flagrante das teorias hegelianas, adaptando-as aos seus propósitos revolucionários, convertendo o sistema filosófico numa ideologia revolucionária. Transformou a História numa espécie de motor previsível, cujo funcionamento seria refém de regras mecânicas, por leis que poderiam ser inclusive compreendidas através do método científico, à semelhança das leis da gravidade ou da termodinâmica. É possível que tenha também bebido muito deste néctar da bica positivista do séc. XIX.

As contradições existem, mas são quase tantas quantos os seres humanos. Como se veio a verificar, a história é muito mais imprevisível e não se compadece com regimes de cariz científico. Não é possível, tanto quanto compreendemos, criar um homem novo à revelia da autonomia e da liberdade dos indivíduos. Interpretar a natureza do homem é positivo, e abre novas possibilidade ao entendimento de quem somos, de onde viemos, e para onde vamos. É esse o papel da filosofia, da arte, da ciência. Por outro lado, pretender injectar no homem uma nova natureza, criar um homem novo, quase sempre é pretexto para criar indivíduos dóceis e permeáveis a novas formas de controlo e opressão. Para compreender isto, nada como ler um 1984 de George Orwell, ou um Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.

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