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sexta-feira, agosto 28, 2015

Atravessar o deserto


Eis o que significa atravessar o deserto: enfrentar os próprios fantasmas, os próprios medos, os pensamentos e as mágoas do que fizemos ou não fizemos, os arrependimentos; vencer todos esses “Ciclopes e Lestrigões” (como dizia Kavafys no Ítaca) que todos temos dentro de nós, e teimamos em lançar à nossa frente no caminho, e que frequentemente nos paralisam. O medo que nos inspiram limita-nos, faz-nos desistir, impede-nos de andar para a frente e de realizarmos a nossa plena humanidade (cuja outra face é a nossa plena divindade, ambas sendo uma e a mesma coisa). Todos os Cristos e Budas que se lançaram no deserto – fosse de um modo literal ou por via de uma ascese, que sempre significa um internamento em si próprio - não tinham outra intenção senão a de habituarem os seus olhos espirituais à escuridão, para que, paradoxalmente, estes pudessem ter um vislumbre dessa luz plena e muito subtil que constitui o nosso ser profundo, a nossa consciência, e que participa do Verbo (Logos), i.e., da realidade metafísica, ontológica do mundo, a “Verdade” ou “Lei cósmica”. Mergulhar no deserto tem o sentido de uma dúvida radical e hiperbólica à la Descartes: esperar que do “nevoeiro” e da aridez informe do nada emirja uma evidência, uma verdade tão sólida e profunda que não possa ser “nadificada” pelo rolo compressor da dúvida. Neste caso, como em qualquer caso, a verdade e certeza que se espera que emirja, ao mergulhar no deserto, é a da própria Alma, que se espera que tome o lugar do nada lançando a sua luz. É uma profunda e radical busca pela autenticidade, pela essência.

É Heraclito que diz: “Os limites da alma não é possível descobri-los, mesmo percorrendo todos os caminhos, tão profundo é o Logos que a sustenta.”

Se o silêncio, a escuridão, a solidão, o vazio, a falta de estímulo sensorial, não te perturbam, ou te perturbam menos, então já venceste. Habituaste-te à Presença inefável da tua consciência, que tudo vê, bem enraizada na retaguarda do teu ser. Já não és escravo de sensações, e nem sequer de ideias, porque te descobriste superior a ambas; já não és guiado ou coagido por elas a ir por aqui ou por ali, escravo de apetites ou ilusões, mas és tu que as guias e pastoreias. Tornaste-te realmente no pastor dos teus pensamentos, no senhor da tua vontade, porque a cada momento reconheces que não és exclusivamente o que pensas ou sentes, nem sequer a soma de todos os teus pensamentos e sensações, mas a consciência que pensa ou sente, situada sempre aquém e além deles, e a eles sempre infinitamente superior. Essa consciência que podes entrever imperfeitamente na retaguarda da tua mente, como um espelho que tudo reflete, nem sequer se confunde com a tua ideia de “eu”, mas ultrapassa-a ao ponto de essa Presença te parecer – pelo menos no início -, estranha a ti próprio, alheia, como se fosse um “outro eu” que coexistisse contigo na mesma pessoa. Depois de te habituares a essa Presença, tornas-te nela, e desta feita já não é ela que te parece estranha, mas o próprio “eu” pessoal e identitário que te habituaste a alimentar ao longo da tua vida como sendo tu, a quem dás um nome e que reconheces ao espelho – descobres que esse “eu” não é senão uma fachada, uma máscara, uma existência apenas nominal. A tua consciência é muito mais vasta que os limites do teu eu nominal, embora não possas negar ao teu eu nominal a sua missão, e a sua verdade.


Dois "eus"


É como se em mim convivessem dois "eus". Um "eu" criando, abrindo caminho, iluminando o mundo para que nele o outro "eu" viva. O primeiro - o meu "eu" mais profundo e sólido, a fonte da minha consciência - cria, ilumina, abre perante mim o mundo, no qual o segundo - o meu "eu" mais imediato e mutável, a minha vontade livre, o meu ego pessoal e identitário - vive, age, se movimenta, existe. O primeiro "eu" a-presenta-me o mundo, mostra-me o caminho; o segundo "eu" a-presenta-se ao mundo, percorre o caminho. Um inconsciente, subterrâneo; outro consciente, superficial. Os dois são eu.

O "primeiro eu" aparece primeiro, "a priori", antes que o ego tome consciência de si próprio, antes da emergência de qualquer forma de identidade, personalidade, símbolo, conceito ou significado - logo, é inclusive anterior ao próprio mundo, na sua forma existencial, pois ainda não emergiu o exist(ente). Nesse primeiro e fugaz momento que precede o ego, a consciência é apenas luz, pura presença, onde não há forma ou individuação. E, no princípio, o ego que emerge, ainda embrionário, não faz mais do que "pairar sobre a superfície das águas", ainda incapaz de distinguir na homogeneidade branca da luz da consciência qualquer espécie de forma ou individuação. Ainda não há mundo, pois não se consumou ainda a cisão entre sujeito e objeto; ainda não se "separou a luz das trevas", nem se rasgou o "firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras").

Cedo passamos a existir na esfera existencial das coisas individuadas (formas, objetos, conceitos, ideias), cujo centro absoluto é o nosso ego (mais uma forma), esquecendo rapidamente da luz que o precede, que ilumina os objetos, que lhes dá ser (como rapidamente nos esquecemos do ar que respiramos). Somos por vezes levados a acreditar, como idólatras, que essas formas e objetos é que são "reais", que o mundo que existimos enquanto indivíduos é tudo o que existe, subsistindo por si próprio.(sim, é mesmo "mundo que existimos", e não "em que existimos", pois é o existente que existe o mundo, no sentido em que o mundo "é existido" pelo existente, i.e., é uma projeção, extensão ou exsudação de si próprio).

Mas esquecemo-nos rapidamente que sem consciência não há mundo; ou seja, que é através da experiência subjetiva - cuja qualidade é ideal ou mental (como quem diz, imaterial) -, que a concretude material do mundo chega a nós, ou toma forma no nosso espírito. Dito de outra forma: a primeira, mais imediata, evidente e "real" de todas as realidades é a consciência. Todas as outras realidades que constituem a esfera do nosso mundo, da nossa realidade existencial, devem a sua luz à luz da consciência, em maior ou menor grau. São, a bem dizer, realidades mediatas, em segunda-mão, pois só a consciência é "prima facie". E o que é realmente intrigante é que a fonte dessa luz está radicada bem no interior de nós, sendo talvez o aspecto mais importante e que melhor define a nossa natureza, a natureza de todos os seres sencientes, e a própria vida enquanto fenómeno.


E saber olhar, meditar sobre o que se está a ver (sejam objetos ou ideias), não é mais do que captar o seu caráter fundamental de "pura presença", que é sobretudo a consciência atravessando a forma, reconhecendo-se a si própria nela, e por isso dissolvendo temporariamente a distinção entre sujeito e objeto, restaurando a visão plena da consciência de si para si.