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sexta-feira, novembro 02, 2012

Da humanidade do homem




É preciso devolver o homem à sua humanidade. É preciso inventar um novo significado para o ideal de progresso, tal que não mais seja sinónimo de alienação e desvinculação do homem em relação a si próprio, mas antes de re-humanização. Este caminho faz-se, em primeiro lugar, pelo reconhecimento do lugar do homem nas sociedade atuais, bem como das forças que o ultrapassam e inclusive se autonomizam relativamente ao seu poder, adquirindo um carácter de inexorabilidade que pouco a pouco despedaçam, fragmentam, instrumentalizam o homem.

O homem torna-se vítima das forças que ele próprio, pela sua ação, despoleta. O homem é o coveiro da sua própria humanidade, e mais ninguém. Tal não seria possível se o homem não fosse capaz de pôr em marcha forças que estão para além da sua humanidade, que a ultrapassam largamente ao ponto de poderem subvertê-la e destruí-la. O homem está com um pé dentro e outro fora da sua humanidade. É quando o homem perde o controlo que a humanidade está em perigo. É precisamente esta a mensagem do mito antigo de Pandora: podemos abrir a caixa, está ao alcance do nosso poder e por isso fazemo-lo. Já não podemos estar certos de que seremos capaz de enfrentar as forças que libertarmos, de controlar e eliminar o mal que pusermos irrefletidamente em marcha, e que mais tarde ou mais cedo pode voltar-se contra nós.

A verdade é que o homem tem esse poder, e ao tê-lo revela algo da sua própria humanidade. Pois, não acredito numa humanidade essencial diversa deste poder humano de se superar. Não é o retorno de um hipotético bom selvagem que pretendo defender, nem sequer fazer uma apologia sempre perigosamente maniqueísta e até ignorante de um retorno ao paraíso pré-industrial, ou pré-técnico. Tal seria um outro modo de desvinculação do homem relativamente à sua humanidade, outra forma de alienação. É constitutiva da natureza do homem a capacidade de criar, de inovar, de cultivar (no sentido de cultura), e até, num certo sentido, de manipular a natureza numa perspetiva utilitária. A agricultura, só para dar um exemplo simples, é já uma forma de manipulação, de colocar a natureza ao serviço do homem. Assim, faz também parte da humanidade do homem a prerrogativa da sua contínua superação, da sua reinvenção permanente por via da cultura nas suas mais diversas expressões. Portanto, não se trata aqui de conduzir o homem de volta a uma pretensa natureza objetiva, determinada a priori, aprisionando-o numa prisão ideológica (que é uma outra forma de alienação). O desafio é antes o seguinte: preservar a humanidade do homem, a sua capacidade de (se)criar, de inventar, de produzir cultura, sem que as forças postas em marcha neste processo se autonomizem a tal ponto que fujam irremediavelmente do seu controlo e acabem por espezinhá-lo.

É preciso aceitar que todo o projeto humano é um projeto de risco. O próprio homem, enquanto projeto, está sempre em risco de se desumanizar. Um ideal político, um projeto científico ou tecnológico, um ideal filosófico, contêm sempre um potencial de subversão, de desumanização. É sempre difícil prever as consequências últimas de uma nova ideia, mesmo quando as intenções de quem a propõe são as melhores possíveis. Não se pode, porém, eliminar ou suprimir este risco. Não há como impedir o homem de ter ideias, de criar, de inovar. Melhor dito: há como impedir por via da mordaça política, de um totalitarismo ou de uma qualquer espécie de terror de estado.

Os totalitarismos são precisamente exemplos de regimes vocacionados única e exclusivamente para manter o homem na infância, para o desumanizar transformando-o num funcionário ao serviço de um quadro de ideias e de valores que não são os dele, que lhe são impostos, que o impedem de se constituir como projeto autónomo. O perigo de qualquer totalitarismo desumanizador é precisamente o de afirmar um rumo, implementar e pôr em marcha uma ideia, um pensamento único que não admite contraditório, e que determina muito bem o lugar e a função do indivíduo no corpo social, isentando-o de pensar ou sequer de se responsabilizar para além do estritamente necessário ao seu cumprimento. De facto, numa sociedade deste tipo o risco não existe. Todas as ideias que não emanem do núcleo duro da classe dirigente são severamente escrutinadas e, até prova em contrário, heréticas. Ao indivíduo não se lhe reconhece nenhuma capacidade criadora, inventiva, inovadora para além dos cânones muito restritos que a ortodoxia determina, e se reconhece, olha-a apenas como um instrumento útil para fins de propaganda.

Suprimir o risco de qualquer empreendimento humano, individual ou colectivo, suprimindo a própria capacidade de pensar e de ter ideias, é expropriar o homem daquilo que ele tem e pode fazer de melhor, por receio do que ele possa fazer de pior. O pessimismo do homem em relação a si próprio é talvez uma das maiores ameaças à sua humanidade. É preciso acreditar que o homem pode fazer o bem, pode construir e não apenas destruir, pode ser humano, caso contrário qualquer projeto de humanização do homem está condenado ao fracasso. Seja por via da educação, seja por via da ação política, a desconfiança relativamente às possibilidades humanas não é capaz de construir a autonomia, de abrir espaços de liberdade a partir dos quais cada homem possa criar, inovar, pensar, agir a partir de um projeto próprio. É preciso cultivar o otimismo no homem para que ele tenha espaço suficiente para ser, sem que a espada de Damócles da heresia e da subversão pairem constantemente na sua cabeça.