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quinta-feira, outubro 29, 2009

Direito à Heresia - a pérola de Saramago



Recentemente, durante o debate com o padre Carreira das Neves acerca da Bíblia e do seu modo de interpretação, Saramago lançou uma pérola deveras extraordinária, sobretudo em alguém que se afirma conhecedor e informado acerca das coisas do mundo e da vida. Pois, segundo Saramago, a Declaração Universal dos Direitos do Homem deveria contemplar “o direito à heresia”. Ora, devo esclarecer o nosso Nobel em dois pontos que me parecem fundamentais. Em primeiro lugar, se existisse explicitamente um artigo que salvaguardasse o “direito à heresia”, ipsis verbis, então seria necessário esclarecer que de que heresia se tratava, visto que há diversas heresias possíveis, tantas quantas as crenças e convicções existentes. Em segundo lugar, já existe algo que muito semelhante a esse dito direito à “heresia”. Tratam-se do artigos 18º e 19º da mesma Declaração, que passo a transcrever na íntegra.

Artigo 18º
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Artigo 19º
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.


Cá está o seu “direito à heresia” senhor Saramago. Espero ter-lhe sido útil.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Saramago - o (pseudo)iconoclasta



O lançamento do livro Caim de José Saramago veio acompanhado de uma enorme polémica gerada pelas suas afirmações acerca da Bíblia e da religião em geral. Segundo o entender de Saramago – a partir da sua perspectiva aparentemente desapaixonada e descomprometida -, a Bíblia é um “manual de maus costumes” que reflecte “ o que há de pior na natureza humana”. Ao mesmo tempo, põe em causa o carácter revelacional das escrituras, lançando em tom trocista a questão acerca do meio que Maomé, Abraão ou Moisés terão utilizado para comunicar com Deus. Afirma que o Deus do Antigo Testamento é vingativo, ciumento e figadal, sempre pronto a castigar o homem pelas suas transgressões, seja arrasando com cidades ou inundando o mundo durante quarenta dias.

Contudo, Saramago cinge-se ao Antigo Testamento sem referir que tipo de Deus está presente no Novo. O facto de Saramago atacar tão ferozmente o Antigo Testamento não deveria, em princípio, incomodar a Igreja Católica em particular, nem o mundo cristão em geral. A liturgia e o dogma cristãos assentam muito mais nos evangelhos, nas epistolas, nos Actos dos apóstolos e no Apocalipse, do que propriamente nos livros do chamado Pentateuco. Para os cristãos, este conjunto de cinco livros – Génesis, Exodo, Levítico, Números e Deuteronómio – deve ser lido e interpretado como o prenúncio e a preparação da humanidade para a vinda do Messias, que plenamente se revela nos evangelhos do Novo Testamento e cujo nascimento é previsto pelos profetas ditos maiores do AT– Jeremias, Isaías, Ezequiel e Daniel -.

O Deus do NT é diferente do do AT na medida em que age no mundo através de Jesus, o chamado Filho de Deus. Não só é através de Jesus que Deus age, como só através de Jesus pode o crente chegar a Deus. Jesus apresenta-se como “o caminho, a verdade e a vida”, pois “ninguém vem ao Pai senão por mim”. Jesus traz algumas novas noções que revolucionam em parte a religião judaica: o Antigo Testamento – que corresponde em grande medida à Torah judaica -, está imbuído de uma constante promessa na vitória do povo de Israel, no advento de um Messias político que libertará definitivamente o povo eleito do jugo e da diáspora e o conduzirá à paz na “Terra Prometida”. Por outro lado, Jesus já não fala em Terra Prometida, mas no “Reino de Deus”. Ora, este “Reino de Deus”, como o próprio Jesus afirma “não é deste mundo” e inclui, não só o povo eleito de Deus, mas todos os homens da Terra. É um reino do espírito e não um reino com fronteiras definidas e politicamente soberano. Jesus apresenta-se como o profeta prometido. Os judeus que nele acreditaram tornaram-se cristãos, os que não acreditaram continuaram judeus. Jesus refere várias vezes as tradições judaicas para nelas introduzir diferentes interpretações e mudanças significativas. Por exemplo, não considera necessária a circuncisão física nem o descanso ao Sábado como prerrogativas fundamentais. Ele confronta várias vezes os sacerdotes do Templo de modo a provar-lhes que as suas crenças e costumes estão errados e configuram uma errada interpretação das escrituras reveladas. Apresenta-se também como aquele que completará os “mandamentos de Deus”, acrescentando aos já 10 existentes um outro que parece dar sentido e vida todos os outros: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Ou seja, para Cristo é menos importante o cumprimento estrito e literal da regra e do mandamento do que o espírito da lei que é, em si mesmo, Amor.

Quanto ao Antigo Testamento ou Pentateuco, é preciso que se diga em primeiro lugar o seguinte: a escrita original dos cinco livros é em hebraico antigo. O hebraico antigo não tem vogais, mas só consoantes. A razão é simples: toda a tradição antiga é oral. As histórias eram memorizadas e transmitidas de geração em geração, e assim o foi por milhares de anos. Os primeiros povos semitas privilegiavam a oralidade à escrita. Neste sentido, o suporte escrito servia apenas como auxiliar de memória ao registo oral. Ou seja, só quem já sabia a história de cor podia interpretar a história escrita! Quem não conhecesse a história não tinha meio de a interpretar ou sequer de saber do que tratava. Além disto, o hebraico é uma língua extremamente flexível. Não existe apenas uma interpretação possível para um determinado texto, mas várias ainda que apontem sempre para um mesmo sentido. Aquele que lê e interpreta embarca numa perigosa aventura, pois está não só a ler mas a reescrever, pois só é possível dar sentido ao texto se se lhe introduzir as vogais. Neste sentido, acredito que os judeus, mais habituados a interpretar e com conhecimentos mais aprofundados do hebraico e da história do seu povo, são mais capazes de compreender não só o que está escrito, mas sobretudo o que não está escrito, ou pelo menos sub-entendido. O Cristianismo, ao querer impor a sua hegemonia sobre os textos bíblicos, interpretou sempre à sua própria maneira e frequentemente traduziu mal a partir do hebraico. Não só traduziu mal como apresentou interpretações unívocas e literais de muitos dos textos. A verdade é que nenhum dos textos do Antigo Testamento pode ser interpretado de modo literal. O Génesis, por exemplo, é um poema mitológico antigo que deriva provavelmente do cosmogonias babilónicas, ou quem sabe mesmo egípcias. A história do dilúvio e da arca de Noé tem todo um conjunto de similitudes com o mito de Gilgamesh, lendário rei sumério metade homem-metade deus que terá existido no séc. XXVIII A.C.

Abrãao - o Grande Patriarca de onde derivam as 3 grandes religiões monoteístas – era natural de Ur, cidade babilónica do Crescente Fértil de onde se acredita ser originário o primeiro grande código legislativo, o Código de Hamurabi. Os 10 mandamentos apresentam grandes semelhanças, no essencial, com este primeiro código. É também verdade que os judeus estiveram exilados no Egipto, e que não só seriam escravos como designa o livro do Êxodo, como em grande medida terão adquirido importantes conhecimentos religiosos, arquitectónicos e místicos que depois lhes seriam por demais úteis na construção do seu próprio templo. Terão chegado ao Egipto completamento dispersos, e dele terão saido unidos nas chamadas doze tribos de Israel – tribos de Rúben, Simeão, Levi, Judá, Zebulom, Issacar, Dã, Gade, Aser, Naflali, Benjamim, Manassés e Efraim – em direcção à Palestina.

Ainda assim, é importante denotar que grande parte da mensagem escrita parece estar numa série de outros dados mais subtis relacionados com certos aspectos místicos. Por exemplo, a importância do número 7, 12 e 40. Foram 7 os dias da criação, são 7 as qualidades do sábio, 7 as partes do corpo humano, 7 céus, 7 planetas, etc; são 12 as tribos de Israel, são 12 os meses, 12 os profetas menores, 12 são os apóstolos de Cristo; 40 anos estiveram os judeus no deserto, 40 dias esteve Cristo no deserto a ser tentado. Há uma lista infindável de relações numéricas que podem ser encontradas e que têm relação com aspectos místicos muito mais antigos que a religião judaica. Certos estudiosos acreditam inclusive que a escrita bíblica em hebraico esconde significados até hoje ocultos, ou só cognoscíveis para meia dúzia de iniciados. Outras correntes afirmam que é o próprio futuro que está inscrito nos caracteres hebraicos.

O que é mesmo certo é que acerca dos livros da Bíblia nem tudo o que parece é. Há uma dimensão cultural, mitológica e histórica que se deve ter em conta e que vale a pena estudar. Quem acredita deve acreditar sabendo aprofundar a sua própria crença. Saramago parece estar mais preocupado em tornar mais ignorantes aqueles que já por natureza o são, os mesmos que nunca leram nem se preocupam em fazê-lo com atitude crítica ou crente. Diga-se o que se disser, a Bíblia é inseparável da própria civilização e do modo de vida no qual estamos inseridos.

O que é estranho no senhor Saramago é que é tão iconoclasta e irreverente perante a ortodoxia religiosa, mas tão ortodoxo e rígido em relação à sua própria religião pessoal – o comunismo. O que tem o nosso Nobel a dizer acerca do livro vermelho de Mao, ou do Manifesto do Partido Comunista de Marx?

quinta-feira, outubro 15, 2009

Mente e Processo de Decisão


Não desvirtuando o objectivo matricial deste blog, deixo-vos um esboço do artigo que estou a escrever sobre o processo de decisão, em parte como resposta ao livro da Dra Sofia Miguens, "Racionalidade". Nele procuro elaborar eu próprio, sem recurso a referências alheias, uma definição do processo de decisão.



Decidir é escolher. É o acto de seleccionar determinado rumo de acção em detrimento de outros rumos possíveis. Decidir - se é de facto um acto de liberdade e não expressão de um puro determinismo – implica actualizar uma possibilidade no âmbito de um leque de possibilidades na qual aquela se insere. Obviamente, a possibilidade não se torna acto por si mesma, mas através de um decisor. O decisor é o sujeito que faz a escolha, deliberando e seleccionando das escolhas possíveis aquela que melhor lhe convém para atingir determinado fim. Em termos formais, a decisão visa sempre um determinado fim. Neste sentido, a decisão não só não se toma por si só, como não se toma sem um acto anterior de deliberação.

Á escolha precede o acto de deliberar, ou seja, o de avaliar qual das possibilidades mais convém à concretização de um determinado objectivo. O acto de deliberação tem como intenção ou motivação a sopejagem das hipóteses possíveis e a conveniência de cada uma para a concretização da finalidade para que tende a decisão. Essa pesagem, ou avaliação deliberada, implica a análise das consequências de cada uma das escolhas possíveis. Cada possibilidade contém em si um determinado “estado de mundo” que é consequência provável da sua selecção pela acto de decisão. Num mundo de incertezas várias, o decisor tem de tomar decisões que comportam sempre uma componente de risco, um possibilidade dentro da própria possibilidade de que o estado de mundo que se propunha actualizar não corresponda ao estado do mundo que, por fim, tem lugar. Portanto, o acto de deliberação implica antecipação de probabilidades, limitação de incertezas e controlo de danos.

Não há um meio absolutamente infalível para determinar o resultado de um acto de decisão. Não existe um meio capaz de expurgar toda a contingência, assumindo que um estado de mundo se segue necessariamente a outro. Talvez daqui surja a associação do acto de decisão ao ser racional, ou seja, ao ser capaz de contemplar na possibilidade a sua dupla-proporção ou ratio de necessidade e contingência. Enfim, a sua probabilidade. Em grande medida, um decisor racional procura de diversas formas reduzir esse ratio de contingência inerente à escolha, nomeadamente através da invenção de métodos ditos científicos. O objectivo da ciência, da matemática aplicada à física, da estatística, não é apenas lúdico ou fruto da pura curiosidade humana, mas fruto da necessidade de diminuir o ratio de imprevisibilidade na decisão, impondo determinadas regras e leis que exprimam uma ordem cognoscível e passível de constituir um método de previsão fiável. Só um decisor que seja capaz de ter consciência da imprevisibilidade, ou que conheça os seus perigos – ou mesmo os tenha sentido na pele – é capaz de fazer ciência.

É o aspecto evolutivo da racionalidade e da decisão. As decisões bem tomadas funcionam melhor em termos evolutivos do que as mal tomadas. Dos que tomaram decisões erradas não reza a história; pelo contrário, dos que souberam controlar a imprevisibilidade muitas histórias se podem contar. Ao contrário do que muitos psicólogos evolutivos afirmam, essa capacidade de deliberar segundo determinadas regras de previsibilidade tem raízes num dado importante muitas vezes descurado – a emoção. A natureza da evolução inventou determinados instrumentos de decisão, nomeadamente determinadas sensações – medo, prazer, dor -. O medo permite ao decisor tomar consciência do erro de determinada escolha antes sequer de a tomar. Antes de um animal ter medo do fogo, muitas gerações de animais tiveram de se queimar e mesmo de morrer. Múltiplas gerações tiveram de aprender à custa do erro o valor da cautela e da prudência. Curiosamente, Santo Agostinho no séc. V aborda precisamente a questão da vontade, na perspectiva de que ela pode ser concupiscível ou irascível, ou seja, naturalmente tende para o que lhe é bom e afasta-se do que lhe é mau.

Perante o precipício, tomar a decisão de parar e recuar teve melhores resultados do que a de dar dois passos em frente. Naturalmente, a prudência é já uma espécie de dado probabilístico inscrito nos próprios genes – inata - no sentido em que o sujeito instintivamente está consciente da grande probabilidade da queda, e do modo como esta o prejudica enormemente enquanto ser vivo. Perante tais circunstâncias a decisão é simples. Contudo, nem sempre este conhecimento tácito e instintivo tem ascendente sobre a escolha do indivíduo. Sabemos que, em certas circunstâncias, a decisão é contrária às probabilidades e aos “avisos” inscritos na memória genética. Por exemplo, quando se trata de cometer suicídio, a deliberação que conduz a esta decisão não vai de encontro ao que seria de esperar. A decisão de acabar com a própria vida vai contra o instinto natural de sobrevivência, contra o medo e a certeza do perigo da queda, ou da bala, ou do comprimido.

Estou já de certa maneira a descer do patamar de uma análise formal da decisão, para uma descrição da prática da escolha do decisor humano. Porém, teremos nós essa legitimidade? O que me leva a acreditar que o ser humano é realmente capaz de decidir? Haverá alguma correspondência possível entre o quadro formal da decisão e o aspecto heurístico do acto de decidir? Perante tais questões, sou imediatamente levado a pensar que uma aparente análise formal mais não é do que uma projecção do plano do concreto e prático em direcção a um plano ideal, ou seja, o mais funcional e perfeito possível. A “análise” projecta a forma como deveria ser, e não como de facto é. Neste sentido, não existe uma “análise” no verdadeiro sentido do termo. Por exemplo, quanto à linguagem, quando se pretende criar um quadro formal que seja a expressão pura da língua, à semelhança de um Frege, ou desvelar uma espécie de módulo mental linguístico que contenha uma gramática formal de toda a linguagem como procura fazer um Chomsky, não me parece que o objectivo de provar a existência de tal formalidade seja concretizado. Qualquer tentativa de “platonizar” a estrutura da língua não passa de um esforço de descrição daquilo que a língua deve ser e como deve funcionar, mais do que aquilo que ela verdadeiramente é e como funciona. É mais uma forma de se tornar previsível o caos linguístico, procurando matematizar os processos de comunicação e raciocínio expressos através do símbolo. É por isto que Frege procura transpôr para a linguística princípios matemáticos, e Russel segue-o em muitos aspectos. É por isso que Wittgenstein chama a este exercícios formais jogos de língua. Uma frase ou proposição exprime um pensamento, uma crença ou um desejo. A estrutura ideal de qualquer proposição não é apenas a sua estrutura lógica, nem o seu carácter de verdade ou falsidade. Ser verdadeira ou falsa não é condição sine qua non para que faça sentido, mas apenas uma condição de adequação da proposição à realidade que procura descrever. Mas também é verdade que não se pode atribuir valor de verdade ou falsidade em relação a uma proposição que exprima crença ou vontade. Nesse caso, a verdade ou a falsidade apenas depende do sujeito que emite a proposição. Portanto, a estrutura lógica pura da linguagem é redutora e não faz jus à infinitude das possibilidades. Ora, acredito que o mesmo acontece com o processo de decisão.

Nesta senda, poderíamos afirmar que existem várias formas de decidir, e que só uma abordagem científica ou naturalista pode categorizar todas as possibilidades partindo da descrição dos fenómenos ligados ao processo de decisão. Por um lado, tal abordagem tem mérito na medida em que nos dá uma visão mais abrangente do processo em si, do modo como o comportamento do decisor se relaciona com o mundo, se adapta, acomoda, ou assimila. É a típica abordagem psicologista dada a um certo behaviourismo, a um naturalismo epistemológico quineano, ou, se quisermos também, a um construtivismo piagetiano. É uma abordagem que satisfaz muitos daqueles que defendem o primado da ciência, dos que pretendem reduzir toda a realidade a uma espécie de monismo. Curiosamente, também esta abordagem é, só por si, extremamente redutora. E é-o por uma razão muito simples, que está relacionada com o que já afirmei anteriormente – também esta abordagem exclusivamente científica ou psicologista pretende apresentar modelos de decisão que tornem previsível o comportamento do decisor, ou seja, que reduza, em última análise, o processo de decisão a “módulos” de input e output, como é tão do gosto dos filósofos americanos. Este tipo de modularidade que é proposta, por exemplo, por um Fodor, pretende que o comportamento e, consequentemente, o processo de decisão se reduza a um conjunto de inputs e outputs no seio de vários módulos mentais, fechados sobre si mesmos, e em grande medida autónomos. Ora, esta perspectivação recorda-me de imediato a tentativa de Leibniz de reduzir o real a mónadas, também elas solipsisticamente autónomas e absolutas. Na minha perspectiva, estas tentativas de explicação dos processos mentais não passam de esforços atomistas no quadro de outras tentativas semelhantes, cujo pecado original terá sido o atomismo psicológico de Wundt – ou mesmo a frenologia que o antecedeu - passando depois pelo atomismo lógico de Russel e terminando provavelmente no modularismo fodoriano ou na hipótese dos módulos darwinianos. Vejamos: trata-se de uma atitude que deriva da concepção epistemológica de que o objecto é a soma das suas partes, e que só a análise das suas partes pode levar-nos a compreender o todo do objecto. Deriva talvez da própria ciência natural que pretende reduzir os compostos às suas partes simples, a molécula ao átomo, o átomo ao quark.



Esta é uma tendência que pervade a filosofia em diversas disciplinas, nomeadamente na metafísica e na epistemologia. No plano da ontologia fala-se em categorias, independentemente do paradigma – ser, consciência, linguagem -. As categorias são também, em larga medida, módulos que permitem o conhecimento, através dos quais e pelos quais o real é organizado e se transforma em fenómeno. Em Kant, por exemplo, as categorias a priori do entendimento e da sensibilidade permitem a síntese dos dados da experiência gerando fenómenos passiveis de serem cognoscíveis. Não deixam, portanto, de existir inputs e outputs de dados num certo sentido. Outros filósofos, como Hartman, procuraram também modularizar o real propondo esferas ou dimensões do cognoscível. No caso particular de Hartman, a dimensão do cognoscivel abrange a esfera do real, do ideal, gnoseológica e lógica. Portanto, se se fez e continua a fazer uso de paradigmas categorias no plano da ontologia, não é de admirar que se proponham paradigmas modulares no plano da teoria da mente.




Uma definição abrangente de Decisão

Como já referi anteriormente, compreender o processo de decisão implica compreender o processo de deliberação racional. Compreender o processo de deliberação implica, por sua vez, a compreensão das regras que o subjazem – se é que tais regras existem e não passam apenas de algum tipo formal de explicação -. Mais uma vez, a finalidade de tal elaboração formal visa o aumento do grau de previsibilidade do processo decisório, instituindo regras funcionais que permitiriam eventualmente a elaboração de metodologias de previsão – ou teorias -.

Afinal, quem – ou o quê – decide? Chamemos-lhe “decisor”. A entidade que decide é sempre, em qualquer circunstância, a mesma que delibera? Sentimo-nos tentados, por hábito filosófico, a dizer que sim. Contudo, não será também legítimo falar de “decisores colectivos”? Noutras palavras, é legítimo falar de um conjunto de indivíduos capazes de deliberar em conjunto e decidir da mesma forma, ou de deliberar em conjunto e delegar num só a tarefa de decidir? Deveremos, neste sentido, colocar em causa o carácter isolado e insular do processo de decisão? Somos, por hábito e herança conceptual, tentados a remeter o processo de decisão para um indivíduo isolado e até solipsisticamente fechado sobre as suas próprias regras deliberatórias. Agradeçamos ao Eu penso cartesiano, e também, em parte, à vontade e à revolução coperniciana de um Kant que deslocou o centro de gravidade dos transcendentais – cuja essência era anterior e causa da existência – de Deus, para o Homem e para o carácter transcendental da razão pura. Nesta senda, a razão é levada a “dobrar-se” sobre si mesma para compreender os seus próprios limites.

Hoje, muitos filósofos já não falam em “Razão”, mas em “Mente”. O processo de decisão cai, portanto, na alçada da chamada “Teoria da Mente”, cujo objecto é precisamente essa entidade um pouco obscura e abstracta denominada de “mente”. A mente, em princípio, é parte integrante do indivíduo. Digo em princípio porque é possível pôr em causa a existência da mente nos outros indivíduos exteriores a nós. É a questão dos “qualia”. Não temos garantias absolutas nem objectivas acerca da existência de “mentes” nos indivíduos que nos rodeiam, que vivem connosco, que passam por nós todos os dias na rua e com quem trocamos por vezes breves palavras. Num certo sentido, podemos apenas acreditar que todos esses individuos têm “qualia” e que não são meros zombies. É mais um daqueles princípios que tomamos como certezas à partida, meramente porque nos são úteis e suficientes. Desta forma, se a mente é apenas uma estrutura individual e autónoma nunca lograremos uma total compreensão e delimitação das mentes alheias, pois elas situam-se num plano ab-soluto que nos é ontologicamente inacessível. Contudo, nem aqui deveremos cair na tentação da absolutização ou na modularização das mentes individuais. Estas não são estruturas monadológicas. Porém, se há uma uma mente à qual aparentemente temos acesso objectivo e imediato, é à nossa. E mesmo aqui é preciso ter cuidado. Se tudo se passar desta forma, que legitimidade nos resta para descortinar regras subjacentes aos processos mentais a partir de um abordagem objectiva de algo que está ferido enormemente pela subjectividade? Há algum meio de fazer induções válidas acerca de regras gerais sem cometer o erro da sobre-generalização? Existe algum plano comum, comunicacional entre as diversas “subjectividades” mentais que permita tal análise?

Aparentemente, sim. O intercâmbio possível faz-se através da linguagem, entendida aqui num sentido lato, ou seja, todo e qualquer tipo de expressão simbólica passível de criar consensos, transmitir significados ou estados mentais ou do mundo, gerar acções ou reacções performativas (por ex: os actos de fala [Austin]). Este intercâmbio é permanente e contínuo, uma espécie de fluxo semântico entre indivíduos e símbolos. Ele põe em comum significados, e como tal se chama de comunicação. A comunicação é deveras importante, em particular para a sobrevivência e sucesso evolutivo do ser humano, pelo que a estrutura a que chamamos mente é em grande medida um sistema de compreensão, descodificação, síntese sintática e produção semântica. Desta forma, não é possível falar em processo de decisão alienado do processo de comunicação, na medida em que a fixação de crenças que servem de base ao processo de deliberação muito deve ao fluxo comunicacional. Atrever-me-ia até a afirmar que o processo comunicacional existe também como meio de diminuir o ratio de imprevisibilidade do processo de decisão, reforçando crenças e opções que são a matéria-prima do processo de deliberação. Portanto, discurso e palavra são sintomas de racionalidade, sendo que não se pode falar em racionalidade sem se falar em discurso – não é por acaso que razão e discurso derivam da mesma palavra grega logos - .

Façamos uso de um exemplo mais ou menos ilustrativo. Um jovem pretende escolher o curso que pretende frequentar na universidade. Sabemos de antemão que a decisão será só sua, mais ninguém pode decidir por si (a não ser que os pais sejam muito rigidos e o forçem a seguir um curso que lhe dê algum “estatuto”). Contudo, nessa decisão que terá de tomar há determinados aspectos que deve ter em conta. Ele quer seguir um curso que esteja de acordo com a sua vocação porque para ele a realização profissional é muito importante. Por outro lado, quer fazer uma escolha que não lhe traga problemas de empregabilidade no futuro. Portanto, há três crenças que estarão na base da sua deliberação: 1) um curso universitário é uma mais-valia fundamental para a vida futura; 2) só é possível a realização profissional – e por inerência, a felicidade – se escolher um curso que esteja de acordo com a minha vocação; 3) preciso de um bom emprego e só um curso que me garanta empregabilidade pode assegurar-mo. É óbvio que estas 3 crenças têm muitas outras variantes e, em última análise, assentam noutras crenças que por sua vez assentam noutras quase até ao infinito. Como é que estas crenças adquirem consistência e influenciam em última análise a decisão final? Ainda que existam determinadas crenças base, o jovem irá concerteza falar com os pais, os amigos, com outros jovens que estejam já a cursar um ou outro curso, com professores, irá ler panfletos, consultar sites, etc. O jovem – em termos ideais obviamente – tudo fará para que a sua deliberação seja o mais abrangente possível e, portanto, o menos susceptível à incerteza e à contingência. Nesse sentido, será também com base no testemunho comunicacional que ele tomará a sua decisão final, na medida em que este serviu para dar ou retirar consistência às suas próprias crenças.

Sabemos que, muitas vezes, um bom conselho ou a palavra de uma “autoridade” num determinado tema é suficiente para dar mais consistência às nossas próprias crenças, ou até para que abdiquemos delas em detrimento de outras que nos surgem mais legitimas. Quanto mais difícil é uma decisão, quanto maior é a responsabilidade, maior a necessidade de nos informarmos bem, de nos estribarmos em opiniões alheias, de ouvirmos os outros. Esta necessidade parte também de uma decisão racional baseada em crenças determinadas. Neste ponto em particular podemos desvendar um aspecto do processo de decisão que também o influencia em grande medida, e que nenhuma visão computacional pode abranger com justiça. O decisor não decide simplesmente, ou seja, o processo não é linear e impessoal nem se baseia numa avaliação autónoma e modular. Cada decisão não consiste simplesmente num início e num fim determinados e desligados de uma qualquer anterioridade ou história. Não se trata simplesmente de input-processamento-output. No que respeita ao decisor humano, existe uma consciência que também influencia o resultado do processo. Essa é a consciência da importância ou da responsabilidade implicada no processo de decisão. O jovem tem consciência da importância da escolha do curso que pretende seguir, ou seja, do modo como a sua decisão será decisiva para a sua vida e tudo o que viver significa. Há uma dose de responsabilidade inerente que tem o condão de reforçar a necessidade de expurgar a imprevisibilidade de todo o processo. Por um lado, se a atitude é racional já o mesmo pode não acontecer com os métodos. Não é linear que o decisor faça uso de métodos estatísticos, matemáticos, científicos para deliberar. Pode simplesmente consultar um tarólogo ou ler um horóscopo no jornal.

A natureza do processo de decisão não consiste em metodologias ditas científicas, matemáticas ou lógicas. É por uma necessidade íntima do próprio processo, uma necessidade de completude em relação às suas próprias limitações, de superação das suas próprias lacunas, que o decisor se vê compelido a fazer uso de metodologias que sirvam de complemento ao processo em si mesmo. Se o decisor se vê num certo sentido isolado e alienado do exercício comunicacional, ou mesmo de qualquer metodologia fiável de previsão e decisão, é certo que o processo em si mesmo será mais dado à intuição e ao risco. Pensemos num exemplo: quando fazemos o euromilhões somos forçados a escolher 5 números e 2 estrelas. Esse processo de escolha é naturalmente um processo de decisão. Como decisores que somos, temos perfeita consciência da falibilidade das nossas intuições, pelo que as escolhas que faremos serão em grande medida aleatórias sem que nos percamos muito com deliberações que sabemos serem inúteis perante a ausência de metodologias fiáveis que reforçem as nossas crenças. Contudo, neste caso em particular a decisão não acarreta grande responsabilidade, ainda que seja de alguma importância – sobretudo se o prémio for grande e formos bastante pobres - .

Continua

terça-feira, outubro 13, 2009

Sobre a Prematuridade de um Nobel



Para espanto de todos – e inclusive do próprio – Obama foi galardoado com o prémio Nobel da Paz de 2009. O carácter consagrativo e denso de um prémio desta envergadura deixou muita gente perplexa e em dúvida acerca do mérito de Obama. Pois, que fez Obama de concreto para o merecer? Não será demasiado cedo? O próprio Obama teve dúvidas e não deixou de o demonstrar no discurso de aceitação. Interpretou este prémio, não como a recompensa por actos concretos em prol da paz, mas como um incentivo e uma “chamada à acção”. Obama é, em larga medida, o grande culpado de tudo isto. Á sua volta criou uma aura de expectativa, uma quase divinização do seu papel apresentando-se como o portador de todas as soluções – ou quase todas -, da Esperança e da renovação. Estou quase certo que um presidente menos carismático, menos gerador de grandes expectativas, nunca seria agraciado com o Nobel tão cedo, sem pelo menos algum tipo de prova dada, de passo concreto e visível em prol da Paz.

Repare-se: geralmente, o Nobel é atribuído para criar uma certa dose de visibilidade. No caso de Obama, ele não precisa de visibilidade. Do que ele precisa é de um determinado tipo de força que lhe permita pressionar e ter legitimidade para levar a cabo importantes reformas que conjuguem interesses díspares e aparentemente inconciliáveis. O Nobel não lhe foi atribuído para que tivesse mais visibilidade mediática, mas para que tivesse mais influência e legitimidade política, não só dentro das fronteiras dos EUA mas em todo o mundo. Recentemente, logrou unir todas as potências nucleares e conseguiu que chegassem a um acordo de intenções para reduzir o armamento nuclear de forma multilateral. A sua abordagem cuidadosa, não ofensiva, dialogante e aberta, está a levar os restantes líderes mundiais – muitos deles tradicionais rivais dos EUA – a reverem as suas políticas. Obama tem esse bom senso de perceber que perante os enormes desafios que os EUA enfrentam – como sejam duas guerras e um crise económica grave – só uma atitude cooperante pode conduzir ao sucesso. Os EUA não atingirão os seus objectivos de retirar do Afeganistão e do Iraque sem o apoio dos restantes países da NATO. Já foi tempo em que os EUA, confiantes no ídolo de pés-de-barro do seu próprio poderio económico e militar, se lançavam em perigosas empresas bélicas à revelia do Direito Internacional, e em particular da ONU. Começar foi simples, mas como diz no adágio popular, Quem vier atrás que feche a porta. Obama sabe, e disse-o recentemente, que o Afeganistão é agora um problema não só dos EUA, mas de todos os parceiros da NATO. Porém, ele também sabe que não foram os restantes países da NATO que provocaram o problema... nem sequer a sua administração, em boa verdade.

Obama também sabe que para resolver a questão israelo-palestiniana precisa de parcerias, nomeadamente entre o mundo árabe. O mesmo acontece com a questão iraniana. Não será através de uma abordagem unilateral que tais problemas serão resolvidos. Pelo contrário, uma abordagem unilateral e agressiva para com, por exemplo, o Irão, apenas servirá para empurrar este país para novas alianças, gerando novos ódios e instabilidades. É preciso envolver a Rússia, a China, a Índia, o Egipto, a Síria, etc. É preciso resolver os problemas um a um através de estratégias de pressão regional e internacional. Neste sentido, Obama procurou, nos primeiros meses do seu mandato, reconciliar-se com o mundo árabe através de variados discursos, como o que foi proferido no Cairo. O primeiro passo passa pela reconciliação; o segundo passo passa pela negociação. Nenhuma negociação será profícua quando uma das partes se considera superior à outra. Obama percebeu-o.

Perante isto, veremos se esta nova atitude trará frutos visíveis e apetecíveis. A atitude está correcta, mas os actores internacionais são independentes e imprevisíveis, e muitas vezes agem de má fé. Por mais que Obama pressione Netanyau no sentido de acabar com os colonatos em território palestiniano, a decisão não depende daquele. Neste sentido, o presidente dos EUA mais não pode fazer do que explicar de forma inteligente e precisa que as soluções existem, mas que implicam cedências de parte a parte. Se algo correr mal, ou não correr de acordo com as expectativas, tem de se ter em conta que num mundo multipolar as responsabilidades estão repartidas. Neste sentido, a responsabilidade para a resolução dos grandes problemas mundiais depende de todos e de cada um. Ter poder é, em primeiro lugar, convencer.

Notas finais: De notar que Obama deu início ao processo de dissolução do centro de detenção de Guantánamo, e procurou abrir um novo ciclo nas relações com a América Latina e com o mundo árabe.

segunda-feira, outubro 05, 2009

5 de Outubro de 1910 - Quem somos, de onde vimos, para onde vamos...


Neste 5 de Outubro permitam-me começar por dar a conhecer algumas das extraordinárias pérolas acerca dos significado dos símbolos da bandeira portuguesa, veiculadas pela SIC numa entrevista de rua. Alguns, quando questionados, simplesmente abanavam a cabeça sorrindo complacentemente com a sua própria ignorância, como se se tratasse de uma virtude e não de uma grave falta. Uma senhora, quando questionada acerca do significado dos cinco castelos, respondeu que se tratava do símbolo da “Anarquia”, porque nós “vivíamos em regimes de anarquia”... O marido, tão ou mais ignorante, anuiu à extraordinária resposta da esposa com um tímido “pois”. Um outro, até bastante jovem, respondeu com a memória fresca do que aprendeu em tempos, dos livros de escola, que o verde significa a esperança, e o vermelho o “sangue derramado”. Já quando questionado acerca da esfera armilar, disse que naquela altura não se lembrava... Saber ou não o significado das cores não me parece tão importante como perceber – aliás bastante intuitivamente – que a esfera armilar representa a nossa vocação globalizadora, ou seja, a epopeia dos descobrimentos. A esfera é a metáfora do globo terrestre. Intuitivo, não é?

Quer-me parecer que os portugueses não só andam divorciados da política, não só se abstêm de um direito que é só deles e que consiste em escolher quem governa – 36 por cento de abstenção nas últimas eleições - como andam descasados da portugalidade e de tudo o que isso significa. É grave, não há dúvida. E seria só grave se a ignorância se limitasse aos símbolos da portugalidade, mas sabemos que ela é muito mais ampla e abrangente, atinge todos os domínios não só da portugalidade mas também da humanidade. A ignorância é, hoje, um modo de vida. É “normal” não saber; é normal sorrirmos complacentemente o facto de não sabermos; é normal sorrirmos complacentemente daqueles que não sabem. Porquê? Porque o que interessa é ter competências “práticas”, “tecnológicas”. Numa palavra que parece tudo resumir – “úteis”! Agora, isso de saber o nome do rei ou a origem do hino, ou a data da implantação da república... isso são curiosidades, úteis apenas para quem gosta de ser divertir a jogar trivial pursuit com os amigos ou a família. Caprichos dignos de quem não tem mais nada para fazer, de quem não trabalha, de quem “tem tempo para perder a ler livros, ou a ver documentários do canal história...”

Não há tempo; não há paciência; isso são caprichos de quem não tem mais nada em que pensar. Eis as três grandes razões apresentadas por todos aqueles que não sabem nem querem saber. A minha questão é simples: como podemos compreender para onde vamos, se não sabemos de onde viemos? Como podemos construir futuros sobre passados mal compreendidos? Como se pode ser português sem se conhecer Portugal? Ou ser português é ser apenas adepto da selecção e comprar bandeiras nos chineses com pagodes em vez de castelos? Até os americanos, cuja capacidade de romper com as instituições antigas é lendária, construiram o seu país na base de modelos clássicos de governo, sobretudo baseados na república romana. Ou seja, para se ser inovador, não é preciso romper-se radicalmente com o passado, pois isso conduz a totalitarismos e a desorientação geral.

Há uma grande diferença entre ser-se nacionalista, e ser-se português. Não se pede aos portugueses que sejam nacionalistas, pois o nacionalismo é outra grave e perigosa forma de ignorância. Também ele implica desconhecimento da história e, ainda mais grave que isso, deturpação. O futuro não implica fechamento ou política do “orgulhosamente sós”. O futuro – assim como aconteceu no passado – implica abertura, gosto pelo risco, pela aventura e pelo conhecimento. Ser português é ser global, pois foi Portugal o primeiro país a fazer algo parecido com globalização no sentido em que hoje a entendemos. Não só levamos cultura como a trouxemos. Influenciámos e fomos influenciados. Tivemos um longo império, o mais longo mesmo em comparação com o império romano! Fomos os primeiros a conquistar – Ceuta em 1415 -, e os últimos a perder – Macau em 1999 -. Antes disso, éramos já um país independente desde 1143. No total, desde a fundação da nacionalidade até à conquista de Ceuta passaram 272 anos, e até à descoberta do caminho marítimo para a Índia passaram-se 355. Bastaram a Portugal menos de quatro séculos para obter os conhecimentos, a coragem e os meios para se lançar à descoberta. É verdade que, pelo caminho, foram muitos os erros, as vicissitudes, as imoralidades cometidas e sancionadas pela cristandade da qual parecíamos ser uma espécie de arautos.

O 5 de Outubro representa o fim de 767 anos de monarquia. Só para o ano conseguiremos completar 100 anos de república, ou seja, 1/13 do total de anos que vivemos em monarquia. Não pretendo defendê-la, pois acredito nas muitas virtudes da república. As pessoas têm de se governar a si mesmas, como se pretende de uma sociedade adulta feita de cidadãos, e não de súbditos. Acredito que toda a história tem uma palavra a dizer, e é mais que certo que os primeiros anos da república foram de um radicalismo iconoclasta extremo cuja única virtude foi conduzir-nos ao Estado Novo. Já para não falar nos terroristas da carbonária...

É simples: ou um povo aprende a viver “sem pai”, ou está condenado a que apareçam muitos pais bem mais duros que o primeiro.

Saber não ocupa lugar e evita dizer - e fazer - asneiras.