O mistério da
consciência – nota introdutória
O
filósofo norte-americano David Chalmers divide o problema da consciência em
dois níveis[1]. O primeiro, o dos “easy
problems”, tem que ver com o funcionamento dos processos neurológicos relativos
à cognição, perceção, emoção, etc. Isto é, tem que ver com a compreensão do
funcionamento da “maquinaria” biológica que faz do cérebro um extraordinário
mecanismo de processamento de informação, reconhecimento de padrões,
conhecimento, perceção, etc. A neurociência têm atalhado estas questões com
bastante sucesso nas últimas décadas, e não é de todo implausível que a maior
parte delas venha a ser resolvida satisfatoriamente nos próximos dez, quinze
anos. Este sucesso deve-se sobretudo ao progresso significativo das tecnologias
de análise e mapeamento ao serviço da investigação neurocientífica. Aliás, como
se sabe, foi posto em marcha recentemente um projeto de mapeamento total do
cérebro para os próximos anos (o “BRAIN Initiave”[2]) apadrinhado
pelo governo norte-americano, que visa precisamente fazer um mapa completo da
anatomia do cérebro e resolver – ou lançar as bases para a resolução – de
muitas destas questões.
De facto, por mais rigorosos que
sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e profundos que sejam os
tratados que descrevem certos aspetos do seu funcionamento, há uma dimensão da
consciência que continua a escapar aos melhores (cientistas e filósofos). Esta
dimensão é precisamente o segundo nível do problema identificado por Chalmers,
o do “hard problem” da consciência. Porque, admiravelmente, os neurocientistas
são capazes de explicar em parte o modo como o nosso cérebro identifica, por
exemplo, uma face conhecida na rua, descrevendo os processos neurológicos que
lhe estão subjacentes; conseguem, inclusive, descrever com algum sucesso o modo
como o cérebro transforma os dados dispersos que penetram pelos sentidos em
padrões informacionais reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na
prática, traduz a informação que vem do mundo (por ex., através da luz), em
padrões, imagens mentais, ideias, perceções. Aquilo que eles falham
permanentemente em explicar, a “pedra no sapato” da investigação
neurocientífica, é o modo como somos capazes de percecionar subjetivamente esses padrões, essas imagens mentais,
essas perceções. Dito de outro modo, a questão fundamental é a de saber como é possível a experiência subjetiva,
que na prática significa perguntar acerca da natureza da mente e do mental, da
sua qualidade (qualia).
Pois, apesar da reconhecida importância da descrição e explicação dos
processos fisiológicos que estão na origem da cognição, memória, reconhecimento
de padrões, etc., não se pode negar que o cérebro não se limita a ser uma
máquina de processamento de informação, mera exterioridade toda ela circuitos,
módulos e redes neuronais. Existe uma realidade por detrás de tudo isso que não
podemos ignorar ou “atirar para debaixo do tapete”, porque todos a
experimentamos a cada momento de uma forma intensa e vívida, e sem ela não
seriamos diferentes do nosso computador pessoal, ou, em verdade, de um simples
microondas. É a experiência da interioridade,
ou, se quisermos, da subjetividade, esse
espaço interno, irredutível e intransmissível onde decorre toda a nossa vida
mental, cognitiva, emocional, em suma, significante para nós. Se duas pessoas olham para a mesma árvore, é certo que
ativam os mesmos circuitos neuronais responsáveis pela cognição e perceção
(ativação que pode ser visível através de um scan), mas cada um chamará sua à perceção que tem da árvore, porque
cada um a ela terá acesso no reduto intransmissível da sua subjetividade (algo
que está completamente inacessível à tecnologia de rastreio, por mais
desenvolvida que seja). Se duas pessoas se queimam com um fósforo, o mesmo
acontece: cada um sentirá a dor respetiva de um modo único, subjetivo, pessoal,
intransmissível.
Toda a perceção interna ou externa
(i.e., de estados internos como a tristeza e a alegria, ou resultantes de
estímulos provenientes dos sentidos) tem uma componente subjetiva. Com efeito,
se quisermos ser rigorosos, não há perceção externa, porque toda a perceção é interna, isto é, ocorre no espaço de uma
interioridade subjetiva. E na perceção interna, enquanto experiência subjetiva,
reside o núcleo do problema da consciência.
Insistimos neste ponto: a descrição
fisiológica do modo como o cérebro produz imagens mentais, padrões, ideias, não
explica esse “ver” subjetivo (chamemos-lhe assim), que constitui a perceção
interna acessível, de forma privilegiada, exclusivamente aquele sujeito que
habita uma dada interioridade. Um supercomputador é também capaz de processar
informação e produzir “imagens”, mas estas não são percecionadas subjetivamente
por ele. É preciso que outrem que não o computador interprete essas imagens
projetadas num ecrã, um outrem dotado de
uma subjetividade.
Entendemos, por conseguinte, que o desbloqueamento do impasse do problema
da consciência - que algumas das melhores mentes consideram pura e simplesmente
irresolúvel, e outras resolúvel a seu tempo, mas ainda fora do alcance dos
nossos instrumentos técnicos e teóricos[3] - implica
uma mudança de paradigma que não atribua a emergência da consciência
exclusivamente aos processos bio-fisiológicos do cérebro, mas, quem sabe, a
dimensões do mundo quântico ainda desconhecidas. Neste trabalho apresentamos
uma hipótese que vai nesse sentido, ainda que de um modo preliminar e,
admitimos, bastante especulativo. Limitamo-nos, em parte, a insistir na
proposta já feita por alguns físicos, entre os quais Roger Penrose[4], de
que o mundo quântico talvez possa ter um papel muito importante – senão mesmo
fundamental – na resolução do “hard problem” da consciência.
Além do mais, partilhamos também da visão de Chalmers[5] segundo
a qual o fenómeno da consciência deve cada vez mais ser entendido como algo que
está de algum modo inscrito no tecido fundamental do próprio universo, uma
espécie de força ou grandeza tão fundamental como, por exemplo, a gravidade, o
electromagnetismo ou até o espaço e o tempo, e não como um simples subproduto
biológico do cérebro, sem grande mistério.
Não dispomos, nem do conhecimento, nem da evidência, nem dos necessários
instrumentos científicos e matemáticos para sustentar cientificamente a nossa proposta.
Este é um artigo, antes de mais, especulativo, filosófico. O progresso do
conhecimento também se faz de imaginação, e por vezes, tal como propunha
Einstein, é preciso recorrer a uma nova forma de pensar, se um problema persiste
em não se deixar solucionar recorrendo aos velhos modos. Por vezes é preciso
dar um passo atrás, ver a “big picture”, e aceitar que as respostas podem vir
precisamente de onde menos se espera.
Ainda que a hipótese que propomos seja falsa, ou apenas incompleta, deve
pelo menos ser atendida por quem tem o necessário conhecimento e instrumentos
para a avaliar e testar. Este artigo foi escrito por filósofos (passe a
imodéstia), e não por físicos. Se for verdadeira, total ou parcialmente,
melhor. Se não for, como é extremamente provável que não seja, terá pelo menos
sido mais um degrau no processo de tentativa e erro através do qual progride o
conhecimento. É, todavia, segundo entendemos, dever de quem pensa, pensar, e pensar diferente quando
necessário, mesmo correndo o risco de errar, mesmo correndo o risco de perder
as boas graças do seus pares, o seu estatuto, a sua reputação. Tal como
defendia Popper, o progresso científico tem paralelo com a evolução biológica:
são mais os erros, as conjeturas que se vieram a revelar falsas, do que aquelas
que se vieram a revelar verdadeiras, do mesmo modo que foram mais os erros e os
ramos sem saída da evolução biológica do que os sucessos. Todavia, sem esta
imensidão de erros e falsas partidas nenhum progresso seria possível, ainda que
o preço a pagar tenham sido gerações inteiras de esforços e sacrifícios nunca devidamente
recompensados.
As forças
fundamentais do universo – partículas, campos quânticos, e interação entre eles
São conhecidas quatro forças fundamentais no universo, cada uma delas
dispondo de uma partícula que a transporta e transmite: a força electromagnética
é transmitida pelo fotão, a força gravitacional pelo gravitão (ainda por
descobrir), a força nuclear forte pelo gluão, e a nuclear fraca pelas
partículas W e Z. Estas partículas-transporte de força (force-carrier particles) são normalmente incluídas na categoria dos
“bosões”.[6]
Acresce a existência do chamado “bosão” ou “campo” de Higgs, que confere massa
à maioria das outras partículas pelo modo como interage com elas, e está
presente em toda a parte no universo.
Com efeito, cada uma destas partículas-transporte de força (ou
“partículas mensageiras”, como também são chamadas) deve ser vista, não no
sentido clássico, como uma espécie de berlinde de matéria em dimensão micro,
mas como um “quantum” de energia, isto é, como uma certa quantidade, muito
pequena, de energia pura, inserida num campo energético mais vasto que podemos
designar por “campo quântico”. Tal como explica Gribbin (1986),
“A energia surge em
unidades definidas, chamadas quanta, cada uma das quais com uma quantidade
definida de energia, ou de massa. As partículas são pedaços energéticos do
campo, confinados a uma certa região pelo princípio da incerteza[7].”
(211)
Neste contexto, cada campo de força, seja gravitacional, nuclear ou
electromagnético, não é senão um campo de energia onde ocorrem flutuações e
trocas energéticas constantes através de pequenas unidades ou “pacotes”
energéticos que se movimentam ao longo de “linhas de força”[8]. Cada
um desses “pacotes” é uma partícula, como um fotão, um electrão, um gravitão,
ou um gluão, mas pode também ser visto como uma onda, dado que cada unidade
definida de energia possui o seu próprio campo quântico, as suas flutuações
energéticas próprias, e só pode ser convenientemente descrito através de uma
“função de onda”[9]. É daí que vêm a chamada
“dualidade onda-partícula” que caracteriza o mundo subatómico, e que está na
base da física quântica.
O que nos importa aqui sublinhar, acima de tudo, é que existem várias
espécies de campo de força, que são, na prática, campos de energia ou “campos
quânticos”, que estão por toda a parte no universo, constituídos por unidades
definidas, “quantas” de energia às quais se convencionou chamar de
“partículas”, mas que também podem ser vistos como “ondas”, dado o seu
comportamento flutuante e fundamentalmente imprevisível. Com efeito, podemos
pensar na totalidade do universo como “uma multiplicidade de campos e partículas
a interagirem” (Id.: 208).
De facto – e este parece-nos um dos pontos mais relevantes -, nós
próprios e os restantes corpos materiais do universo, todos constituídos por
partículas atómicas e subatómicas, pedaços de energia, campos quânticos, interagimos com todas e cada uma das forças
que constituem a trama fundamental do cosmos, de tal modo que se assim não
fosse, seriamos de certo muito diferentes daquilo que somos. As forças cósmicas
que melhor conhecemos – gravitacional, electromagnética, nuclear forte e fraca,
campo de Higgs -, não se manifestam por si só, mas pelo modo como interagem e
influenciam o comportamento e estrutura da matéria, não apenas a nível
microscópico mas também macroscópico. Pois vejamos: a luz propaga-se através do
campo electromagnético (cuja partícula-transporte é o fotão). Mas, apesar de a
luz estar por toda a parte, em vários comprimentos de onda, só somos capazes de
ver a luz do dia se a nossa retina – ou a matéria atómica e subatómica da nossa
retina – estiver no caminho da luz, e for por isso capaz de interagir com o
campo electromagnético (logo, com as partículas-onda fotónicas). Só somos
capazes de ouvir as pessoas que falam connosco ao telemóvel, do outro lado da
linha, porque existe um dispositivo dentro do telemóvel que é sensível, isto é,
interage com o campo hertziano (uma outra forma de campo electromagnético que
está por toda a parte) que nós, seres humanos, nos tornamos capazes de
manipular de forma a comunicarmos a grandes distâncias, através da transmissão
electromagnética de “pacotes de informação”.
Analogamente, é através da interação com o campo gravitacional – dos mais
ubíquos do universo – que a matéria se agrega para formar estrelas e todos os
restantes corpos astronómicos, que os planetas orbitam as suas estrelas
respetivas, e que nós próprios somos exatamente aquilo que somos, com a nossa
estrutura corporal adequada à medida exata da força da gravidade terrestre,
graças à qual nós e tudo ao nosso redor – até o próprio ar que respiramos - se
mantém bem preso ao chão. Parafraseando Greene (2004:255), estamos todos
imersos num mar de campos gravitacionais. Em boa verdade, estamos imersos numa
plêiade de vários campos de força, com os quais interagimos permanentemente sem
nos darmos conta, e sem os quais jamais seriamos aquilo que somos, nem sequer o
próprio universo seria o mesmo. A nossa própria história evolutiva – e a de
todos os seres vivos conhecidos – foi decisivamente influenciada pela interação
com as várias forças cósmicas, na medida em que constituíram e constituem o
contexto físico em que a evolução se deu e dá ainda. Tudo o que somos,
bio-fisiologicamente falando, diz muito acerca do que o próprio universo é.
O campo de Higgs (também designado por “bosão de Higgs”) é um outro
exemplo de um campo de força com uma importância fundamental e, segundo se crê,
verdadeiramente ubíquo (há quem o chame de “oceano de Higgs”, por permear todo
o universo como uma espécie de “relíquia gelada” dos primeiros segundos do Big
Bang[10]). Segundo
se crê, é através da interação, a um nível quântico bastante profundo, com o
campo-partícula de Higgs (o tal “bosão”), que todas as outras partículas
subatómicas adquirem massa, e, por inerência, toda a matéria. Por conseguinte,
uma partícula, como, por exemplo, um electrão ou um protão, têm tanto mais
massa quanto maior for a sua interação com o campo de Higgs; isto é, dito de
outra forma, quanto maior é a resistência
que o campo de Higgs oferece ao movimento dessa partícula. Outras
partículas, como o fotão por exemplo, pura e simplesmente não têm massa, visto
que são tão pequenas que passam despercebidas ao campo de Higgs, i.e.,
simplesmente não interagem com ele.[11]
A nível macroscópico, todos podemos de facto “sentir” o campo de Higgs,
em especial quando experimentamos um movimento de aceleração (como quando o
carro arranca subitamente e ficamos com as costas pregadas ao assento, ou
quando fazemos uma curva apertada na estrada e somos como que projetados na
direção do movimento). Na verdade, o campo de Higgs pode ser uma forma de
explicar a lei da inércia, segundo a qual todos os corpos tendem a resistir às
mudanças de estado (do repouso ao movimento, do movimento ao repouso).[12]
Quanto maior a massa do corpo (ou seja, a sua quantidade de matéria), maior é a
resistência que oferece, o que não admira porque mais matéria significa mais
partículas, logo, mais resistência oferecida pelo campo de Higgs a nível
quântico.[13]
Um bosão da consciência? – o fenómeno da
experiência subjetiva como emergência de uma possível interação entre a matéria
do cérebro vivo e um campo quântico (ainda) desconhecido
A tese que aqui propomos é a de que a consciência, em particular enquanto
experiência subjetiva (awareness) da qual todos os seres vivos
sencientes são dotados, é não apenas produto emergente do cérebro vivo, mas
também de uma força cósmica ainda por explicar e descrever, que se comporta de
modo semelhante às forças já descritas, i.e., através de partículas, campos
quânticos ou campos de força. Mais concretamente, propomos que existe uma
espécie de “bosão” ou campo quântico que, em
relação com a matéria do cérebro vivo, faz emergir a consciência ou vida
mental, tornando possível a experiência subjetiva nos seres vivos. Propomos que
existe uma espécie de partícula-transporte da consciência semelhante às que
assistem às outras forças, mas muito mais subtil. Esta partícula ou campo, ao
interagir com o cérebro, tornaria possível a experiência subjetiva, condição
indispensável à existência de uma interioridade mental.
Não pretendemos com isto defender uma versão maximalista de um qualquer
tipo de “substância” dotada de todas as faculdades intelectuais, cognitivas e
emocionais do sujeito consciente (muito semelhante, em todos os aspetos, a uma
“alma”), não deixando qualquer margem de participação às funções bio-fisiológicas
do corpo em geral e do cérebro em particular na realização destas faculdades.
Não defendemos nenhuma espécie de teoria da “encarnação” da consciência num
corpo físico, visto apenas como um continente ou depósito dessa substância,
passivo, tornando irrelevante o cérebro e as suas funções. Propomos, sim, uma
versão minimalista tendente a explicar, exclusivamente, a realidade da
experiência subjetiva, partindo do pressuposto inegável de que o cérebro,
enquanto complexo biológico – na verdade o mais complexo dos mecanismos
biológicos conhecidos – é de facto a origem de todas as funções neurológicas
conhecidas: intelectuais, cognitivas, emocionais, voluntárias e involuntárias,
na linha do que nos mostra a vanguarda da investigação neurocientífica. Admitimos, inclusive, o pressuposto
fisicalista do no brain, never mind (sem
cérebro não há mente). O que negamos, por outro lado, é que as funções
fisiológicas do cérebro vivo sejam o único factor responsável pela consciência,
i.e, que esta seja um produto exclusivamente
bio-fisiológico. Noutras palavras, propomos que sem esta interação misteriosa
entre a matéria do cérebro vivo e o que nós designamos por “bosão da
consciência” (algo que só um mecanismo da complexidade de um cérebro pode
conseguir) a um nível quântico bastante profundo, simplesmente não há vida
mental nem consciência (logo, no
conscienton, never mind).
Propomos que esta interação do cérebro – ou de algo que emerge do cérebro
biológico vivo – com o nível quântico fundamental desta partícula-campo que
está por toda a parte, semelhante, pelo menos nesse aspeto, ao bosão-campo de
Higgs – é o que torna possível a emergência da experiência subjetiva no domínio
de uma interioridade mental (não apenas subjetiva mas pessoal, se falamos de seres intelectualmente mais complexos tais
como o homem). Como se o cérebro – repetimos: o mais complexo e extraordinário
mecanismo biológico conhecido – fosse capaz de “sintonizar-se” com um
determinado nível quântico fundamental, inscrito na trama mais básica do tecido
cósmico, associando-se a ele para produzir consciência, vida mental,
subjetividade. A possibilidade dessa interação diferenciá-lo-ia, por ex., de
uma simples máquina de processamento de informação (vulgo computador), que por
muito sofisticada e rápida que seja a fazer cálculos, não pensa, não sente, em resumo, não tem vida mental ou interioridade; ou, para utilizar a terminologia
filosófica em voga, não tem qualia.
Não defendemos com isto que uma máquina não possa vir a adquirir a sofisticação
suficiente para produzir ou simular
pensamentos, sentimentos e emoções, mas não terá de facto interioridade, vida
mental, qualia, enquanto não for
capaz de “sintonizar-se” a nível quântico com esta partícula ou campo quântico
de energia (o tal hipotético “bosão da consciência”), algo que só um mecanismo
da complexidade de um cérebro pode fazer, através de um processo ainda
desconhecido.
Embora o ser consciente seja dotado, tal como um computador, de um hardware, ou seja, de um mecanismo capaz
de processar e armazenar informação (o cérebro), indispensável à sua vida
mental, é além do mais sensível à
informação produzida, sendo capaz de visualizar
mentalmente uma imagem, uma ideia, um significado; é também capaz de
percecionar subjetivamente uma sensação física (dor, quente, frio, etc.), tudo
no espaço irredutível de uma interioridade, uma espécie de dimensão imaterial
constituída exclusivamente de estados mentais, na qual o fenómeno electroquímico
só pode existir na sua face mental; qualquer estado mental (ideia, imagem
mental, padrão) ao projetar-se no espaço mental encontraria eco numa retaguarda,
um limite que não é indiferente à ideia projetada, condição sine qua non da reflexividade. O ser consciente é, pois,
reflexivo, porque dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao
fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai
no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por
mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a
perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a produz para outrem.
Ora, esta subtil “retaguarda”
consciente que, segundo sugerimos, torna possível a subjetividade, é
constituída pelo que designo por núcleo
quântico da consciência, que talvez se comporte como uma espécie de “campo
de força”, que, tal como qualquer outro campo – p. ex. os campos gravitacional,
nuclear forte e fraco, electromagnético ou o campo de Higgs – resulta do
intercâmbio de “quanta” ou partículas de energia. Estas partículas, embora
ubíquas, embora presentes, tal como supomos, em toda a parte no universo, só
poderiam efetivamente influenciar sistemas físicos de grande complexidade, tais
como cérebros, ao ponto de, interagindo com eles, fazer emergir a experiência
subjetiva nos seres vivos. Como se, em termos quase metafóricos, a consciência
existisse como potência no tecido cósmico mais fundamental, aguardando que
certos sistemas atingissem suficiente complexidade para com ela interagir e
fazer emergir sujeitos conscientes.
Deste modo, sugerimos que consciência não é produzida, nem apenas pelo
cérebro físico (pressuposto fisicalista), nem apenas por uma espécie de “alma”
dotada de todas as faculdades da consciência, mas antes por uma relação misteriosa, ao nível quântico, entre o cérebro
e um determinado campo de força ou quântico, análogo ao de Higgs mas mais
subtil, ou então com uma espécie de “partículas-transporte da consciência”,
análogas aos fotões ou gravitões, existentes a um nível quântico muito subtil
do tecido cósmico. Esta consciência não estaria toda dada já no tecido
cósmico, a priori constituída, sendo apenas uma potência aberta, uma
possibilidade, tal como o campo de Higgs não é a própria massa já constituída,
mas a condição de possibilidade para que a massa exista nos corpos materiais.
Seria - não é demais repetir - como se o tecido mais fundamental do
cosmos contivesse um potencial de consciência, que só seria atualizado em
condições muito particulares, isto é, a níveis muito elevados de complexidade,
ao nível dos que permitem a vida e a emergência de mecanismos biológicos
altamente complexos, como o cérebro. Assim, certas possibilidades inscritas a
níveis quânticos fundamentais do tecido cósmico iriam sendo atualizadas à medida
que o próprio cosmos se fosse complexificando, e encontrando, na sua própria
matriz, os germens de novas emergências, no decorrer do processo de evolução e
expansão.
Isto conferiria, não o negamos, um caráter teleológico à evolução do
universo, como se este evoluísse em direção à concretização de certos
objetivos, inscritos a priori, enquanto potências, na trama fundamental do
cosmos, numa espécie de evolução por desdobramento de certas potências básicas
(entre as quais, a consciência).
Eis, em síntese, a ideia fundamental deste artigo: a consciência enquanto experiência subjetiva é um produto emergente da
relação entre o cérebro e o nível quântico das partículas ou campos quânticos
(os “conscientões”). Este nível quântico seria mais subtil, i.e., situar-se-ia
a um nível mais fundamental que o nível das quatro forças físicas conhecidas,
ou seja, gravidade, forças nucleares forte e fraca, e electromagnetismo. Um
nível tão fundamental que só um dispositivo biológico suficientemente complexo
poderia com ele interagir de modo a produzir uma nova espécie de força – a
consciência (tal como, à guisa de analogia, os efeitos da gravidade, a mais
fraca de todas as forças conhecidas, só se manifesta significativamente em
corpos de grandes dimensões)[14].
Vejamos: não pretendemos que a consciência ou vida mental subjetiva
exista como que de modo independente, fora
do sujeito ou dispensando um, a priori já totalmente constituída na sua
estrutura fundamental, a esse nível quântico, como uma espécie de “homúnculo”
cósmico, do mesmo modo que a massa ou gravidade não estão constituídas a priori,
como forças, nas suas partículas ou campos respetivos. Todo o campo de força se
manifesta pelo modo como interage com a matéria: a massa emerge da relação
entre certas partículas atómicas de maior dimensão, como protões e neutrões,
com o campo de Higgs; a gravidade – supõe-se - emerge do intercâmbio de
gravitãos entre os átomos da matéria (quanto mais massa ou quantidade de
matéria tem um corpo, mais forte é a sua força de atracão gravítica); de modo
análogo, também a consciência, isto é, a condição de possibilidade da
experiência subjetiva emergiria, supomos, da relação entre a matéria neuronal
(p. ex. a nível atómico ou subatómico), de apenas um módulo ou cluster neuronal localizado, ou da
totalidade do sistema neuronal, e as tais partículas ou campos quânticos que
designamos por “conscientões”.
A questão que se coloca é a seguinte: será implausível que um campo de
força ainda desconhecido seja parcialmente responsável pela emergência da
consciência enquanto experiência subjetiva? Propomos, precisamente, que a
resposta é sim, e que portanto o cérebro será de algum modo afetado por essa
força fundamental, tal como qualquer corpo, de modo análogo, é afetado pela
gravidade, ou um simples íman é afetado pela força electromagnética, ou o
núcleo atómico se mantém unido através da força nuclear forte.
A visão fisicalista convencional defende que a consciência é um produto
exclusivo do cérebro, uma emergência que resulta de processos neuro-biológicos
misteriosos que, apesar de toda a nossa sofisticação tecnocientífica, continuam
a escapar-nos. Daí o filósofo Chalmers se ter referido ao problema da
consciência como um “hard problem”.
Não obstante todas as dificuldades, este paradigma da consciência que
tudo reduz ao fisiológico mantém-se vigente como uma ortodoxia materialista
entre a comunidade de investigadores. O impasse atual na resolução do “hard
problem” da consciência talvez exija uma mudança de paradigma que abra a porta
a outras possibilidades, por mais estranhas que possam parecer. Não dizemos que
um planeta produz a sua própria gravidade, mas antes que a matéria de que é
constituído é afetada pelo campo gravitacional, sendo que a face visível dessa
influência é, por ex., a queda de um corpo, as órbitas dos planetas, ou a
deflexão da luz de uma estrela distante; não dizemos que um corpo produz a sua
própria massa, mas antes que as partículas atómicas e subatómicas que o
constituem são afetadas por outra força mais fundamental – o campo de Higgs;
analogamente, será assim tão implausível
que a matéria do cérebro seja afetada por uma força que lhe é exterior,
inscrita de algum modo a nível quântico, sendo a face visível dessa influência
precisamente a consciência enquanto experiência subjetiva?
Mas como? Poderíamos supor que os
átomos do cérebro intercambiassem entre si estas partículas-transporte, através
de um campo de força que abrangesse toda a estrutura neuronal do cérebro, uma
espécie de “rede quântica”[15] de
tal forma complexa e ao mesmo tempo subtil, abrangente e forte ao ponto de ser
capaz de superar a dispersão fragmentária dos fenómenos neurológicos, unindo-os
num todo quase indestrutível, uma “unidade de consciência” que poderíamos
designar de “proto-sujeito”, por se tratar do substrato quântico de toda a
experiência subjetiva, e consequentemente a base da própria subjetividade. Esta
“rede quântica”, que designamos por
núcleo quântico da consciência, seria o ponto de origem do continuum do “si”, ou seja, o eixo
irredutível, uno que concretiza aquela cisão entre consciência e mundo que caracteriza o “despertar” subjetivo
do sujeito, condição fundamental de todo o pensar e todo o conhecer. Seria,
para usar uma metáfora cinematográfica, como a tela onde toda a ideia, todo o
padrão informacional produzido pelo cérebro se projetaria, e seria efetivamente percecionado subjetivamente como mental. A tal tela que permite o
estar-desperto (being-aware) que
caracteriza a consciência, desperto ao mundo e também para si próprio, sendo
capaz de auto-referência, de consciência
de si. Sem esta espécie de “embasamento” consciente, toda a perceção se
dissiparia num nada, pois não existiria uma “unidade de consciência” que unisse
os vários fragmentos de imagens, perceções, representações mentais, numa única
perceção dotada de uma “unidade de representação” que a consciência
reconheceria como sua por com ela se
identificar completamente.
O filósofo alemão I. Kant, na Crítica
da Razão Pura, escreveu, muito a propósito, que “…as diversas
representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas
representações minhas se não
pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O pensamento de
que estas representações dadas na intuição me
pertencem todas equivale a dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo
menos posso fazê-lo”[16].
Ou seja, não poderíamos, por exemplo, ter perceção visual subjetiva de
uma árvore à nossa frente, se a imagem mental produzida pelo nosso cérebro não
encontrasse pela frente uma consciência que, precisamente por ser unificada (um
“eu penso” para falar como Kant), confere “unidade de consciência” aos
diferentes fragmentos de perceção que constituem a imagem mental da árvore: “Se
qualquer representação particular fosse completamente alheia às demais, se
estivesse como que isolada e separada das outras, nunca se produziria alguma
coisa como o conhecimento, que é um todo de representações comparadas e
ligadas.”[17]
Com efeito, esta “unidade de consciência” ocorre espontaneamente (isto é, imediatamente, inconscientemente), através
daquilo que Kant designa por “unidade originariamente sintética da aperceção”[18], de
tal modo que o resultado desta síntese está depois em condições de ser apresentado à consciência como algo
unificado: uma imagem mental, uma ideia, um conceito. Dito de outro modo, só há
perceção subjetiva, conhecimento, quando aos processos cognitivos que produzem
perceções, imagens mentais, padrões, se associa um “espetador”, essa
consciência unificada, esse “eu penso” disposto a receber esses produtos, a tomar consciência deles na sua unicidade
(que é, basicamente, reflexo da própria unicidade da consciência do “espetador”).
Tal como diz Kant, “…a recetividade,
só unindo-se à espontaneidade, pode
tornar possíveis conhecimentos.”[19]
Só é possível a perceção subjetiva (e, por consequência, o conhecimento),
se todos os padrões, ideias, imagens mentais produzidas pelo cérebro se
submeterem à consciência unificada, de tal modo que ela própria, isto é, o “eu
penso” se possa identificar com essa perceção, encontrar-se nela, não só no seu
todo mas em cada uma das suas partes, de tal forma que o sujeito lhe possa
chamar de sua (“A minha dor”, “O meu
sentimento”; “A minha memória”). O
reconhecimento imediato, espontâneo, da unidade de uma perceção por parte do sujeito
espetador, é simultaneamente o reconhecimento da unidade do próprio espetador,
refletida na unidade da perceção. Uma dor percecionada de forma
fragmentada, parcialmente, não é uma dor minha.
Tem de haver uma sobreposição total, imediata, entre a consciência unificada do
“espetador” e os estados mentais, ou não pode haver experiência subjetiva. Sobreposição
que implica contacto, cuja natureza
constitui o grande mistério da experiência subjetiva: contacto entre o quê, ou entre o quê e quem, e como? Duas substâncias à la
Descartes? Apenas uma? Qual a natureza da consciência unificada, do “espetador”
privilegiado?
Com efeito, cremos que existe um facto que concorre a favor do caráter
quântico desta “consciência unificada” (o reduto do “espetador”), condição da
própria unidade de qualquer espécie de experiência subjetiva (a tal “rede
quântica” que propomos). Pois vejamos: a produção cerebral de qualquer padrão
ou imagem mental (sensação, perceção visual, etc.) implica a ativação de várias
áreas ou “clusters” neuronais separados, em simultâneo, cada um responsável por
diferentes funções cognitivas. Isto é, apesar de áreas diferentes, distantes
entre si, serem responsáveis pela produção de uma mesma imagem mental, a
experiência subjetiva dessa mesma imagem é sempre una, pelo que seria de
esperar que fosse possível localizar no cérebro uma espécie de “centro da
experiência subjetiva”, onde todos os processos concorrentes na produção de um
conteúdo mental convergissem, num ponto bem determinado, para dar origem à
experiência subjetiva de uma perceção unificada. Ora, tanto quanto se sabe,
esse centro não existe. Como é então possível que uma imagem mental seja
percecionada subjetivamente como uma unidade irredutível, se os processos que
lhe dão origem ocorrem em pontos separados do cérebro, e não existe um local onde estes possam convergir? É
como se, na verdade, não existisse um centro bem localizado para a experiência
subjetiva, ou como se este “centro” estivesse em toda a parte e em parte
nenhuma do cérebro, isto é, como se fosse não-local.
Isto é, se o nosso cérebro for colocado sob um scan, precisamente enquanto
ouvimos a 9ª sinfonia de Bethoven, veremos diversos “flashes” em pontos
separados do cérebro, uns responsáveis pela audição, outros pelo reconhecimento
de padrões, etc., enquanto, ao mesmo tempo, sem qualquer interregno ou lapso
temporal significativo, experienciamos subjetivamente, unificadamente, a
própria melodia. Ou seja, a imagem mental é como que unificada permanentemente,
mas de uma forma não-local, sem centro definido. Como bem se sabe, a
não-localidade é um aspeto da realidade quântica que tem sido corroborado uma e
outra vez por diversas experiências e observações, que apesar de extremamente
contra-intuitivo, parece fazer parte do trama mais fundamental do cosmos,
contrariando os fundamentos da visão clássica da física.
Há algo que para nós é uma evidência: a intensidade e vivacidade da
experiência subjetiva, seja qual for o seu conteúdo cognitivo, é justificação
mais do que suficiente para a crença na realidade deste fenómeno. Poderíamos
inclusive falar, neste caso, numa crença fundacional, auto-evidente, talvez a
única que exista. De todos os fenómenos do universo, este é talvez aquele do
qual temos mais certezas e garantias empíricas, precisamente porque somos dele
testemunhas imediatas e privilegiadas. Mais até do que a chuva, o fogo, ou a
explosão de supernovas, porque para cada um destes fenómenos há sempre a
possibilidade da alucinação, do sonho, do erro de perceção, do erro de cálculo.[20] Não
devemos, por isso, negar o carácter cosmológico do fenómeno da consciência,
remetendo-o para um mero subproduto biológico, sem mais, procurando ignorar que
este também deve caber numa “teoria de tudo”, por ser precisamente o mais
vívido dos fenómenos que podemos experienciar, e inclusive a nossa condição de
possibilidade para experienciar seja o que for.
A perceção subjetiva imediata, mesmo do fogo ou da chuva sonhada, é uma
realidade inegável, porque a sua negação implicaria a negação de toda e
qualquer experiência subjetiva, mesmo da experiência do próprio pensamento
sobre a possibilidade da negação. Repare-se: mesmo que negássemos um “eu
penso”, uma identidade como algo de auto-evidente, não poderíamos negar a
experiência subjetiva enquanto tal, porque se, como Kant admite, podemos de
algum modo “deduzir” a unidade do “eu penso” da unidade de uma dada perceção
(que é, no fundo, uma racionalização a posteriori a partir do imediato de uma
perceção subjetiva), a partir de um esforço racional para compreender a origem
e razão de ser dessa unidade, não podemos fazer o inverso, isto é, deduzir da
unidade abstrata do “eu penso” a própria perceção subjetiva. Uma experiência não pode ser inferida a
partir de um conteúdo cognitivo, de premissas num raciocínio, porque experiência subjetiva e conteúdo
cognitivo têm naturezas (qualidades) distintas. Uma experiência
simplesmente é, ou seja, vale qualitativamente pelo que é. A razão é que,
quanto à experiência subjetiva, estamos a falar, não de um objeto, não de um
conteúdo cognitivo, mas de uma experiência qualitativa
básica que vale por si própria, pela experiência que suscita, isto é, não
pode de modo algum ser inferida a partir de um raciocínio, de um conteúdo
cognitivo: ou se experiencia ou não se
experiencia. Calculo mentalmente 20 x 20, e concluo que é igual a 400.
Embora a evidência deste resultado seja um produto lógico, a experiência
subjetiva que dele tenho, enquanto imagem mental, não o é, mas constitui ainda
assim a condição básica da própria experiência da evidência lógica, o seu
substrato. A sua qualidade, enquanto experiência subjetiva, situa-se a um nível
diferente que o da quantidade, isto é, do que o próprio conteúdo cognitivo do
pensamento, tal como o número de passos que dou enquanto ando, a intenção ou a
rapidez com que o faço, é qualitativamente diferente do chão que serve de base
ao meu andar, independentemente de como o faço, ou com que objetivo. Todavia,
sem o chão não haveria andar. O mesmo, diríamos nós, se passa com o
“embasamento” (o tal “espetador”) que torna possível a qualidade de uma
experiência subjetiva, independentemente do seu conteúdo.
Descartes, depois de colocar tudo em dúvida (sentidos, razão, mundo)
concluiu que só uma coisa era indubitável – o facto de pensar, e de o fazer
enquanto sujeito que pensa (“Cogito ergo sum”). De facto, negar que se pensa é
negar a própria possibilidade de se pensar a negação do pensamento, porque ao
se pensar a negação já se está a pensar. Mas, mesmo que fossemos mais fundo e
admitíssemos que, na verdade, não pensamos de todo (porque, suponhamos, há a
possibilidade de um “génio maligno” nos fazer acreditar que pensamos por nós
próprios quando estamos simplesmente a ser manipulados), é absolutamente
inegável que, em qualquer momento do pensamento, possuímos experiência
subjetiva de qualquer coisa, de um modo imediato, pessoal e intransmissível.
Isto é: podemos ser em tudo enganados, manipulados, como no exemplo do
génio maligno; pode haver algo ou alguém que se substitua a nós em todos os
nossos processos de pensamento, perceção, etc. Mas ninguém nos pode substituir
na experiência subjetiva. Essa é só nossa. Ninguém pode, neste sentido,
substituir o espetador que se
encontra no reduto fundamental da nossa consciência. Dito de outra forma, as
funções neurológicas podem ser simuladas (p. ex., num computador), mas a experiência subjetiva, enquanto tal,
não pode jamais ser simulada. Ou existe ou não existe porque, enquanto tal,
só pode existir para o sujeito que a experimenta.
Esta irredutibilidade é que nos deve levar de facto a pensar se a
consciência não deve ser tratada, cada vez mais, como expressão de uma
realidade mais básica e fundamental, situada ao nível quântico, ao invés de uma
mera emergência de segundo ou terceiro grau de processos bio-fisiológicos, na
prática reproduzível artificialmente a longo prazo, desde que se possua a
“maquinaria” certa.
Sem este “embasamento consciente” que emerge do núcleo quântico da
consciência, também a capacidade de deliberar e decidir, ou seja, o exercício
efetivo de uma vontade, fica comprometido,
porque toda a deliberação implica abstração, reflexão, exercício livre de um
pensamento que livremente analisa, isto é, fragmenta, escrutina, e também
sintetiza, tudo fenómenos conscientes que só podem ocorrer se, algures no
reduto mais fundamental da mente, existir um observador. Ora, este observador é antes de mais, como já vimos, um
espetador, porque na realidade a sua
função não é nem pensar, nem deliberar, nem decidir.
Como já dissemos, a partícula-campo do “conscientão”, esse tal reduto
quântico fundamental do cosmos (o “bosão da consciência”) não pensa, não delibera, não decide, não tem vontade, em suma, não é ativo (pelo menos em si próprio).
Não é um sujeito a priori inscrito na trama mais básica do universo, mas apenas
uma força, uma espécie de energia muito subtil que, por alguma razão, é capaz
de se relacionar com o cérebro vivo de modo a fazer emergir a consciência. A
sua função, repetimos, é a de fazer emergir o espetador, tornando, ao mesmo tempo, viável e útil o próprio
cérebro enquanto máquina de processamento de informação, reconhecimento de
padrões, pensamento, emoção, vontade.
Esta força quântica, se assim lhe quisermos chamar, ao fazer emergir a
experiência subjetiva, confere, de facto, autonomia
ao cérebro, porque se não existisse ninguém a “observar” o que acontece no
espaço mental imaterial, se não existisse esta fugidia figura do espetador privilegiado, origem e
fundamento do qualia, as múltiplas
possibilidades e funções de que dispõe a complexa máquina cerebral não poderiam
cumprir-se em toda a sua extensão. Tal como acontece num supercomputador, por
mais sofisticado que seja. Enquanto a inteligência artificial não for capaz de
simular este “embasamento”, e de o integrar num hardware, jamais um computador será um sujeito. Dito de outro modo, enquanto a inteligência artificial não
for capaz de criar um hardware suficientemente
complexo para interagir com este campo quântico fundamental, caracterizado por
partículas ou “quantuns” de energia, mais subtil que a própria gravidade,
dificilmente será possível produzir robôs com vida mental.
Mesmo que tenhamos dúvidas quanto à sua natureza, não podemos ter dúvidas de que é absolutamente necessário que exista um
espetador, porque sem ele nenhuma perceção é possível, e sem perceção nada
daquilo que é típico de um sujeito é possível: nem conhecimento, nem
pensamento, nem vontade. Sem um espetador, isto é, sem um “consumidor final” recetivo aos produtos do cérebro
(imagens mentais, representações, padrões, sensações, emoções, etc.), a
hipercomplexidade do sistema neurológico não faz qualquer sentido. Porque esta
hipercomplexidade não é um fim em si própria, mas está ao serviço de uma
subjetividade.
Processamento de informação sem espetador seria como um computador pessoal
a funcionar numa sala vazia, sem ninguém por perto para interpretar a informação
projetada no ecrã.
Podemos, naturalmente, de acordo com a visão fisicalista tradicional,
supor que este espetador é também ele um produto do cérebro, mais uma função que
se desenvolve paralelamente a todas as outras funções neurológicas. A
questão-chave está em saber se efetivamente o cérebro, não obstante toda a sua
complexidade, suporta sozinho a produção, simultaneamente, da função do
espetador – i.e., da subjetividade que permite a experiência subjetiva – e de
todas as outras funções mentais, cognitivas, emocionais, etc., através das
quais ele traduz o mundo em conhecimento. Uma outra questão-chave está em saber
- caso isso não seja assim mas antes do modo como propomos - o que torna o
cérebro particularmente sensível ao tal nível quântico fundamental onde se
situa o hipotético “bosão da consciência”, essa espécie de partícula-campo
situada a um nível quântico bastante profundo.
Voltamos a insistir neste ponto: este “espetador” não é um ego, não se
confunde com o meu eu, a minha identidade, a minha “alma”. Ele é a condição de
possibilidade, aberta pela relação entre o cérebro e o campo quântico muito
subtil das partículas ou “quantuns” da consciência (os “conscientões”), de todo
o funcionamento autónomo normal do cérebro, o ingrediente sem o qual este não
cumpre a sua real função, função esta que é a razão de ser de toda a sua maquinaria
biológica, que é a de fazer emergir uma nova dimensão de realidade que não
encontra paralelo em nenhuma outra parte do mundo físico – a vida mental ou
experiência subjetiva.
À luz desta proposta, podemos especular que o cérebro, com toda a sua
maquinaria, todo o seu hardware
biológico, com todas as suas funções cognitivas, percetivas, de processamento e
armazenamento de informação, tem como principal função a de “traduzir” o mundo,
isto é, transformar aquilo que lhe chega, os sense data, os inputs, em
informação passível de ser interpretada e utilizada por uma subjetividade, que
não terá necessariamente a mesma origem bio-fisiológica que as restantes
funções cerebrais.
Talvez a emergência da consciência enquanto experiência subjetiva seja a
expressão de um modo de o universo se conhecer a si próprio, ou melhor, de
“regular” a sua própria evolução no sentido de uma maior complexidade, como se
procurasse ver-se “desde de dentro”, experimentar-se a partir de diversos pontos
de vida constituídos a partir de diversas singularidades subjetivas. Se
pensarmos que a consciência é um fenómeno real, incontornável, e que cada um
dos seres vivos sencientes e conscientes é, também, universo ou parte dele,
então talvez esta ideia não pareça assim tão descabida ou despropositada. Acaso
será provável que um universo tão complexo, do qual conhecemos pouco mais de
4%, não tenha sido capaz de criar as condições para se conhecer ou “regular” a
si próprio através de múltiplas formas de vida e consciência? Não implicaria
isto já, de algum modo, um potencial de consciência inscrito na trama mais
básica do cosmos, à espera de se atualizar a partir de um determinado nível de
complexidade da matéria, sendo a biológica, sem sombra de dúvida, de todas a
forma de matéria mais complexa que se conhece?
Bibliografia
KANT, Immanuel
(1997), Crítica da Razão Pura, trad.
de Manuela Santos e Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Webgrafia
LEWIS, Tania (2014, 5 de junho), “Ambitious
Brain-Mapping Project's Science Goals Revealed”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/46143-brain-initiative-unveils
roadmap.html?cmpid=514627_20140607_25507726.
Lewis, Tânia (2013, 31 de maio), “Will
We Ever Understand Consciousness? Scientists & Philosophers Debate”, Live Science. Acessado a 8 de
junho de 2014, em http://www.livescience.com/37056-scientists-and-philosophers-debate-consciousness.html.
THAN, Ker (2005, 8 de agosto), “Why
Great Minds Can't Grasp Consciousness”, Live
Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/366-great-minds-grasp-consciousness.html.
[1] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[2] Sigla para Brain
Research through Advancing Innovative Neurotechnologies. Ver Lewis, Tania
(2014, 5 de junho).
[3] O filósofo
britânico Colin McGinn é um exemplo dos que defende a insolubilidade do
problema da consciência, por uma questão de incapacidade da consciência em
compreender-se a si própria. Neurocientistas como Christof Koch, por outro
lado, defendem que o problema é solúvel no quadro do experimentalismo
neurocientífico, pelo que a sua visão se mantém num registo fisicalista
convencional (Ver artigo da Live Science sobre o debate acerca da natureza da
consciência que decorreu durante o “World Science Festival” em 2013, que reuniu
os painelistas Colin McGinn, Christof Koch, Nicholas Shiff e outros [Lewis,
Tânia, 2013, 31 de maio]).
[4] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[5] Ver Ibidem.
[6] A propósito das forças e
correspondentes partículas-transporte, ver Greene (2004: 254-256) e CERN, “The
Standard Model” (2014).
[7] O
princípio de incerteza tem que ver com o carácter indeterminado e
probabilístico da mecânica quântica. Cada partícula-onda pode ser descrita
segundo uma “função de onda”, que mais não é senão um campo de probabilidades
acerca da sua posição num dado momento. Não é possível saber com absoluta
exatidão a posição em que certa partícula vai estar num dado momento partindo
de certas variáveis como a sua posição anterior, o momento angular ou a
velocidade, porque uma vez medida uma dessas variáveis, as outras tornam-se
impossíveis de medir. Não é possível saber exatamente para onde uma partícula
se dirige, nem que caminho seguiu para passar de A a B (ver Gribbin, 1986:198).
Ademais, “(…) Podem medir com precisão a quantidade de movimento de um
electrão, mas então a sua posição é indeterminada. O simples acto de atribuir
uma localização específica a um electrão introduz uma perturbação incontrolável
e indeterminada no seu movimento, e vice-versa. Além disso, esta restrição
incontornável ao nosso conhecimento do movimento e localização do electrão nãoé
simplesmente o resultado de uma deficiência experimental: é inerente à própria
natureza.” (Davies e Brown, 1991:18).
[8] Este conceito foi
inventado por Faraday para designar um aspeto da constituição dos campos
magnéticos e electromagnéticos, mas foi posteriormente alargado a todos os
tipos de campo (ver Gribbin, 1986: 210-211).
[9] Introduzir aqui explicação
acerca função de onda
[10] Ver Greene, 2004:256-257
[11] “If a particle moves smoothly trough the Higgs ocean
with little or no interaction, there will be little or no drag and the particle
will have little or no mass. The photon is a good example (…). If, to the
contrary, a particle interacts significantly with the Higgs ocean, it will have
a higher mass.” (Id.:263).
[13] Para ilustrar este ponto,
Greene sugere o seguinte ao leitor: “Take your arm and swing it back and forth.
You can feel your muscles at
work driving the mass of your arm left and right and back again. If you take
hold of a bowling ball, your muscles will have to work harder, since the
greater the mass to be moved the greater the force they must exert.” (Id. :260-261)
[14] Usar ex. do papel
electrificado livro Física Quântica e cosmologia
[15] A
imagem que melhor pode ilustrar esta rede quântica será a de um campo de força,
análogo ao campo electromagnético que possibilita a propagação da luz, ou ao
campo gravitacional que envolve a Terra, ou de um campo magnético que une dois
ímans. Neste caso, não sendo o cérebro o produtor deste “campo de consciência”
– do mesmo modo que não é a Terra a produtora do seu campo gravitacional
(embora produza um campo electromagnético) -, podemos especular que o cérebro,
pela sua configuração e estrutura bio-fisiológica singular, seria capaz de
interagir com este campo de força a um nível quântico básico. Propunhamos,
muito audaciosamente, que o tecido fundamental do espaço-tempo onde nos movemos
é, ele próprio, a téla onde permanentemente o cérebro projeta todas as suas
imagens mentais, de tal modo que quem vê não somos de facto nós, mas o próprio universo na sua forma
singular de se ver a si próprio desde dentro.
[16] KANT, B133-B134, 1997,
pp. 132-133
[17] Ibidem, p. 133
[18] Ver Idem, §16-17, pp.
131-138
[19] Idem, B134, p. 133
[20] Em
boa verdade, nem relativamente à experiência subjetiva de outrem podemos estar
absolutamente certos, não tanto como em relação à nossa própria. Esta
constatação está na base do famoso problema cético das outras mentes, que
naturalmente não pretendemos tratar aqui. Admitamos, como hipótese de trabalho,
que a experiência subjetiva é um fenómeno que existe para além da minha própria
mente, para não cairmos no solipsimo. Seja como for, ainda que qualquer um de
nós, eu próprio ou o leitor, fossemos os únicos a possuir vida mental, ainda
assim seria pertinente tentar explicar a sua origem, dada a radicalidade e
incontornabilidade deste fenómeno.