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segunda-feira, fevereiro 13, 2017

Página de Facebook - Ruben Azevedo




Às pessoas que nos últimos - quase - 12 anos têm acompanhado este meu blog, saibam que podem acompanhar os meus textos mais amiúde na minha página de facebook, onde escrevo com grande regularidade (o que há muito tempo não acontece aqui, no blog).

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Um bem-haja,
Ruben David Azevedo

terça-feira, outubro 25, 2016

RESENHA SOBRE O MEU LIVRO "ENIGMA - NOEMAS EM TORNO DO MISTÉRIO DO SER E DO EXISTIR"



(Para adquirir o livro clicar aqui ou aqui)
Página facebook do livro aqui

O livrito reflete, como um todo, uma crença muito pessoal: a busca pela verdade e pelo conhecimento, para ser completa, tem de visar o "real-objetivo" e o "real-subjetivo". Por outras palavras, não há conhecimento pleno sem autoconhecimento. Nenhuma demanda pelos factos do mundo e da vida pode dispensar uma outra demanda que lhe é paralela e, sem a qual, aquela não fica completa, nem chega a ser existencialmente útil para o Homem.

Por isso mesmo, o livrito divide-se em duas partes: a primeira titulada "Noemas em verso", exprime sobretudo o "real-subjetivo", isto é, nela procuro dar forma escrita - a forma escrita possível dada a inefabilidade de certos sentimentos - às minhas mais profundas inquietações, aos meus mais profundos desejos, ao meu contínuo assombro perante o mistério do Ser e do Existir, e também à esperança - em suma, às motivações subjetivas que definem o meu modo de ser e estar no mundo, e perante o mundo. Aquilo que emocionalmente me move e determina a orientação da minha vida, entendida como demanda existencial cujo Horizonte é a Verdade.

Trata-se nesta primeira parte, fundamentalmente, de tornar claras para mim próprio as minhas reais motivações existenciais, modelando pela palavra, ou vestindo pela palavra (parece-me a metáfora mais adequada) sentimentos, ânsias e visões internas que se mostram frequentemente de forma turva e difusa, por forma a que se tornem inteligíveis, em primeiro lugar de mim para mim próprio. Daí serem mais "noemas" do que "poemas", pois etimologicamente poesia significa criação (do grego "poiésis"), e mais do que criar, eu acredito que, no que diz respeito ao meu real-subjetivo, à minha interioridade profunda, eu me limito a procurar dar forma escrita a sentimentos, ideias, formas e visões, "noemas" (do grego "noema", ideia, conceito, visão) que se insinuam na minha consciência, que emergem e se revelam de forma confusa, às vezes opaca. Mas que são essenciais, pois possivelmente trazem consigo a marca da sua origem profunda, que é a das profundidades arcaicas da consciência de onde brotam as tendências singulares da personalidade individual, e por conseguinte do destino individual. Logo, constituem vias de real autoconhecimento. Autoconhecimento sempre indireto, que requer sempre interpretação; que requer observação através do espelho das ideias e das palavras, e não de forma imediata, face a face. Mas não é sempre assim? E será que terá de ser sempre assim?

A segunda parte, titulada "Noemas em prosa", constitui globalmente o capítulo dedicado ao real-objetivo. Nele exploro alguns temas do mundo e da vida numa atitude mais impessoal, isto é, mais argumentativa e filosófica, temas como o da Verdade, o Amor, Deus, o Conhecimento e a sua importância na vertente individual mas também social-civilizacional, a Educação em sentido amplo e radical, a Consciência, etc. Mas é claro: tendo sempre como pano de fundo, como retaguarda motivacional, as mesmas motivações, anseios, e desejos subjetivos profundos que assistem à primeira parte. Só que agora a atitude é diferente, visa o exterior, a explicação, a racionalidade pública. Mesmo quando no fundamento da explicação racional, da argumentação, estão crenças subjetivas profundamente enraizadas, crenças existenciais como todas aquelas que definem a minha fé básica no Transcendente - sim, Deus, Consciência ontológica do universo; Sentido, Alma, Lei e inteligência cósmica (Logos), etc. E por aí, fé fundamental no Homem, na sua liberdade, e na possibilidade derradeira da sua realização plena, integral; no limite, admito mesmo uma escatologia da salvação, mesmo que seja a da eternidade realizada mil vezes ao longo da História, em cada homem, a cada geração de homens. Digo-o desassombradamente.

O texto ou "noema em prosa" de maior fôlego e alcance nesta segunda parte é precisamente aquele que tem como horizonte o da realidade última, o fundamento ontológico do real; se quiserem, a escatologia do real - pois não é o conhecimento da origem simultaneamente o conhecimento do fim? Trata-se do artigo "(Con)siderações metafísicas em torno da natureza última da realidade". Para quem é da área da filosofia, em particular da metafísica ou da ontologia, aconselho vivamente a sua leitura, por mais discutíveis que sejam as teses que nele defendo. Em termos muito básicos, o que nele defendo é o seguinte:

1º - É impossível conhecer ou descrever a natureza última da realidade, a "coisa em si", tal como Kant defende, pelo menos do mesmo modo que conhecemos e descrevemos realidades como as árvores, as pessoas e os frutos, pois só podemos conhecer e definir aquilo que podemos relacionar com outras ideias e conceitos relativos; só podemos conhecer de forma relativa, e a realidade última, sendo a última das realidades e portanto a mais abrangente possível, não pode ser descrita ou definida por nada que lhe seja exterior, do mesmo modo que não se pode descrever o Ser com outro predicado qualquer fora do Ser, mas apenas dizendo que O SER É.

2º - Sabemos que a realidade última, a "coisa em si", seja lá o que for, É, mas conhecê-la por via de categorias abstratas como a de Absoluto ou Ser não nos chega; conhecer a realidade última de forma mediada, isto é, por conceitos e ideias, não nos interessa EXISTENCIALMENTE FALANDO.

3º - Assim, um conhecimento realmente interessante da "coisa em si" só pode ser, para o ser que existe, uma outra forma de existência. Isto é, para que a realidade última possa ser conhecida plenamente, ela tem de ser "existida". Ela tem de ser experienciada do ponto de vista do "ser-para-si", do mesmo modo que os indivíduos conscientes se experimentam a si próprios e às suas vidas a partir de dentro das suas próprias consciências, como "seres-para-si".

4º - A "coisa em si", tal como cada um de nós próprios para si próprio, constitui um "ser-para-si", isto é, uma subjetividade absoluta. Todas as nossas perceções das coisas, das árvores, das pessoas, dos objetos à nossa volta, são apenas imagens, formas de "ser-para-nós", fenómenos que se oferecem às nossas consciências; mas se nos retirarmos a nós e às nossas consciências, o que resta dessas coisas? Resta o "ser-para-nós", as imagens que delas mantemos nas nossas mentes; mas o que resta fora de nós e das nossas consciências? Resta a "coisa em si", que só pode ser um "ser-para-si" que a nós completamente nos escapa, pois trata-se de uma outra subjetividade que nos é absolutamente alheia, absolutamente outra.

5º - Mas repare-se que a realidade última também está em nós e dentro de nós. A natureza profunda das nossas mentes e consciências é também ela constituída dessa natureza última; por conseguinte, a "coisa em si" que é ser-para-si reside também enraizada no mais profundo de nós. Dito de outra forma, a Subjetividade Absoluta está profundamente enraizada no fundamento da nossa subjetividade relativa.

6º - Se não podemos apor a nossa consciência relativa sobre a natureza última do mundo no sentido de a conhecermos como conceito, teoria e ideia, será que podemos pelo menos mergulhar nas profundidades da nossa própria consciência no sentido de chegarmos precisamente a TOMAR CONSCIÊNCIA da sua natureza última, isto é, do Absoluto que nela reside, e que está por toda a parte, e fundamenta todo o Real?

7º - Será que a consciência pode chegar a tornar-se plenamente consciente de si própria, ao ponto de em si mesma ser capaz de dissolver a distinção entre sujeito e objeto, tornando-se plena e absolutamente presente para si própria? E não será, em última análise, esse o modo de chegarmos a conhecer simultaneamente a natureza e o sentido últimos do universo e de nós próprios? Não será precisamente nesse lugar que conhecimento e autoconhecimento podem chegar a cruzar-se, nesse infinito profundo da Consciência? E como lá chegar? Não necessariamente pela via estritamente cognitiva-intelectual, mas por vias mais intuitivas que incluam formas de meditação ou contemplação, já previstas, aliás, em várias tradições espirituais e religiosas.

Porque escolho este texto? Porque nele está refletida aquela que é a motivação e o estilo que pautam a minha forma de buscar a verdade: uma busca na qual todo o conhecimento se visa como pretexto para o autoconhecimento; conhecer, e conhecer-me como sou conhecido, para usar as palavras de São Paulo; reconhecer que, para já, estamos limitados a conhecer de forma mediada e confusa, através do espelho das ideias e das palavras, mas que não está fechada a possibilidade de que possamos vir a conhecer face a face, de que possamos vir a conhecer o Sentido que subjaz a todos os sentidos.

Enfim, por tudo isto, faço votos para que adquiram o livrito, quanto mais não seja para que vos desperte e estimule a pensar o impensável, ou a refutar e discutir o que aqui o ali vos parece absurdo e impossível.

A todos um bem-haja,

Ruben David Azevedo

segunda-feira, agosto 15, 2016

Reabilitar a alma como resposta para o "hard problem" da consciência - porque não?



(for english version please click here. This article has also been published in Medium community.)

Considero que a hipótese da existência da alma deve ser tida em conta na resposta ao problema da consciência, ou, mais precisamente, ao chamado “hard problem” da consciência, o problema que diz respeito à natureza e origem da experiência subjetiva enquanto tal. Dito de outra forma, considero que deve ser ponderada a possibilidade que considero muito plausível de estarem esgotadas todas as tentativas estritamente fisicalistas ou materialistas de dar uma resposta cabal a este problema fundamental, e que o adágio "no brain, never mind" deve efetivamente ser revisto ou pelo menos reinterpretado, porquanto reflita acima de tudo um preconceito filosófico muito comum entre filósofos, neurocientistas e cientistas cognitivos que se têm debruçado sobre o mistério da consciência. Preconceito que é reflexo de um paradigma transversal a várias ciências, mas que não tem propriamente base empírica e científica. Paradigma orientador, que aponta horizontes de resposta, mas que no caso da consciência e do mistério da experiência subjetiva talvez esteja a apontar para o horizonte errado, pois há muito que a investigação estritamente fisicalista, fisiológica, materialista do cérebro se debate com o problema da natureza da consciência sem lhe encontrar uma saída consistente com esse pressuposto orientador. Tal como já escrevi num outro trabalho,

“…por mais rigorosos que sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e profundos que sejam os tratados que descrevem certos aspetos do seu funcionamento, há uma dimensão da consciência que continua a escapar aos melhores (cientistas e filósofos). Esta dimensão é precisamente o segundo nível do problema identificado por Chalmers, o do “hard problem” da consciência. Porque, admiravelmente, os neurocientistas são capazes de explicar em parte o modo como o nosso cérebro identifica, por exemplo, uma face conhecida na rua, descrevendo os processos neurológicos que lhe estão subjacentes; conseguem, inclusive, descrever com algum sucesso o modo como o cérebro transforma os dados dispersos que penetram pelos sentidos em padrões informacionais reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na prática, traduz a informação que vem do mundo (por ex., através da luz), em padrões, imagens mentais, ideias, perceções. Aquilo que eles falham permanentemente em explicar, a “pedra no sapato” da investigação neurocientífica, é o modo como somos capazes de percecionar subjetivamente esses padrões, essas imagens mentais, essas perceções. Dito de outro modo, a questão fundamental é a de saber como é possível a experiência subjetiva, que na prática significa perguntar acerca da natureza da mente e do mental, da sua qualidade (qualia).” (O bosão da consciência, Blog Casa do Ser, § 33)

Talvez esteja na altura, portanto, de uma revolução coperniciana, também no domínio das neurociências, que reabilite outras hipóteses, como a da alma, que possam desbloquear este problema.
Entendo aqui a “alma” num sentido minimalista, isto é, não no sentido de um órgão, substância ou entidade metafísica que substitua o cérebro e as suas incontornáveis funções de processamento cognitivo e sensorial, que hoje é mais do que inquestionável que têm origem nos processos neurológicos; não uma alma no sentido tradicional, isto é, origem do pensamento, da vontade, da inteleção, dos sentimentos, emoções e perceções, mas tão-só a base, digamos, metafísica, onde todos estes fenómenos produzidos pelo cérebro se refletem, ou seja, adquirem o seu caráter subjetivo. Cito de novo o já referido trabalho (Idem, § 21): “O ser consciente é, pois, reflexivo, porque dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a produz para outrem.”
Não nego, por conseguinte, como não podia negar face à vanguarda da investigação neurocientífica, que o cérebro - provavelmente o mais complexo de todos os sistemas biológicos e não-biológicos conhecidos -, seja de facto a origem de todas as funções neurológicas e cognitivas: intelectuais, emocionais, percetivas, volitivas, não-volitivas, etc. Mas não necessariamente da consciência que sustenta e torna possível a experiência subjetiva.
            Definiria “alma” como uma espécie de “essência senciente”, por natureza contínua, eixo fundamental, núcleo duro da identidade ou “si”, em cuja órbita se constrói o “eu”, que é a identidade sociocultural. O “si” não é o “eu”, pois este último pressupõe um conjunto de dimensões socioculturais e socio-identitárias, que dizem respeito à história e projeto de vida do sujeito (o que chamo de “identidade projecional” – sonhos, aspirações, objetivos de vida, etc.). O “si” é o alicerce, a medula do “eu”, a própria condição de possibilidade de qualquer identidade individual, porquanto seja a base de toda a reflexividade consciente – aquilo que outrora designei por “espetador”, que situado no mais profundo e misterioso reduto da toda a consciência individual, se constitui como retaguarda, consumidor final, observador primeiro e derradeiro dos eventos electroquímicos ou neurológicos do cérebro na sua face mental ou subjetiva - precisamente o factor que faz toda a diferença entre o simples computador, que não é consciente ou sensível aos produtos e padrões informacionais que produz, por não possuir tal “retaguarda”, e o ser consciente, o homem ou o animal, que não só possui dentro da sua caixa craniana o mais complexo e potente computador biológico, mas é consciente e sensível, de um misterioso ponto de vista subjetivo, aos seus produtos de ordem cognitiva, pois é dotado de interioridade.
Espetador fugidio, sem localização definida ou definível, fisicamente falando; natureza misteriosa, “olho do espírito”. Acerca da sua natureza podem elocubrar-se várias teorias, inclusive aquela que aventei na aventura especulativa que constituiu o trabalho anterior já por duas vezes citado (e que não passa disso mesmo, uma aventura especulativa como qualquer outra…).
Fundamento do “eu”, dizia, pois toda esta esfera socio-identitária que constitui o “eu”, sendo por natureza concetual e simbólica, seria insustentável sem a dimensão da interioridade ou subjetividade consciente, que por sua vez seria impossível sem a base ou fundamento de toda a experiência subjetiva, logo de toda a consciência – a dita “alma” ou “essência contínua senciente”, que porventura será independente do cérebro físico, ou situar-se-á num plano ontológico paralelo.
Eis algumas das razões porque defendo que a consciência não pode ser explicada sem o recurso a esta realidade fundamental. Embora a neurociência e as ciências cognitivas estejam perto de explicar os processos neurofisiológicos por via dos quais o cérebro produz perceções - que não são senão imagens e padrões mentais de carácter informacional -, está por resolver o fulcro do problema, que tem que ver com o modo como estas perceções – que na origem não são senão eventos electroquímicos no cérebro – são interpretadas subjetivamente, isto é, adquirem o caráter muito real de eventos mentais percecionáveis de um ponto de vista subjetivo, no contexto de uma interioridade consciente. Como é que um padrão electroquímico despoletado no cérebro de um dado sujeito que, por exemplo, se queima ao colocar as mãos no fogo, pode ser efetivamente sentido como dor para esse mesmo sujeito, de um modo absolutamente único e intransferível? Sim – como explicar que esse padrão originalmente neuroquímico possa adquirir esse caráter mental de “ser-para-alguém”? Este, parece-me, é o fulcro do problema. Sendo verdade que o nosso mundo mental é um fluxo interminável de diferentes perceções, imagens e eventos mentais vários, fruto de uma máquina biológica que evoluiu precisamente para ser capaz de a todo o momento extrair informações acerca do mundo interior e exterior, pensando-o e interpretando-o sensorialmente, é também verdade que existe um denominador comum a todas as perceções: são sempre “nossas”, confundem-se com a identidade do próprio sujeito que as perceciona; quer dizer, a experiência subjetiva não se distingue do próprio sujeito da experiência; um não se entende sem o outro, e, em boa verdade, não existe sem o outro. Como, aliás, o próprio “eu”, ou seja, a identidade social ou sociocultural, não existe fora do sujeito que, subjetivamente, a interpreta e pensa conceptualmente, sendo que a identidade enquanto constructo conceptual e simbólico é simultaneamente uma perceção ou evento mental complexo (a “ideia de si”) e o próprio “eu”, ao qual o sujeito se refere quando fala ou toma consciência de si próprio. Graças, portanto, à experiência subjetiva, a identidade adquire o seu carácter “reflexo”, ou seja, torna-se identidade de e para alguém; torna-se em ideia autorreferencial, porquanto continuamente parte de si para voltar a si – torna-se “eu”, portanto.
É como se a experiência subjetiva ocorresse num estranho e misterioso reduto da mente, onde os padrões informacionais electroquímicos misteriosamente se transmutam em eventos mentais, perceções, sentimentos. É como se, num qualquer “centro” mental ou fisiológico ocorresse uma comunicação, um contacto ou sobreposição total que permite uma continuidade entre realidades de naturezas distintas, um contacto integral, ponto por ponto, como numa plasmagem, entre uma realidade de ordem fisiológica e outra não-fisiológica, em que a informação electroquímica da primeira fosse transferida à segunda numa forma, digamos, imaterial, ou da matéria, seja ela qual for, que constitua o propriamente “mental” ou “consciente”. Recorrendo à terminologia kantiana relativamente à chamada “aperceção transcendental”, seria como se uma “unidade de perceção” contactasse integralmente, ponto por ponto, com uma “unidade de consciência”, numa sobreposição total entre ambas, só isso explicando que uma dada perceção – por ex., a visão de uma árvore à minha frente, a partir da janela – seja percecionada como uma totalidade, isto é, uma visão integrada à qual não falta nenhuma parte da qual eu possa ter diretamente consciência, nas atuais condições de distância, visibilidade, etc. Escreve Kant: “…as diversas representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas representações minhas se não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O pensamento de que estas representações dadas na intuição me pertencem todas equivale a dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo menos posso fazê-lo” (KANT, Crítica da Razão Pura, B133-B134, pp. 132-133)
E repare-se que esta questão da “unidade de consciência”, unificadora e integradora dos fluxos electroquímicos do cérebro em totalidades designadas perceções, é tão mais misteriosa quanto as neurociências ainda não foram capazes de determinar, de forma exata e conclusiva, no cérebro como no restante sistema nervoso, nenhum “centro” onde a referida transmutação físico-mental possa ocorrer. Não se conhece nenhum centro fisiológico onde possam convergir os vários fluxos informacionais de caráter neuro-electro-químico que se processam em sectores diferentes do cérebro, de modo a formar uma totalidade, um padrão informacional complexo que possa ser interpretado mentalmente como uma perceção complexa. Pois, como é sabido, a formação de uma perceção complexa envolve o contributo de vários sentidos e processos cognitivos, que ocorrem em “clusters” neuronais situados em pontos diferentes do cérebro. Por exemplo: tenho a perceção muito evidente, coerente e integrada, de que estou neste momento sentado numa cadeira de madeira um pouco dura, a escrever ao computador, em minha casa, sobre uma mesa de madeira com uma textura muito polida. Pela janela do meu lado direito entra a luz do sol; posso ouvir a música de fundo que toca na playlist do meu computador, e os meus dedos a bater nas teclas. Tenho na boca o sabor do café que acabei de beber e cuja chávena se encontra ao meu lado direito, sobre a mesa, e no nariz ainda um pouco do seu cheiro delicioso. Em resumo, é este o ambiente que me rodeia e onde me posso neste momento situar, de forma consistente e integrada - enfim, una, porquanto essa unidade que caracteriza a minha perceção complexa seja o reflexo ou projeção da “unidade de consciência” que me constitui.
Ora, todos os estímulos que constituem esta perceção complexa são processados e transformados em padrões electroquímicos em diferentes setores do cérebro, a saber: os táteis são processados na área somatossensória, localizada no lobo parietal; os auditivos, no córtex auditivo, localizado no lobo temporal; os visuais, no lobo occipital, localizado na parte de trás do cérebro. Não obstante a distância que separa os vários setores, a experiência subjetiva é sempre una, e não fragmentária e parcial. O fluxo de dados percecionais, embora alimentado por correntes de informação sensorial e cognitiva de natureza distinta e com origem em pontos diferentes do cérebro, é misteriosamente unificado por um laço que supera e suprime essa distância; um laço que supera o meramente o local; um laço, digamos, não-local



Mesmo que esse centro físico bem determinado no cérebro existisse, continuaria ainda por explicar o intrigante processo segundo o qual, nesse local em particular, o físico se transformaria em mental, quer dizer, o meramente electroquímico em experiência subjetiva consciente; o como e também o porquê desse local em específico possibilitar essa estranha alquimia que permite a introdução de um conjunto de fenómenos fisiológicos e electroquímicos observáveis e mensuráveis objetivamente, no mundo não observável e não objetivamente mensurável da subjetividade, onde só o sujeito é senhor da sua interioridade. Se, por outro lado, esse centro físico não existe, resta-nos conjeturar, por exemplo, que o cérebro é ele todo, integralmente, um “grande centro”, onde a realidade, digamos, imaterial da consciência (isso a que decidi chamar “alma”) coexiste paralelamente à realidade material, fisiológica do cérebro, talvez mesmo de um modo fundamental, celular ou quântico, permitindo uma imediata apreensão e unificação, a todo o momento, dos vários fluxos de informação sensorial e percetiva processados em setores situados em áreas diferentes do cérebro; ou seja, permitindo que diferentes processos sensoriais e cognitivos se transformem, imediatamente, em perceções complexas cujo caráter essencial é o de serem percecionadas de um ponto de vista subjetivo, de forma unificada e integrada. 


Web/Bibliografia

- O bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o “hard problem” da experiência subjetiva - Blog Casa do Ser, link: http://casadoser.blogspot.pt/2015/07/o-bosao-da-consciencia-uma-proposta.html.


- KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, trad. de Manuela Santos e Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 

domingo, julho 17, 2016

Angústia existencial


(Foto: por Filipe Pimentel)


A angústia existencial tem muito que ver com a consciência dolorosa de que se fica sempre aquém do que se pode realizar e ser, do que se pode de mais alto pensar e sentir; a consciência do desperdício da vida, por medo ou comodismo. É a dor de uma alma que se sente capaz de grandes e belos feitos, que sente vocação de imortalidade... e no entanto, se sente limitada e como que condenada a uma circunstância de vida da qual se sente incapaz de se libertar. E tanto maior é a consciência e a dor dessa limitação, quanto maiores são os seus sonhos e aspirações, quanto mais alto é aquilo que pode pensar e sentir. A consciência recorrente deste confronto entre o sonho e a realidade aparentemente intransponível da limitação, entre a pulsão vital do ilimitado e a limitação circunstancial que, de forma angustiada, se julga intransponível, tem de cada vez o sabor de uma pequena morte; tem o sabor amargo do tédio e do absurdo. E este sentimento fere mais por se saber que o tempo é curto, e que se vai morrer.

É isto a angústia.

Como ultrapassar isto? Muitas vezes, fica-se à espera. À espera de um resgate. Espera-se que a libertação venha de fora. E às vezes vem, mas só dura realmente se formos capazes de tomar as rédeas da nossa salvação, se estivermos dispostos a assumir até ao fim, sem medo ou desânimo, covardia ou preguiça, todas as consequências, boas ou menos boas, agradáveis ou dolorosas, das nossas completas escolhas. Escolhas que se tomam integralmente (ou que às vezes nos tomam integralmente), sem olhar para trás. Os germens do medo e do comodismo, da dependência e do desânimo, estão sempre em nós, nunca nos abandonam verdadeiramente, mesmo depois de vencidas as pontuais circunstâncias limitadoras. É que, para além de vencermos as circunstâncias, temos de saber vencer-nos a nós próprios, a todo o momento – e isto é o essencial de toda a sabedoria. Estamos sempre em risco de “cair” numa nova dependência, num novo estado inferior de limitação e pobreza de espírito, frequentemente iludidos de que se tratou de uma escolha real, quando na verdade fomos sim determinados pela nossa fraqueza, cedemos ao encantamento de sereia do fácil e cómodo. Depois da comodidade, vem a angústia – mas então já nos acomodamos, inclusive à própria angústia, que é o pior! Não há nada mais pernicioso para um espírito do que uma angústia acomodada, ou um comodismo angustiado.

A ausência de luta jamais foi sinónimo de paz. A verdadeira paz, que é paz de consciência, exige luta permanente, e contínua vigília e atenção. Luta e vigilância contra as tentações do medo, do fácil e do cómodo, que às vezes se rebuçam em falsas possibilidades de escolha. Luta, que é trabalho, para manter vivos os sonhos, claras as ideias e os propósitos, vigorosas as forças, as faculdades, as virtudes e os afetos. Luta que, bem orientada na direção de uma vocação ou horizonte de vida, se traduz em verdadeira paz - a paz que nasce do movimento (não da mera agitação), que como Einstein dizia recorrendo à analogia do ciclista, é a única forma de manter o equilíbrio na vida. 

segunda-feira, março 14, 2016

Sobre o progresso ético-espiritual do Homem - apontamentos



Progresso ético-espiritual do Homem

Ainda que possa não existir um progresso no sentido cumulativo, uma evolução contínua, o progresso do conhecimento, da ciência, da cultura, da filosofia, da psicologia humana, da arte, permitirão pelo menos que cada geração tenha acesso ao conhecimento e aos instrumentos necessários para se tornar o melhor possível, para desenvolver plenamente as suas potencialidades, virtudes e talentos, sem menosprezar nenhuma dimensão da sua humanidade. A tarefa do “Conhece-te a ti mesmo” não pode ser realizada por outrém, nem o conhecimento acerca de si próprio ser transmitido como um conteúdo já feito e pré-estabelecido; é um trabalho que só pode ser realizado por cada indivíduo, levado a cabo e renovado por cada geração de seres humanos, uma e outra vez, partindo quase do nada.

Neste contexto, não sendo o progresso ético-espiritual de caráter filogenético, mas antes simbólico e cultural, existe na medida em que o progresso do conhecimento, o acesso pleno à cultura de todas as eras – desde logo, e em primeiro lugar, através da educação -, colocam cada geração de seres humanos cada vez melhor posicionada para se cumprir, quer dizer, para desenvolver o melhor das suas virtudes humanas, os seus talentos e potencialidades, os seus horizontes e projetos de vida, cada vez mais próximos das exigências maiores da dignidade humana – assim realmente o desejem!

A primeira das finalidades de qualquer Civilização digna desse nome, deveria ser, aliás, nada menos do que isto: a realização plena da pessoa humana em cada indivíduo, na sua singularidade, por via de uma aprendizagem contínua e de um esforço de aperfeiçoamento incessante, num processo de expansão de consciência que o torne mais lúcido e capaz de aprofundar o conhecimento acerca de si próprio e da realidade existencial do homem enquanto tal, e do universo como um todo, onde esta existência tem lugar.

No homem, a virtude só pode estar em mais consciência, e não o contrário, o que o reduziria progressivamente à mecânica animalidade que só em parte o constitui. Só a consciência lhe permite uma real compreensão do mundo e da natureza das coisas, compreensão no sentido inglês de understand (situar-se debaixo, na base que sustenta as coisas; ver as coisas a partir do ponto de vista privilegiado do fundamento, que lhes confere ser e verdade). É por isso que para o homem saber não chega; factos não são suficientes, porque são parciais, porque não contam a totalidade, mas apenas a parte; porque não revelam toda a história. O homem aspira a conhecer; o mesmo é dizer, a compreender desde a raiz; está na natureza do homem querer olhar para dentro da toca do coelho, saber o que lá há, até onde vai a sua profundidade. O homem aspira à inteligibilidade, à compreensão da teia mais geral que sustenta os factos e lhes confere coerência e racionalidade; a curiosidade humana exige o conhecimento das ratio essendi, a razão de ser das coisas serem como são, e este desejo não tem quaisquer limites.


Educação e o seu papel

Numa civilização digna desse nome, fundada sobre o propósito fundamental da realização plena da pessoa humana, creio ser evidente o papel crucial da Educação. Sobre a Educação, entendida no sentido mais lato possível, recai a enorme responsabilidade de formar, não apenas o cidadão, não apenas o técnico, não apenas o especialista, mas o homem na sua inteireza, que contempla as dimensões ética, cognitiva, estética, física, psicológica, emotiva-afetiva, espiritual, etc. Cabe à Educação a função axial de, como dizia Hannah Arend, introduzir as novas gerações ao mundo, não apenas ao “mundo social” ou “laboral”, ao “mundo do trabalho” ou “mercado”, mas ao mundo no sentido mais radical e abrangente possível, que se confunde em última instância com a própria Vida e as suas exigências, com a Existência enquanto mistério e enquanto problema a resolver; um problema com muitas variáveis – cognitiva, emocional-afetiva, existencial, etc. Trata-se, na verdade, não de um problema secundário ou derivado, mas do problema por excelência, o alfa e o ómega das nossas existências humanas particulares, cuja resposta significaria a descoberta da própria ratio essendi, a razão de ser das nossas vidas. Um problema que todos sabemos ser muito prático e central nas nossas existências, e não meramente teórico e entendido como marginal e para tratar “quanto houver tempo”, como um hobby privado, que em nada deve importunar o fluir normal da corrente social, política e económica, cujos propósitos são normalmente muitos diversos e mais “mundanos” e supostamente mais “urgentes”. Trata-se da nossa vida e do seu sentido, tudo aspetos que emergem nos embates e confrontos muito reais e práticos da existência, nos momentos de grande perda, no sofrimento e na dor, nas dificuldades de relação e comunicação com os outros, no tédio e nos vazios de sentido, na perspetiva da morte, nas impermanências do amor, etc.


Cabe à Educação, por conseguinte, a enorme e crucial responsabilidade de abrir ao indivíduo todos os principais horizontes do mundo e da vida, de o colocar perante os horizontes do conhecido e do possível – da ciência e do conhecimento em geral, da arte e da cultura, da espiritualidade e da criação, do heroísmo ético, da psicologia, etc. É absolutamente essencial para a formação do homem que este conheça bem as fronteiras do espírito humano, em todas as suas vertentes e dimensões, pela simples razão de que essas são também, globalmente, as fronteiras do seu próprio espírito, e por conseguinte da sua humanidade. Desse modo, ele saberá até onde pode ir, e o que poderá ele próprio realizar, construir e criar. Saber-se-á membro de pleno direito da família humana, a quem não é pedido somente que preserve e reproduza acriticamente um património de conhecimento de cultura, mas que o aumente e aperfeiçoe, que o renove e atualize, e que no seu modo de viver, nas suas ações e criações, lhe preste continuamente homenagem vivendo a sua vida o melhor possível, de acordo com as promessas inscritas na sua própria humanidade singular, expressão particular da humanidade universal.

sexta-feira, agosto 28, 2015

Atravessar o deserto


Eis o que significa atravessar o deserto: enfrentar os próprios fantasmas, os próprios medos, os pensamentos e as mágoas do que fizemos ou não fizemos, os arrependimentos; vencer todos esses “Ciclopes e Lestrigões” (como dizia Kavafys no Ítaca) que todos temos dentro de nós, e teimamos em lançar à nossa frente no caminho, e que frequentemente nos paralisam. O medo que nos inspiram limita-nos, faz-nos desistir, impede-nos de andar para a frente e de realizarmos a nossa plena humanidade (cuja outra face é a nossa plena divindade, ambas sendo uma e a mesma coisa). Todos os Cristos e Budas que se lançaram no deserto – fosse de um modo literal ou por via de uma ascese, que sempre significa um internamento em si próprio - não tinham outra intenção senão a de habituarem os seus olhos espirituais à escuridão, para que, paradoxalmente, estes pudessem ter um vislumbre dessa luz plena e muito subtil que constitui o nosso ser profundo, a nossa consciência, e que participa do Verbo (Logos), i.e., da realidade metafísica, ontológica do mundo, a “Verdade” ou “Lei cósmica”. Mergulhar no deserto tem o sentido de uma dúvida radical e hiperbólica à la Descartes: esperar que do “nevoeiro” e da aridez informe do nada emirja uma evidência, uma verdade tão sólida e profunda que não possa ser “nadificada” pelo rolo compressor da dúvida. Neste caso, como em qualquer caso, a verdade e certeza que se espera que emirja, ao mergulhar no deserto, é a da própria Alma, que se espera que tome o lugar do nada lançando a sua luz. É uma profunda e radical busca pela autenticidade, pela essência.

É Heraclito que diz: “Os limites da alma não é possível descobri-los, mesmo percorrendo todos os caminhos, tão profundo é o Logos que a sustenta.”

Se o silêncio, a escuridão, a solidão, o vazio, a falta de estímulo sensorial, não te perturbam, ou te perturbam menos, então já venceste. Habituaste-te à Presença inefável da tua consciência, que tudo vê, bem enraizada na retaguarda do teu ser. Já não és escravo de sensações, e nem sequer de ideias, porque te descobriste superior a ambas; já não és guiado ou coagido por elas a ir por aqui ou por ali, escravo de apetites ou ilusões, mas és tu que as guias e pastoreias. Tornaste-te realmente no pastor dos teus pensamentos, no senhor da tua vontade, porque a cada momento reconheces que não és exclusivamente o que pensas ou sentes, nem sequer a soma de todos os teus pensamentos e sensações, mas a consciência que pensa ou sente, situada sempre aquém e além deles, e a eles sempre infinitamente superior. Essa consciência que podes entrever imperfeitamente na retaguarda da tua mente, como um espelho que tudo reflete, nem sequer se confunde com a tua ideia de “eu”, mas ultrapassa-a ao ponto de essa Presença te parecer – pelo menos no início -, estranha a ti próprio, alheia, como se fosse um “outro eu” que coexistisse contigo na mesma pessoa. Depois de te habituares a essa Presença, tornas-te nela, e desta feita já não é ela que te parece estranha, mas o próprio “eu” pessoal e identitário que te habituaste a alimentar ao longo da tua vida como sendo tu, a quem dás um nome e que reconheces ao espelho – descobres que esse “eu” não é senão uma fachada, uma máscara, uma existência apenas nominal. A tua consciência é muito mais vasta que os limites do teu eu nominal, embora não possas negar ao teu eu nominal a sua missão, e a sua verdade.


Dois "eus"


É como se em mim convivessem dois "eus". Um "eu" criando, abrindo caminho, iluminando o mundo para que nele o outro "eu" viva. O primeiro - o meu "eu" mais profundo e sólido, a fonte da minha consciência - cria, ilumina, abre perante mim o mundo, no qual o segundo - o meu "eu" mais imediato e mutável, a minha vontade livre, o meu ego pessoal e identitário - vive, age, se movimenta, existe. O primeiro "eu" a-presenta-me o mundo, mostra-me o caminho; o segundo "eu" a-presenta-se ao mundo, percorre o caminho. Um inconsciente, subterrâneo; outro consciente, superficial. Os dois são eu.

O "primeiro eu" aparece primeiro, "a priori", antes que o ego tome consciência de si próprio, antes da emergência de qualquer forma de identidade, personalidade, símbolo, conceito ou significado - logo, é inclusive anterior ao próprio mundo, na sua forma existencial, pois ainda não emergiu o exist(ente). Nesse primeiro e fugaz momento que precede o ego, a consciência é apenas luz, pura presença, onde não há forma ou individuação. E, no princípio, o ego que emerge, ainda embrionário, não faz mais do que "pairar sobre a superfície das águas", ainda incapaz de distinguir na homogeneidade branca da luz da consciência qualquer espécie de forma ou individuação. Ainda não há mundo, pois não se consumou ainda a cisão entre sujeito e objeto; ainda não se "separou a luz das trevas", nem se rasgou o "firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras").

Cedo passamos a existir na esfera existencial das coisas individuadas (formas, objetos, conceitos, ideias), cujo centro absoluto é o nosso ego (mais uma forma), esquecendo rapidamente da luz que o precede, que ilumina os objetos, que lhes dá ser (como rapidamente nos esquecemos do ar que respiramos). Somos por vezes levados a acreditar, como idólatras, que essas formas e objetos é que são "reais", que o mundo que existimos enquanto indivíduos é tudo o que existe, subsistindo por si próprio.(sim, é mesmo "mundo que existimos", e não "em que existimos", pois é o existente que existe o mundo, no sentido em que o mundo "é existido" pelo existente, i.e., é uma projeção, extensão ou exsudação de si próprio).

Mas esquecemo-nos rapidamente que sem consciência não há mundo; ou seja, que é através da experiência subjetiva - cuja qualidade é ideal ou mental (como quem diz, imaterial) -, que a concretude material do mundo chega a nós, ou toma forma no nosso espírito. Dito de outra forma: a primeira, mais imediata, evidente e "real" de todas as realidades é a consciência. Todas as outras realidades que constituem a esfera do nosso mundo, da nossa realidade existencial, devem a sua luz à luz da consciência, em maior ou menor grau. São, a bem dizer, realidades mediatas, em segunda-mão, pois só a consciência é "prima facie". E o que é realmente intrigante é que a fonte dessa luz está radicada bem no interior de nós, sendo talvez o aspecto mais importante e que melhor define a nossa natureza, a natureza de todos os seres sencientes, e a própria vida enquanto fenómeno.


E saber olhar, meditar sobre o que se está a ver (sejam objetos ou ideias), não é mais do que captar o seu caráter fundamental de "pura presença", que é sobretudo a consciência atravessando a forma, reconhecendo-se a si própria nela, e por isso dissolvendo temporariamente a distinção entre sujeito e objeto, restaurando a visão plena da consciência de si para si.

segunda-feira, julho 20, 2015

O bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o “hard problem” da experiência subjetiva




O mistério da consciência – nota introdutória

           
            O filósofo norte-americano David Chalmers divide o problema da consciência em dois níveis[1]. O primeiro, o dos “easy problems”, tem que ver com o funcionamento dos processos neurológicos relativos à cognição, perceção, emoção, etc. Isto é, tem que ver com a compreensão do funcionamento da “maquinaria” biológica que faz do cérebro um extraordinário mecanismo de processamento de informação, reconhecimento de padrões, conhecimento, perceção, etc. A neurociência têm atalhado estas questões com bastante sucesso nas últimas décadas, e não é de todo implausível que a maior parte delas venha a ser resolvida satisfatoriamente nos próximos dez, quinze anos. Este sucesso deve-se sobretudo ao progresso significativo das tecnologias de análise e mapeamento ao serviço da investigação neurocientífica. Aliás, como se sabe, foi posto em marcha recentemente um projeto de mapeamento total do cérebro para os próximos anos (o “BRAIN Initiave”[2]) apadrinhado pelo governo norte-americano, que visa precisamente fazer um mapa completo da anatomia do cérebro e resolver – ou lançar as bases para a resolução – de muitas destas questões.
            De facto, por mais rigorosos que sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e profundos que sejam os tratados que descrevem certos aspetos do seu funcionamento, há uma dimensão da consciência que continua a escapar aos melhores (cientistas e filósofos). Esta dimensão é precisamente o segundo nível do problema identificado por Chalmers, o do “hard problem” da consciência. Porque, admiravelmente, os neurocientistas são capazes de explicar em parte o modo como o nosso cérebro identifica, por exemplo, uma face conhecida na rua, descrevendo os processos neurológicos que lhe estão subjacentes; conseguem, inclusive, descrever com algum sucesso o modo como o cérebro transforma os dados dispersos que penetram pelos sentidos em padrões informacionais reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na prática, traduz a informação que vem do mundo (por ex., através da luz), em padrões, imagens mentais, ideias, perceções. Aquilo que eles falham permanentemente em explicar, a “pedra no sapato” da investigação neurocientífica, é o modo como somos capazes de percecionar subjetivamente esses padrões, essas imagens mentais, essas perceções. Dito de outro modo, a questão fundamental é a de saber como é possível a experiência subjetiva, que na prática significa perguntar acerca da natureza da mente e do mental, da sua qualidade (qualia).
Pois, apesar da reconhecida importância da descrição e explicação dos processos fisiológicos que estão na origem da cognição, memória, reconhecimento de padrões, etc., não se pode negar que o cérebro não se limita a ser uma máquina de processamento de informação, mera exterioridade toda ela circuitos, módulos e redes neuronais. Existe uma realidade por detrás de tudo isso que não podemos ignorar ou “atirar para debaixo do tapete”, porque todos a experimentamos a cada momento de uma forma intensa e vívida, e sem ela não seriamos diferentes do nosso computador pessoal, ou, em verdade, de um simples microondas. É a experiência da interioridade, ou, se quisermos, da subjetividade, esse espaço interno, irredutível e intransmissível onde decorre toda a nossa vida mental, cognitiva, emocional, em suma, significante para nós. Se duas pessoas olham para a mesma árvore, é certo que ativam os mesmos circuitos neuronais responsáveis pela cognição e perceção (ativação que pode ser visível através de um scan), mas cada um chamará sua à perceção que tem da árvore, porque cada um a ela terá acesso no reduto intransmissível da sua subjetividade (algo que está completamente inacessível à tecnologia de rastreio, por mais desenvolvida que seja). Se duas pessoas se queimam com um fósforo, o mesmo acontece: cada um sentirá a dor respetiva de um modo único, subjetivo, pessoal, intransmissível.
            Toda a perceção interna ou externa (i.e., de estados internos como a tristeza e a alegria, ou resultantes de estímulos provenientes dos sentidos) tem uma componente subjetiva. Com efeito, se quisermos ser rigorosos, não há perceção externa, porque toda a perceção é interna, isto é, ocorre no espaço de uma interioridade subjetiva. E na perceção interna, enquanto experiência subjetiva, reside o núcleo do problema da consciência.
            Insistimos neste ponto: a descrição fisiológica do modo como o cérebro produz imagens mentais, padrões, ideias, não explica esse “ver” subjetivo (chamemos-lhe assim), que constitui a perceção interna acessível, de forma privilegiada, exclusivamente aquele sujeito que habita uma dada interioridade. Um supercomputador é também capaz de processar informação e produzir “imagens”, mas estas não são percecionadas subjetivamente por ele. É preciso que outrem que não o computador interprete essas imagens projetadas num ecrã, um outrem dotado de uma subjetividade.
Entendemos, por conseguinte, que o desbloqueamento do impasse do problema da consciência - que algumas das melhores mentes consideram pura e simplesmente irresolúvel, e outras resolúvel a seu tempo, mas ainda fora do alcance dos nossos instrumentos técnicos e teóricos[3] - implica uma mudança de paradigma que não atribua a emergência da consciência exclusivamente aos processos bio-fisiológicos do cérebro, mas, quem sabe, a dimensões do mundo quântico ainda desconhecidas. Neste trabalho apresentamos uma hipótese que vai nesse sentido, ainda que de um modo preliminar e, admitimos, bastante especulativo. Limitamo-nos, em parte, a insistir na proposta já feita por alguns físicos, entre os quais Roger Penrose[4], de que o mundo quântico talvez possa ter um papel muito importante – senão mesmo fundamental – na resolução do “hard problem” da consciência.
Além do mais, partilhamos também da visão de Chalmers[5] segundo a qual o fenómeno da consciência deve cada vez mais ser entendido como algo que está de algum modo inscrito no tecido fundamental do próprio universo, uma espécie de força ou grandeza tão fundamental como, por exemplo, a gravidade, o electromagnetismo ou até o espaço e o tempo, e não como um simples subproduto biológico do cérebro, sem grande mistério.
Não dispomos, nem do conhecimento, nem da evidência, nem dos necessários instrumentos científicos e matemáticos para sustentar cientificamente a nossa proposta. Este é um artigo, antes de mais, especulativo, filosófico. O progresso do conhecimento também se faz de imaginação, e por vezes, tal como propunha Einstein, é preciso recorrer a uma nova forma de pensar, se um problema persiste em não se deixar solucionar recorrendo aos velhos modos. Por vezes é preciso dar um passo atrás, ver a “big picture”, e aceitar que as respostas podem vir precisamente de onde menos se espera.
Ainda que a hipótese que propomos seja falsa, ou apenas incompleta, deve pelo menos ser atendida por quem tem o necessário conhecimento e instrumentos para a avaliar e testar. Este artigo foi escrito por filósofos (passe a imodéstia), e não por físicos. Se for verdadeira, total ou parcialmente, melhor. Se não for, como é extremamente provável que não seja, terá pelo menos sido mais um degrau no processo de tentativa e erro através do qual progride o conhecimento. É, todavia, segundo entendemos, dever de quem pensa, pensar, e pensar diferente quando necessário, mesmo correndo o risco de errar, mesmo correndo o risco de perder as boas graças do seus pares, o seu estatuto, a sua reputação. Tal como defendia Popper, o progresso científico tem paralelo com a evolução biológica: são mais os erros, as conjeturas que se vieram a revelar falsas, do que aquelas que se vieram a revelar verdadeiras, do mesmo modo que foram mais os erros e os ramos sem saída da evolução biológica do que os sucessos. Todavia, sem esta imensidão de erros e falsas partidas nenhum progresso seria possível, ainda que o preço a pagar tenham sido gerações inteiras de esforços e sacrifícios nunca devidamente recompensados.

           
As forças fundamentais do universo – partículas, campos quânticos, e interação entre eles


São conhecidas quatro forças fundamentais no universo, cada uma delas dispondo de uma partícula que a transporta e transmite: a força electromagnética é transmitida pelo fotão, a força gravitacional pelo gravitão (ainda por descobrir), a força nuclear forte pelo gluão, e a nuclear fraca pelas partículas W e Z. Estas partículas-transporte de força (force-carrier particles) são normalmente incluídas na categoria dos “bosões”.[6] Acresce a existência do chamado “bosão” ou “campo” de Higgs, que confere massa à maioria das outras partículas pelo modo como interage com elas, e está presente em toda a parte no universo.
Com efeito, cada uma destas partículas-transporte de força (ou “partículas mensageiras”, como também são chamadas) deve ser vista, não no sentido clássico, como uma espécie de berlinde de matéria em dimensão micro, mas como um “quantum” de energia, isto é, como uma certa quantidade, muito pequena, de energia pura, inserida num campo energético mais vasto que podemos designar por “campo quântico”. Tal como explica Gribbin (1986),

“A energia surge em unidades definidas, chamadas quanta, cada uma das quais com uma quantidade definida de energia, ou de massa. As partículas são pedaços energéticos do campo, confinados a uma certa região pelo princípio da incerteza[7].” (211)

Neste contexto, cada campo de força, seja gravitacional, nuclear ou electromagnético, não é senão um campo de energia onde ocorrem flutuações e trocas energéticas constantes através de pequenas unidades ou “pacotes” energéticos que se movimentam ao longo de “linhas de força”[8]. Cada um desses “pacotes” é uma partícula, como um fotão, um electrão, um gravitão, ou um gluão, mas pode também ser visto como uma onda, dado que cada unidade definida de energia possui o seu próprio campo quântico, as suas flutuações energéticas próprias, e só pode ser convenientemente descrito através de uma “função de onda”[9]. É daí que vêm a chamada “dualidade onda-partícula” que caracteriza o mundo subatómico, e que está na base da física quântica.
O que nos importa aqui sublinhar, acima de tudo, é que existem várias espécies de campo de força, que são, na prática, campos de energia ou “campos quânticos”, que estão por toda a parte no universo, constituídos por unidades definidas, “quantas” de energia às quais se convencionou chamar de “partículas”, mas que também podem ser vistos como “ondas”, dado o seu comportamento flutuante e fundamentalmente imprevisível. Com efeito, podemos pensar na totalidade do universo como “uma multiplicidade de campos e partículas a interagirem” (Id.: 208).
De facto – e este parece-nos um dos pontos mais relevantes -, nós próprios e os restantes corpos materiais do universo, todos constituídos por partículas atómicas e subatómicas, pedaços de energia, campos quânticos, interagimos com todas e cada uma das forças que constituem a trama fundamental do cosmos, de tal modo que se assim não fosse, seriamos de certo muito diferentes daquilo que somos. As forças cósmicas que melhor conhecemos – gravitacional, electromagnética, nuclear forte e fraca, campo de Higgs -, não se manifestam por si só, mas pelo modo como interagem e influenciam o comportamento e estrutura da matéria, não apenas a nível microscópico mas também macroscópico. Pois vejamos: a luz propaga-se através do campo electromagnético (cuja partícula-transporte é o fotão). Mas, apesar de a luz estar por toda a parte, em vários comprimentos de onda, só somos capazes de ver a luz do dia se a nossa retina – ou a matéria atómica e subatómica da nossa retina – estiver no caminho da luz, e for por isso capaz de interagir com o campo electromagnético (logo, com as partículas-onda fotónicas). Só somos capazes de ouvir as pessoas que falam connosco ao telemóvel, do outro lado da linha, porque existe um dispositivo dentro do telemóvel que é sensível, isto é, interage com o campo hertziano (uma outra forma de campo electromagnético que está por toda a parte) que nós, seres humanos, nos tornamos capazes de manipular de forma a comunicarmos a grandes distâncias, através da transmissão electromagnética de “pacotes de informação”.
Analogamente, é através da interação com o campo gravitacional – dos mais ubíquos do universo – que a matéria se agrega para formar estrelas e todos os restantes corpos astronómicos, que os planetas orbitam as suas estrelas respetivas, e que nós próprios somos exatamente aquilo que somos, com a nossa estrutura corporal adequada à medida exata da força da gravidade terrestre, graças à qual nós e tudo ao nosso redor – até o próprio ar que respiramos - se mantém bem preso ao chão. Parafraseando Greene (2004:255), estamos todos imersos num mar de campos gravitacionais. Em boa verdade, estamos imersos numa plêiade de vários campos de força, com os quais interagimos permanentemente sem nos darmos conta, e sem os quais jamais seriamos aquilo que somos, nem sequer o próprio universo seria o mesmo. A nossa própria história evolutiva – e a de todos os seres vivos conhecidos – foi decisivamente influenciada pela interação com as várias forças cósmicas, na medida em que constituíram e constituem o contexto físico em que a evolução se deu e dá ainda. Tudo o que somos, bio-fisiologicamente falando, diz muito acerca do que o próprio universo é.  
O campo de Higgs (também designado por “bosão de Higgs”) é um outro exemplo de um campo de força com uma importância fundamental e, segundo se crê, verdadeiramente ubíquo (há quem o chame de “oceano de Higgs”, por permear todo o universo como uma espécie de “relíquia gelada” dos primeiros segundos do Big Bang[10]). Segundo se crê, é através da interação, a um nível quântico bastante profundo, com o campo-partícula de Higgs (o tal “bosão”), que todas as outras partículas subatómicas adquirem massa, e, por inerência, toda a matéria. Por conseguinte, uma partícula, como, por exemplo, um electrão ou um protão, têm tanto mais massa quanto maior for a sua interação com o campo de Higgs; isto é, dito de outra forma, quanto maior é a resistência que o campo de Higgs oferece ao movimento dessa partícula. Outras partículas, como o fotão por exemplo, pura e simplesmente não têm massa, visto que são tão pequenas que passam despercebidas ao campo de Higgs, i.e., simplesmente não interagem com ele.[11]
A nível macroscópico, todos podemos de facto “sentir” o campo de Higgs, em especial quando experimentamos um movimento de aceleração (como quando o carro arranca subitamente e ficamos com as costas pregadas ao assento, ou quando fazemos uma curva apertada na estrada e somos como que projetados na direção do movimento). Na verdade, o campo de Higgs pode ser uma forma de explicar a lei da inércia, segundo a qual todos os corpos tendem a resistir às mudanças de estado (do repouso ao movimento, do movimento ao repouso).[12] Quanto maior a massa do corpo (ou seja, a sua quantidade de matéria), maior é a resistência que oferece, o que não admira porque mais matéria significa mais partículas, logo, mais resistência oferecida pelo campo de Higgs a nível quântico.[13]




Um bosão da consciência? – o fenómeno da experiência subjetiva como emergência de uma possível interação entre a matéria do cérebro vivo e um campo quântico (ainda) desconhecido

A tese que aqui propomos é a de que a consciência, em particular enquanto experiência subjetiva (awareness) da qual todos os seres vivos sencientes são dotados, é não apenas produto emergente do cérebro vivo, mas também de uma força cósmica ainda por explicar e descrever, que se comporta de modo semelhante às forças já descritas, i.e., através de partículas, campos quânticos ou campos de força. Mais concretamente, propomos que existe uma espécie de “bosão” ou campo quântico que, em relação com a matéria do cérebro vivo, faz emergir a consciência ou vida mental, tornando possível a experiência subjetiva nos seres vivos. Propomos que existe uma espécie de partícula-transporte da consciência semelhante às que assistem às outras forças, mas muito mais subtil. Esta partícula ou campo, ao interagir com o cérebro, tornaria possível a experiência subjetiva, condição indispensável à existência de uma interioridade mental.
Não pretendemos com isto defender uma versão maximalista de um qualquer tipo de “substância” dotada de todas as faculdades intelectuais, cognitivas e emocionais do sujeito consciente (muito semelhante, em todos os aspetos, a uma “alma”), não deixando qualquer margem de participação às funções bio-fisiológicas do corpo em geral e do cérebro em particular na realização destas faculdades. Não defendemos nenhuma espécie de teoria da “encarnação” da consciência num corpo físico, visto apenas como um continente ou depósito dessa substância, passivo, tornando irrelevante o cérebro e as suas funções. Propomos, sim, uma versão minimalista tendente a explicar, exclusivamente, a realidade da experiência subjetiva, partindo do pressuposto inegável de que o cérebro, enquanto complexo biológico – na verdade o mais complexo dos mecanismos biológicos conhecidos – é de facto a origem de todas as funções neurológicas conhecidas: intelectuais, cognitivas, emocionais, voluntárias e involuntárias, na linha do que nos mostra a vanguarda da investigação neurocientífica.            Admitimos, inclusive, o pressuposto fisicalista do no brain, never mind (sem cérebro não há mente). O que negamos, por outro lado, é que as funções fisiológicas do cérebro vivo sejam o único factor responsável pela consciência, i.e, que esta seja um produto exclusivamente bio-fisiológico. Noutras palavras, propomos que sem esta interação misteriosa entre a matéria do cérebro vivo e o que nós designamos por “bosão da consciência” (algo que só um mecanismo da complexidade de um cérebro pode conseguir) a um nível quântico bastante profundo, simplesmente não há vida mental nem consciência (logo, no conscienton, never mind).
Propomos que esta interação do cérebro – ou de algo que emerge do cérebro biológico vivo – com o nível quântico fundamental desta partícula-campo que está por toda a parte, semelhante, pelo menos nesse aspeto, ao bosão-campo de Higgs – é o que torna possível a emergência da experiência subjetiva no domínio de uma interioridade mental (não apenas subjetiva mas pessoal, se falamos de seres intelectualmente mais complexos tais como o homem). Como se o cérebro – repetimos: o mais complexo e extraordinário mecanismo biológico conhecido – fosse capaz de “sintonizar-se” com um determinado nível quântico fundamental, inscrito na trama mais básica do tecido cósmico, associando-se a ele para produzir consciência, vida mental, subjetividade. A possibilidade dessa interação diferenciá-lo-ia, por ex., de uma simples máquina de processamento de informação (vulgo computador), que por muito sofisticada e rápida que seja a fazer cálculos, não pensa, não sente, em resumo, não tem vida mental ou interioridade; ou, para utilizar a terminologia filosófica em voga, não tem qualia.
Não defendemos com isto que uma máquina não possa vir a adquirir a sofisticação suficiente para produzir ou simular pensamentos, sentimentos e emoções, mas não terá de facto interioridade, vida mental, qualia, enquanto não for capaz de “sintonizar-se” a nível quântico com esta partícula ou campo quântico de energia (o tal hipotético “bosão da consciência”), algo que só um mecanismo da complexidade de um cérebro pode fazer, através de um processo ainda desconhecido.
Embora o ser consciente seja dotado, tal como um computador, de um hardware, ou seja, de um mecanismo capaz de processar e armazenar informação (o cérebro), indispensável à sua vida mental, é além do mais sensível à informação produzida, sendo capaz de visualizar mentalmente uma imagem, uma ideia, um significado; é também capaz de percecionar subjetivamente uma sensação física (dor, quente, frio, etc.), tudo no espaço irredutível de uma interioridade, uma espécie de dimensão imaterial constituída exclusivamente de estados mentais, na qual o fenómeno electroquímico só pode existir na sua face mental; qualquer estado mental (ideia, imagem mental, padrão) ao projetar-se no espaço mental encontraria eco numa retaguarda, um limite que não é indiferente à ideia projetada, condição sine qua non da reflexividade. O ser consciente é, pois, reflexivo, porque dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a produz para outrem.
 Ora, esta subtil “retaguarda” consciente que, segundo sugerimos, torna possível a subjetividade, é constituída pelo que designo por núcleo quântico da consciência, que talvez se comporte como uma espécie de “campo de força”, que, tal como qualquer outro campo – p. ex. os campos gravitacional, nuclear forte e fraco, electromagnético ou o campo de Higgs – resulta do intercâmbio de “quanta” ou partículas de energia. Estas partículas, embora ubíquas, embora presentes, tal como supomos, em toda a parte no universo, só poderiam efetivamente influenciar sistemas físicos de grande complexidade, tais como cérebros, ao ponto de, interagindo com eles, fazer emergir a experiência subjetiva nos seres vivos. Como se, em termos quase metafóricos, a consciência existisse como potência no tecido cósmico mais fundamental, aguardando que certos sistemas atingissem suficiente complexidade para com ela interagir e fazer emergir sujeitos conscientes.
Deste modo, sugerimos que consciência não é produzida, nem apenas pelo cérebro físico (pressuposto fisicalista), nem apenas por uma espécie de “alma” dotada de todas as faculdades da consciência, mas antes por uma relação misteriosa, ao nível quântico, entre o cérebro e um determinado campo de força ou quântico, análogo ao de Higgs mas mais subtil, ou então com uma espécie de “partículas-transporte da consciência”, análogas aos fotões ou gravitões, existentes a um nível quântico muito subtil do tecido cósmico. Esta consciência não estaria toda dada já no tecido cósmico, a priori constituída, sendo apenas uma potência aberta, uma possibilidade, tal como o campo de Higgs não é a própria massa já constituída, mas a condição de possibilidade para que a massa exista nos corpos materiais.
Seria - não é demais repetir - como se o tecido mais fundamental do cosmos contivesse um potencial de consciência, que só seria atualizado em condições muito particulares, isto é, a níveis muito elevados de complexidade, ao nível dos que permitem a vida e a emergência de mecanismos biológicos altamente complexos, como o cérebro. Assim, certas possibilidades inscritas a níveis quânticos fundamentais do tecido cósmico iriam sendo atualizadas à medida que o próprio cosmos se fosse complexificando, e encontrando, na sua própria matriz, os germens de novas emergências, no decorrer do processo de evolução e expansão.
Isto conferiria, não o negamos, um caráter teleológico à evolução do universo, como se este evoluísse em direção à concretização de certos objetivos, inscritos a priori, enquanto potências, na trama fundamental do cosmos, numa espécie de evolução por desdobramento de certas potências básicas (entre as quais, a consciência).
Eis, em síntese, a ideia fundamental deste artigo: a consciência enquanto experiência subjetiva é um produto emergente da relação entre o cérebro e o nível quântico das partículas ou campos quânticos (os “conscientões”). Este nível quântico seria mais subtil, i.e., situar-se-ia a um nível mais fundamental que o nível das quatro forças físicas conhecidas, ou seja, gravidade, forças nucleares forte e fraca, e electromagnetismo. Um nível tão fundamental que só um dispositivo biológico suficientemente complexo poderia com ele interagir de modo a produzir uma nova espécie de força – a consciência (tal como, à guisa de analogia, os efeitos da gravidade, a mais fraca de todas as forças conhecidas, só se manifesta significativamente em corpos de grandes dimensões)[14].  
Vejamos: não pretendemos que a consciência ou vida mental subjetiva exista como que de modo independente, fora do sujeito ou dispensando um, a priori já totalmente constituída na sua estrutura fundamental, a esse nível quântico, como uma espécie de “homúnculo” cósmico, do mesmo modo que a massa ou gravidade não estão constituídas a priori, como forças, nas suas partículas ou campos respetivos. Todo o campo de força se manifesta pelo modo como interage com a matéria: a massa emerge da relação entre certas partículas atómicas de maior dimensão, como protões e neutrões, com o campo de Higgs; a gravidade – supõe-se - emerge do intercâmbio de gravitãos entre os átomos da matéria (quanto mais massa ou quantidade de matéria tem um corpo, mais forte é a sua força de atracão gravítica); de modo análogo, também a consciência, isto é, a condição de possibilidade da experiência subjetiva emergiria, supomos, da relação entre a matéria neuronal (p. ex. a nível atómico ou subatómico), de apenas um módulo ou cluster neuronal localizado, ou da totalidade do sistema neuronal, e as tais partículas ou campos quânticos que designamos por “conscientões”.
A questão que se coloca é a seguinte: será implausível que um campo de força ainda desconhecido seja parcialmente responsável pela emergência da consciência enquanto experiência subjetiva? Propomos, precisamente, que a resposta é sim, e que portanto o cérebro será de algum modo afetado por essa força fundamental, tal como qualquer corpo, de modo análogo, é afetado pela gravidade, ou um simples íman é afetado pela força electromagnética, ou o núcleo atómico se mantém unido através da força nuclear forte.
A visão fisicalista convencional defende que a consciência é um produto exclusivo do cérebro, uma emergência que resulta de processos neuro-biológicos misteriosos que, apesar de toda a nossa sofisticação tecnocientífica, continuam a escapar-nos. Daí o filósofo Chalmers se ter referido ao problema da consciência como um “hard problem”.
Não obstante todas as dificuldades, este paradigma da consciência que tudo reduz ao fisiológico mantém-se vigente como uma ortodoxia materialista entre a comunidade de investigadores. O impasse atual na resolução do “hard problem” da consciência talvez exija uma mudança de paradigma que abra a porta a outras possibilidades, por mais estranhas que possam parecer. Não dizemos que um planeta produz a sua própria gravidade, mas antes que a matéria de que é constituído é afetada pelo campo gravitacional, sendo que a face visível dessa influência é, por ex., a queda de um corpo, as órbitas dos planetas, ou a deflexão da luz de uma estrela distante; não dizemos que um corpo produz a sua própria massa, mas antes que as partículas atómicas e subatómicas que o constituem são afetadas por outra força mais fundamental – o campo de Higgs; analogamente, será assim tão implausível que a matéria do cérebro seja afetada por uma força que lhe é exterior, inscrita de algum modo a nível quântico, sendo a face visível dessa influência precisamente a consciência enquanto experiência subjetiva?
 Mas como? Poderíamos supor que os átomos do cérebro intercambiassem entre si estas partículas-transporte, através de um campo de força que abrangesse toda a estrutura neuronal do cérebro, uma espécie de “rede quântica”[15] de tal forma complexa e ao mesmo tempo subtil, abrangente e forte ao ponto de ser capaz de superar a dispersão fragmentária dos fenómenos neurológicos, unindo-os num todo quase indestrutível, uma “unidade de consciência” que poderíamos designar de “proto-sujeito”, por se tratar do substrato quântico de toda a experiência subjetiva, e consequentemente a base da própria subjetividade. Esta “rede quântica”, que designamos por núcleo quântico da consciência, seria o ponto de origem do continuum do “si”, ou seja, o eixo irredutível, uno que concretiza aquela cisão entre consciência e mundo que caracteriza o “despertar” subjetivo do sujeito, condição fundamental de todo o pensar e todo o conhecer. Seria, para usar uma metáfora cinematográfica, como a tela onde toda a ideia, todo o padrão informacional produzido pelo cérebro se projetaria, e seria efetivamente percecionado subjetivamente como mental. A tal tela que permite o estar-desperto (being-aware) que caracteriza a consciência, desperto ao mundo e também para si próprio, sendo capaz de auto-referência, de consciência de si. Sem esta espécie de “embasamento” consciente, toda a perceção se dissiparia num nada, pois não existiria uma “unidade de consciência” que unisse os vários fragmentos de imagens, perceções, representações mentais, numa única perceção dotada de uma “unidade de representação” que a consciência reconheceria como sua por com ela se identificar completamente.
O filósofo alemão I. Kant, na Crítica da Razão Pura, escreveu, muito a propósito, que “…as diversas representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas representações minhas se não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O pensamento de que estas representações dadas na intuição me pertencem todas equivale a dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo menos posso fazê-lo”[16].
Ou seja, não poderíamos, por exemplo, ter perceção visual subjetiva de uma árvore à nossa frente, se a imagem mental produzida pelo nosso cérebro não encontrasse pela frente uma consciência que, precisamente por ser unificada (um “eu penso” para falar como Kant), confere “unidade de consciência” aos diferentes fragmentos de perceção que constituem a imagem mental da árvore: “Se qualquer representação particular fosse completamente alheia às demais, se estivesse como que isolada e separada das outras, nunca se produziria alguma coisa como o conhecimento, que é um todo de representações comparadas e ligadas.”[17]
Com efeito, esta “unidade de consciência” ocorre espontaneamente (isto é, imediatamente, inconscientemente), através daquilo que Kant designa por “unidade originariamente sintética da aperceção”[18], de tal modo que o resultado desta síntese está depois em condições de ser apresentado à consciência como algo unificado: uma imagem mental, uma ideia, um conceito. Dito de outro modo, só há perceção subjetiva, conhecimento, quando aos processos cognitivos que produzem perceções, imagens mentais, padrões, se associa um “espetador”, essa consciência unificada, esse “eu penso” disposto a receber esses produtos, a tomar consciência deles na sua unicidade (que é, basicamente, reflexo da própria unicidade da consciência do “espetador”). Tal como diz Kant, “…a recetividade, só unindo-se à espontaneidade, pode tornar possíveis conhecimentos.”[19]
Só é possível a perceção subjetiva (e, por consequência, o conhecimento), se todos os padrões, ideias, imagens mentais produzidas pelo cérebro se submeterem à consciência unificada, de tal modo que ela própria, isto é, o “eu penso” se possa identificar com essa perceção, encontrar-se nela, não só no seu todo mas em cada uma das suas partes, de tal forma que o sujeito lhe possa chamar de sua (“A minha dor”, “O meu sentimento”; “A minha memória”). O reconhecimento imediato, espontâneo, da unidade de uma perceção por parte do sujeito espetador, é simultaneamente o reconhecimento da unidade do próprio espetador, refletida na unidade da perceção. Uma dor percecionada de forma fragmentada, parcialmente, não é uma dor minha. Tem de haver uma sobreposição total, imediata, entre a consciência unificada do “espetador” e os estados mentais, ou não pode haver experiência subjetiva. Sobreposição que implica contacto, cuja natureza constitui o grande mistério da experiência subjetiva: contacto entre o quê, ou entre o quê e quem, e como? Duas substâncias à la Descartes? Apenas uma? Qual a natureza da consciência unificada, do “espetador” privilegiado?
Com efeito, cremos que existe um facto que concorre a favor do caráter quântico desta “consciência unificada” (o reduto do “espetador”), condição da própria unidade de qualquer espécie de experiência subjetiva (a tal “rede quântica” que propomos). Pois vejamos: a produção cerebral de qualquer padrão ou imagem mental (sensação, perceção visual, etc.) implica a ativação de várias áreas ou “clusters” neuronais separados, em simultâneo, cada um responsável por diferentes funções cognitivas. Isto é, apesar de áreas diferentes, distantes entre si, serem responsáveis pela produção de uma mesma imagem mental, a experiência subjetiva dessa mesma imagem é sempre una, pelo que seria de esperar que fosse possível localizar no cérebro uma espécie de “centro da experiência subjetiva”, onde todos os processos concorrentes na produção de um conteúdo mental convergissem, num ponto bem determinado, para dar origem à experiência subjetiva de uma perceção unificada. Ora, tanto quanto se sabe, esse centro não existe. Como é então possível que uma imagem mental seja percecionada subjetivamente como uma unidade irredutível, se os processos que lhe dão origem ocorrem em pontos separados do cérebro, e não existe um local onde estes possam convergir? É como se, na verdade, não existisse um centro bem localizado para a experiência subjetiva, ou como se este “centro” estivesse em toda a parte e em parte nenhuma do cérebro, isto é, como se fosse não-local. Isto é, se o nosso cérebro for colocado sob um scan, precisamente enquanto ouvimos a 9ª sinfonia de Bethoven, veremos diversos “flashes” em pontos separados do cérebro, uns responsáveis pela audição, outros pelo reconhecimento de padrões, etc., enquanto, ao mesmo tempo, sem qualquer interregno ou lapso temporal significativo, experienciamos subjetivamente, unificadamente, a própria melodia. Ou seja, a imagem mental é como que unificada permanentemente, mas de uma forma não-local, sem centro definido. Como bem se sabe, a não-localidade é um aspeto da realidade quântica que tem sido corroborado uma e outra vez por diversas experiências e observações, que apesar de extremamente contra-intuitivo, parece fazer parte do trama mais fundamental do cosmos, contrariando os fundamentos da visão clássica da física.
Há algo que para nós é uma evidência: a intensidade e vivacidade da experiência subjetiva, seja qual for o seu conteúdo cognitivo, é justificação mais do que suficiente para a crença na realidade deste fenómeno. Poderíamos inclusive falar, neste caso, numa crença fundacional, auto-evidente, talvez a única que exista. De todos os fenómenos do universo, este é talvez aquele do qual temos mais certezas e garantias empíricas, precisamente porque somos dele testemunhas imediatas e privilegiadas. Mais até do que a chuva, o fogo, ou a explosão de supernovas, porque para cada um destes fenómenos há sempre a possibilidade da alucinação, do sonho, do erro de perceção, do erro de cálculo.[20] Não devemos, por isso, negar o carácter cosmológico do fenómeno da consciência, remetendo-o para um mero subproduto biológico, sem mais, procurando ignorar que este também deve caber numa “teoria de tudo”, por ser precisamente o mais vívido dos fenómenos que podemos experienciar, e inclusive a nossa condição de possibilidade para experienciar seja o que for.
A perceção subjetiva imediata, mesmo do fogo ou da chuva sonhada, é uma realidade inegável, porque a sua negação implicaria a negação de toda e qualquer experiência subjetiva, mesmo da experiência do próprio pensamento sobre a possibilidade da negação. Repare-se: mesmo que negássemos um “eu penso”, uma identidade como algo de auto-evidente, não poderíamos negar a experiência subjetiva enquanto tal, porque se, como Kant admite, podemos de algum modo “deduzir” a unidade do “eu penso” da unidade de uma dada perceção (que é, no fundo, uma racionalização a posteriori a partir do imediato de uma perceção subjetiva), a partir de um esforço racional para compreender a origem e razão de ser dessa unidade, não podemos fazer o inverso, isto é, deduzir da unidade abstrata do “eu penso” a própria perceção subjetiva. Uma experiência não pode ser inferida a partir de um conteúdo cognitivo, de premissas num raciocínio, porque experiência subjetiva e conteúdo cognitivo têm naturezas (qualidades) distintas. Uma experiência simplesmente é, ou seja, vale qualitativamente pelo que é. A razão é que, quanto à experiência subjetiva, estamos a falar, não de um objeto, não de um conteúdo cognitivo, mas de uma experiência qualitativa básica que vale por si própria, pela experiência que suscita, isto é, não pode de modo algum ser inferida a partir de um raciocínio, de um conteúdo cognitivo: ou se experiencia ou não se experiencia. Calculo mentalmente 20 x 20, e concluo que é igual a 400. Embora a evidência deste resultado seja um produto lógico, a experiência subjetiva que dele tenho, enquanto imagem mental, não o é, mas constitui ainda assim a condição básica da própria experiência da evidência lógica, o seu substrato. A sua qualidade, enquanto experiência subjetiva, situa-se a um nível diferente que o da quantidade, isto é, do que o próprio conteúdo cognitivo do pensamento, tal como o número de passos que dou enquanto ando, a intenção ou a rapidez com que o faço, é qualitativamente diferente do chão que serve de base ao meu andar, independentemente de como o faço, ou com que objetivo. Todavia, sem o chão não haveria andar. O mesmo, diríamos nós, se passa com o “embasamento” (o tal “espetador”) que torna possível a qualidade de uma experiência subjetiva, independentemente do seu conteúdo.
Descartes, depois de colocar tudo em dúvida (sentidos, razão, mundo) concluiu que só uma coisa era indubitável – o facto de pensar, e de o fazer enquanto sujeito que pensa (“Cogito ergo sum”). De facto, negar que se pensa é negar a própria possibilidade de se pensar a negação do pensamento, porque ao se pensar a negação já se está a pensar. Mas, mesmo que fossemos mais fundo e admitíssemos que, na verdade, não pensamos de todo (porque, suponhamos, há a possibilidade de um “génio maligno” nos fazer acreditar que pensamos por nós próprios quando estamos simplesmente a ser manipulados), é absolutamente inegável que, em qualquer momento do pensamento, possuímos experiência subjetiva de qualquer coisa, de um modo imediato, pessoal e intransmissível.
Isto é: podemos ser em tudo enganados, manipulados, como no exemplo do génio maligno; pode haver algo ou alguém que se substitua a nós em todos os nossos processos de pensamento, perceção, etc. Mas ninguém nos pode substituir na experiência subjetiva. Essa é só nossa. Ninguém pode, neste sentido, substituir o espetador que se encontra no reduto fundamental da nossa consciência. Dito de outra forma, as funções neurológicas podem ser simuladas (p. ex., num computador), mas a experiência subjetiva, enquanto tal, não pode jamais ser simulada. Ou existe ou não existe porque, enquanto tal, só pode existir para o sujeito que a experimenta.
Esta irredutibilidade é que nos deve levar de facto a pensar se a consciência não deve ser tratada, cada vez mais, como expressão de uma realidade mais básica e fundamental, situada ao nível quântico, ao invés de uma mera emergência de segundo ou terceiro grau de processos bio-fisiológicos, na prática reproduzível artificialmente a longo prazo, desde que se possua a “maquinaria” certa.
Sem este “embasamento consciente” que emerge do núcleo quântico da consciência, também a capacidade de deliberar e decidir, ou seja, o exercício efetivo de uma vontade, fica comprometido, porque toda a deliberação implica abstração, reflexão, exercício livre de um pensamento que livremente analisa, isto é, fragmenta, escrutina, e também sintetiza, tudo fenómenos conscientes que só podem ocorrer se, algures no reduto mais fundamental da mente, existir um observador. Ora, este observador é antes de mais, como já vimos, um espetador, porque na realidade a sua função não é nem pensar, nem deliberar, nem decidir.
Como já dissemos, a partícula-campo do “conscientão”, esse tal reduto quântico fundamental do cosmos (o “bosão da consciência”) não pensa, não delibera, não decide, não tem vontade, em suma, não é ativo (pelo menos em si próprio). Não é um sujeito a priori inscrito na trama mais básica do universo, mas apenas uma força, uma espécie de energia muito subtil que, por alguma razão, é capaz de se relacionar com o cérebro vivo de modo a fazer emergir a consciência. A sua função, repetimos, é a de fazer emergir o espetador, tornando, ao mesmo tempo, viável e útil o próprio cérebro enquanto máquina de processamento de informação, reconhecimento de padrões, pensamento, emoção, vontade.
Esta força quântica, se assim lhe quisermos chamar, ao fazer emergir a experiência subjetiva, confere, de facto, autonomia ao cérebro, porque se não existisse ninguém a “observar” o que acontece no espaço mental imaterial, se não existisse esta fugidia figura do espetador privilegiado, origem e fundamento do qualia, as múltiplas possibilidades e funções de que dispõe a complexa máquina cerebral não poderiam cumprir-se em toda a sua extensão. Tal como acontece num supercomputador, por mais sofisticado que seja. Enquanto a inteligência artificial não for capaz de simular este “embasamento”, e de o integrar num hardware, jamais um computador será um sujeito. Dito de outro modo, enquanto a inteligência artificial não for capaz de criar um hardware suficientemente complexo para interagir com este campo quântico fundamental, caracterizado por partículas ou “quantuns” de energia, mais subtil que a própria gravidade, dificilmente será possível produzir robôs com vida mental.
Mesmo que tenhamos dúvidas quanto à sua natureza, não podemos ter dúvidas de que é absolutamente necessário que exista um espetador, porque sem ele nenhuma perceção é possível, e sem perceção nada daquilo que é típico de um sujeito é possível: nem conhecimento, nem pensamento, nem vontade. Sem um espetador, isto é, sem um “consumidor final” recetivo aos produtos do cérebro (imagens mentais, representações, padrões, sensações, emoções, etc.), a hipercomplexidade do sistema neurológico não faz qualquer sentido. Porque esta hipercomplexidade não é um fim em si própria, mas está ao serviço de uma subjetividade.  
Processamento de informação sem espetador seria como um computador pessoal a funcionar numa sala vazia, sem ninguém por perto para interpretar a informação projetada no ecrã.
Podemos, naturalmente, de acordo com a visão fisicalista tradicional, supor que este espetador é também ele um produto do cérebro, mais uma função que se desenvolve paralelamente a todas as outras funções neurológicas. A questão-chave está em saber se efetivamente o cérebro, não obstante toda a sua complexidade, suporta sozinho a produção, simultaneamente, da função do espetador – i.e., da subjetividade que permite a experiência subjetiva – e de todas as outras funções mentais, cognitivas, emocionais, etc., através das quais ele traduz o mundo em conhecimento. Uma outra questão-chave está em saber - caso isso não seja assim mas antes do modo como propomos - o que torna o cérebro particularmente sensível ao tal nível quântico fundamental onde se situa o hipotético “bosão da consciência”, essa espécie de partícula-campo situada a um nível quântico bastante profundo.
Voltamos a insistir neste ponto: este “espetador” não é um ego, não se confunde com o meu eu, a minha identidade, a minha “alma”. Ele é a condição de possibilidade, aberta pela relação entre o cérebro e o campo quântico muito subtil das partículas ou “quantuns” da consciência (os “conscientões”), de todo o funcionamento autónomo normal do cérebro, o ingrediente sem o qual este não cumpre a sua real função, função esta que é a razão de ser de toda a sua maquinaria biológica, que é a de fazer emergir uma nova dimensão de realidade que não encontra paralelo em nenhuma outra parte do mundo físico – a vida mental ou experiência subjetiva.
À luz desta proposta, podemos especular que o cérebro, com toda a sua maquinaria, todo o seu hardware biológico, com todas as suas funções cognitivas, percetivas, de processamento e armazenamento de informação, tem como principal função a de “traduzir” o mundo, isto é, transformar aquilo que lhe chega, os sense data, os inputs, em informação passível de ser interpretada e utilizada por uma subjetividade, que não terá necessariamente a mesma origem bio-fisiológica que as restantes funções cerebrais.
Talvez a emergência da consciência enquanto experiência subjetiva seja a expressão de um modo de o universo se conhecer a si próprio, ou melhor, de “regular” a sua própria evolução no sentido de uma maior complexidade, como se procurasse ver-se “desde de dentro”, experimentar-se a partir de diversos pontos de vida constituídos a partir de diversas singularidades subjetivas. Se pensarmos que a consciência é um fenómeno real, incontornável, e que cada um dos seres vivos sencientes e conscientes é, também, universo ou parte dele, então talvez esta ideia não pareça assim tão descabida ou despropositada. Acaso será provável que um universo tão complexo, do qual conhecemos pouco mais de 4%, não tenha sido capaz de criar as condições para se conhecer ou “regular” a si próprio através de múltiplas formas de vida e consciência? Não implicaria isto já, de algum modo, um potencial de consciência inscrito na trama mais básica do cosmos, à espera de se atualizar a partir de um determinado nível de complexidade da matéria, sendo a biológica, sem sombra de dúvida, de todas a forma de matéria mais complexa que se conhece?

                       
Bibliografia

KANT, Immanuel (1997), Crítica da Razão Pura, trad. de Manuela Santos e Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Webgrafia
LEWIS, Tania (2014, 5 de junho), “Ambitious Brain-Mapping Project's Science Goals Revealed”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/46143-brain-initiative-unveils roadmap.html?cmpid=514627_20140607_25507726.    

Lewis, Tânia (2013, 31 de maio), “Will We Ever Understand Consciousness? Scientists & Philosophers Debate”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/37056-scientists-and-philosophers-debate-consciousness.html.


THAN, Ker (2005, 8 de agosto), “Why Great Minds Can't Grasp Consciousness”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/366-great-minds-grasp-consciousness.html.








[1] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[2] Sigla para Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies. Ver Lewis, Tania (2014, 5 de junho).
[3] O filósofo britânico Colin McGinn é um exemplo dos que defende a insolubilidade do problema da consciência, por uma questão de incapacidade da consciência em compreender-se a si própria. Neurocientistas como Christof Koch, por outro lado, defendem que o problema é solúvel no quadro do experimentalismo neurocientífico, pelo que a sua visão se mantém num registo fisicalista convencional (Ver artigo da Live Science sobre o debate acerca da natureza da consciência que decorreu durante o “World Science Festival” em 2013, que reuniu os painelistas Colin McGinn, Christof Koch, Nicholas Shiff e outros [Lewis, Tânia, 2013, 31 de maio]).
[4] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[5] Ver Ibidem.
[6] A propósito das forças e correspondentes partículas-transporte, ver Greene (2004: 254-256) e CERN, “The Standard Model” (2014).
[7] O princípio de incerteza tem que ver com o carácter indeterminado e probabilístico da mecânica quântica. Cada partícula-onda pode ser descrita segundo uma “função de onda”, que mais não é senão um campo de probabilidades acerca da sua posição num dado momento. Não é possível saber com absoluta exatidão a posição em que certa partícula vai estar num dado momento partindo de certas variáveis como a sua posição anterior, o momento angular ou a velocidade, porque uma vez medida uma dessas variáveis, as outras tornam-se impossíveis de medir. Não é possível saber exatamente para onde uma partícula se dirige, nem que caminho seguiu para passar de A a B (ver Gribbin, 1986:198). Ademais, “(…) Podem medir com precisão a quantidade de movimento de um electrão, mas então a sua posição é indeterminada. O simples acto de atribuir uma localização específica a um electrão introduz uma perturbação incontrolável e indeterminada no seu movimento, e vice-versa. Além disso, esta restrição incontornável ao nosso conhecimento do movimento e localização do electrão nãoé simplesmente o resultado de uma deficiência experimental: é inerente à própria natureza.” (Davies e Brown, 1991:18).
[8] Este conceito foi inventado por Faraday para designar um aspeto da constituição dos campos magnéticos e electromagnéticos, mas foi posteriormente alargado a todos os tipos de campo (ver Gribbin, 1986: 210-211).
[9] Introduzir aqui explicação acerca função de onda
[10] Ver Greene, 2004:256-257
[11] “If a particle moves smoothly trough the Higgs ocean with little or no interaction, there will be little or no drag and the particle will have little or no mass. The photon is a good example (…). If, to the contrary, a particle interacts significantly with the Higgs ocean, it will have a higher mass.” (Id.:263).

[13] Para ilustrar este ponto, Greene sugere o seguinte ao leitor: “Take your arm and swing it back and forth. You can feel your muscles at work driving the mass of your arm left and right and back again. If you take hold of a bowling ball, your muscles will have to work harder, since the greater the mass to be moved the greater the force they must exert.” (Id.:260-261)
[14] Usar ex. do papel electrificado livro Física Quântica e cosmologia
[15] A imagem que melhor pode ilustrar esta rede quântica será a de um campo de força, análogo ao campo electromagnético que possibilita a propagação da luz, ou ao campo gravitacional que envolve a Terra, ou de um campo magnético que une dois ímans. Neste caso, não sendo o cérebro o produtor deste “campo de consciência” – do mesmo modo que não é a Terra a produtora do seu campo gravitacional (embora produza um campo electromagnético) -, podemos especular que o cérebro, pela sua configuração e estrutura bio-fisiológica singular, seria capaz de interagir com este campo de força a um nível quântico básico. Propunhamos, muito audaciosamente, que o tecido fundamental do espaço-tempo onde nos movemos é, ele próprio, a téla onde permanentemente o cérebro projeta todas as suas imagens mentais, de tal modo que quem vê não somos de facto nós, mas o próprio universo na sua forma singular de se ver a si próprio desde dentro.
[16] KANT, B133-B134, 1997, pp. 132-133
[17] Ibidem, p. 133
[18] Ver Idem, §16-17, pp. 131-138
[19] Idem, B134, p. 133
[20] Em boa verdade, nem relativamente à experiência subjetiva de outrem podemos estar absolutamente certos, não tanto como em relação à nossa própria. Esta constatação está na base do famoso problema cético das outras mentes, que naturalmente não pretendemos tratar aqui. Admitamos, como hipótese de trabalho, que a experiência subjetiva é um fenómeno que existe para além da minha própria mente, para não cairmos no solipsimo. Seja como for, ainda que qualquer um de nós, eu próprio ou o leitor, fossemos os únicos a possuir vida mental, ainda assim seria pertinente tentar explicar a sua origem, dada a radicalidade e incontornabilidade deste fenómeno.