Os valores não
são entidades metafísicas independentes do sujeito valorativo e da esfera
cultural. Não existem em nenhum plano metafísico, num mundo de idealidades ou
formas puras. É no contexto de uma cultura, primeiro como significados, depois
como símbolos, que os valores encontram o seu “ser” e substância. O mundo dos
valores é a esfera onde residem, sincrónica e diacronicamente, todos os aspetos
imateriais, simbólicos e semânticos de uma cultura; é nesta dimensão, coexistente
à dimensão física espacio-temporal, que os sujeitos se movem e constroem as
suas identidades socioculturais, logo morais. É nesta dimensão que os valores
nascem, emergem e adquirem progressivamente densidade ontológica, como se
construídos pela lenta sedimentação de camadas significantes. É nesta dimensão
que os valores se tornam urgentes, incontornáveis, comunicáveis e até
universais, e também a partir dela que aqueles influem na ação dos homens,
logo, na história. A substância de um valor sedimenta-se lentamente, passo a
passo, à medida que uma dada cultura, no seu fluxo auto-reprodutivo, vai
oferecendo fundamento e significado a esse mesmo valor. Temos vários exemplos
como o valor da dignidade humana, da liberdade ou qualquer outro, que têm a sua
história própria e ainda se nos apresentam como inacabados, limitados,
abstratos à sua maneira, carecendo de um trabalho semântico contínuo, de
manutenção, de conceptualização permanente. Porque os valores são substâncias
culturais, simbólicas e semânticas, não significa que se oponham à natureza
humana, ou que lhe sejam completamente alheios, se entendermos que esta se
manifesta, também, na e pela cultura. Tal como dissemos, a esfera axiológica
coexiste a esfera física espacio-temporal, não se lhe opõem porque a segunda
serve de substrato à primeira. No homem, a dimensão fisiológica serve de
substrato à esfera axiológica, e é também legítimo pensar que a natureza ou
condição humana, não sendo meramente fisiológica, se desdobra e exprime
plenamente exclusivamente e necessariamente através da cultura, que mais não é
do que uma atribuição humana de significados, uma reapropriação humana da
natureza e do mundo que diz mais acerca do homem do que acerca desse mesmo
mundo; se entendermos que a cultura não se resume apenas a uma forma de
dominação do “animal humano”, mas ao modo pelo qual o humano plenamente
se realiza, numa dialética sempre inacabada entre biologia e cultura.
Há por isso valores que emergem na
aurora de uma dada cultura, para os quais há necessidade de encontrar todo um
fundamento, um significado, um sentido, precisamente porque tais valores
aparecem como urgentes à emancipação da condição humana (em resposta, por
exemplo, a certos tipos de opressão). A opressão, nas suas várias formas, é
sempre parasitária, tende a contaminar a substância dos valores, a inoculá-los com
as suas ambiguidades, como um vírus, mantendo-lhes todavia a sua aparência
benigna, emancipadora e virtuosa, transformando-os em cavalos de Tróia da
opressão. Basta ver como o valores da verdade, da ordem, da honra, da bondade,
da justiça, e até da liberdade, foram e são ainda frequentemente
instrumentalizados pelos totalitarismos de toda a espécie, com rosto ou sem
rosto, políticos, económicos ou financeiros. Quanto mais abstratos os valores,
mais corrompíveis. Para evitar a corrupção dos valores, para lhes fazer a
manutenção que merecem, não há outra via que não seja a cultura, que é feita de
produção de significados novos, de interpretação de significados antigos, de
criação e tradução, de exemplos bons, de práticas concretas de bem-agir que são
sempre a forma mais eficaz de conferir substância vital aos valores, de os
encarnar, dando-lhes uma face mais concreta, definida e permanente.
Os piores vícios da natureza humana
exprimem-se também por via da cultura, e contribuem desse modo para a corrupção
dos valores, seja produzindo novos, seja parasitando os antigos de face
virtuosa. Há valores que se bastam a si próprios e a maioria das culturas
consagraram como virtuosos, como o altruísmo, a lealdade ou a abnegação. Outros,
como o egoísmo, só podem ser defendidos como virtuosos à luz de um
utilitarismo: são-no na medida em que produzem um bem maior; são-no na medida
em que abrem portas, segundo se diz, à concretização de valores virtuosos.
Entendemos como viciosos ou
“negativos” todos os valores que favorecem de algum modo a opressão, e como
virtuosos ou “positivos” todos o que favorecem emancipação do homem. É óbvio
que o entendimento do que é “opressão” e “emancipação” humana é em si mesmo
discutível, remetendo-nos para as profundidades da ética e da antropologia. Emancipação
e opressão serão, em si mesmos, valores, igualmente passíveis de corrupção e
carentes de manutenção permanente, através da cultura. Isto, todavia, não deve
fazer-nos cair num relativismo sem solução, porque acreditamos que existem
aspetos da condição humana que são, em princípio, universais, mas cujos
contornos talvez ainda não sejam totalmente claros para nós. Estes talvez se
exprimam e condensem em valores, positivos e negativos, revelando tendências
mais consistentes que atravessam a história das civilizações e culturas
humanas, que não se dissipam facilmente e tendem a emergir e reemergir logo que
se tornam urgentes num dado período histórico. Estes podem surgir, na mesma
cultura em diferentes períodos históricos, ou em culturas distintas, com faces
e histórias diferentes, e certamente com distintos conteúdos experienciais. Os
valores não são estáticos nem estão dados. O que resiste deles é a sua face
virtuosa ou viciosa, que num dado período histórico emerge como urgente,
apontando caminhos e respondendo a determinadas aspirações humanas que vão
sempre no sentido da mudança, da emancipação, da liberdade, e não em sentido
inverso. No início da uma nova era civilizacional - como no renascimento
europeu, no pós-revolução francesa ou no pós-segunda guerra mundial - os
indivíduos viram-se sempre confrontados com a necessidade de dar corpo às
aspirações de emancipação mais profundas dos povos, de definir, assim sendo, a
natureza do bem e o mal, fosse produzindo novos valores, fosse abrindo um
processo de re-significação, limpeza e depuração de valores antigos cujo
significado foi contaminado ou parasitado por forças perversas, mas cuja
urgência para a civilização futura justificava esse esforço de reabilitação.
De certo modo, o que aqui dizemos é
que os valores mais persistentes, enquanto “substâncias culturais”
(chamemos-lhes assim), revelam importantes tendências da condição humana, boas
ou más, virtuosas ou viciosas. São produto do enfrentamento, confrontamento,
interpenetração da natureza humana – entendida aqui estritamente como produto
da evolução biológica, estruturas genéticas definidoras e definitórias – com as
condicionantes impostas e possibilidades abertas pelo mergulho num dado período
histórico, espaço simultaneamente físico, espacio-temporal, simbólico e
semântico. Espaço material e imaterial no qual a natureza humana se debate, joga
e luta para encontrar um lugar, que na verdade não se “encontra” como se
estivesse dado, mas se constrói; debate, jogo e luta que resulta em criação, em
produção de cultura, em enriquecimento do património simbólico e semântico. Jogo
sempre inacabado, verdadeiramente trágico, que consiste precisamente na nossa
condição – a condição humana.
Em suma, os valores são objetivos
(logo, objetos), mas não são nem
essências nem formas puras no sentido clássico. São significados passíveis de
despoletar experiências significantes (encarnar valores como a bondade,
lealdade, altruísmo traduz-se em ações concretas, mas também em satisfação e
até em prazer estético visto que é visto como “belo” agir bem e heroicamente
por um valor elevado a ideal…), e de serem comunicados através de símbolos, ou
seja, de linguagem. Eles adquirem consistência ontológica à medida que o homem
se esforça por construir o seu “ethos” próprio, a sua morada. Para este efeito,
ele só pode fazê-lo através da cultura, que por sua vez exige memória, anamnese
coletiva, capacidade para ir às raízes, interpretar e reformular criativamente
as heranças da tradição. A cultura e, por inerência, os valores, não podem ser
vistos como objetos estáticos que a crista da tradição conduz na sua onda,
linearmente, do passado para o futuro, sem mais, sem retrocessos nem
necessidade de memória, que as gerações do passado transmitem, intocadas e intocáveis, às
gerações futuras. Quando se entende que as novas gerações não têm nada a
acrescentar à substância dos valores, e que esta se encontra bem definida por
autoridades a isso consagradas, detentoras derradeiras do seu significado e da
sua verdade, é como se se procurasse conter o fluxo incessante e auto-reprodutivo
da cultura, que a cada geração tem necessidade de se renovar, de se enriquecer
de símbolos e experiências. Tal como um fluxo de um grande rio não pode ser
travado, o fluxo da cultura também não. Querer atribuir definitivamente um
significado unívoco, universal, extra-histórico a um dado valor ou conjunto de
valores, é arrancá-los daquilo que lhes confere concretude e vitalidade
histórica. É torná-los progressivamente desconhecidos e estranhos aos olhos e
corações dos homens concretos e suas aspirações. É torná-los progressivamente
instrumentos daquela opressão de que falamos já, que oculta por detrás da face
virtuosa de valores como a liberdade, a justiça, o amor ou a verdade, uma
agenda de dominação que os transforma, por fim, em pálidas sombras das melhores
virtudes e mais altas aspirações humanas.
A cultura, tal como o nome indica,
implica o cultivar incessante de significados, e portanto de virtudes e valores
que uma dada civilização elege como estruturantes à sua própria existência e
perenidade. Cada geração tem o direito e o dever de redefinir a sua existência
histórica à luz das heranças que a cultura lhe outorgou, seja através da arte,
da literatura, da ciência, da filosofia, dos saberes teóricos ou
práticos. É talvez este o papel das chamadas humanidades, que na verdade deveriam congregar todos os saberes,
práticas, artes e ciências que são fruto da atividade humana e contribuem para
enriquecer a esfera semântica e simbólica da nossa cultura. Mas não: hoje as
humanidades são sinónimo de “letras”, ou seja, literatura, línguas, e todas
aquelas disciplinas que o cientismo da nossa época decidiu menorizar por falta
de “exatidão” e “culto excessivo da subjetividade”. Hoje, uma vez mais, urge
fazer um trabalho de re-significação que devolva às humanidades o seu crédito,
à luz de um ideal de unidade da cultura. E isso é possível, porque, até ver,
nenhuma autoridade ou cátedra tem o monopólio exclusivo de tais significados,
como não tem de nenhuns.