É como se em mim convivessem dois "eus". Um "eu" criando,
abrindo caminho, iluminando o mundo para que nele o outro "eu" viva.
O primeiro - o meu "eu" mais profundo e sólido, a fonte da minha
consciência - cria, ilumina, abre perante mim o mundo, no qual o segundo - o
meu "eu" mais imediato e mutável, a minha vontade livre, o meu ego
pessoal e identitário - vive, age, se movimenta, existe. O primeiro
"eu" a-presenta-me o mundo, mostra-me o caminho; o segundo
"eu" a-presenta-se ao mundo, percorre o caminho. Um inconsciente,
subterrâneo; outro consciente, superficial. Os dois são eu.
O "primeiro
eu" aparece primeiro, "a priori", antes que o ego tome
consciência de si próprio, antes da emergência de qualquer forma de identidade,
personalidade, símbolo, conceito ou significado - logo, é inclusive anterior ao
próprio mundo, na sua forma existencial, pois ainda não emergiu o exist(ente).
Nesse primeiro e fugaz momento que precede o ego, a consciência é apenas luz,
pura presença, onde não há forma ou individuação. E, no princípio, o ego que
emerge, ainda embrionário, não faz mais do que "pairar sobre a superfície
das águas", ainda incapaz de distinguir na homogeneidade branca da luz da
consciência qualquer espécie de forma ou individuação. Ainda não há mundo, pois
não se consumou ainda a cisão entre sujeito e objeto; ainda não se
"separou a luz das trevas", nem se rasgou o "firmamento entre as
águas para as manter separadas umas das outras").
Cedo passamos a
existir na esfera existencial das coisas individuadas (formas, objetos,
conceitos, ideias), cujo centro absoluto é o nosso ego (mais uma forma),
esquecendo rapidamente da luz que o precede, que ilumina os objetos, que lhes
dá ser (como rapidamente nos esquecemos do ar que respiramos). Somos por vezes
levados a acreditar, como idólatras, que essas formas e objetos é que são
"reais", que o mundo que existimos enquanto indivíduos é tudo o que existe,
subsistindo por si próprio.(sim, é mesmo "mundo que existimos", e não
"em que existimos", pois é o existente que existe o mundo, no sentido
em que o mundo "é existido" pelo existente, i.e., é uma projeção,
extensão ou exsudação de si próprio).
Mas esquecemo-nos
rapidamente que sem consciência não há mundo; ou seja, que é através da
experiência subjetiva - cuja qualidade é ideal ou mental (como quem diz,
imaterial) -, que a concretude material do mundo chega a nós, ou toma forma no
nosso espírito. Dito de outra forma: a primeira, mais imediata, evidente e
"real" de todas as realidades é a consciência. Todas as outras
realidades que constituem a esfera do nosso mundo, da nossa realidade
existencial, devem a sua luz à luz da consciência, em maior ou menor grau. São,
a bem dizer, realidades mediatas, em segunda-mão, pois só a consciência é
"prima facie". E o que é realmente intrigante é que a fonte dessa luz
está radicada bem no interior de nós, sendo talvez o aspecto mais importante e
que melhor define a nossa natureza, a natureza de todos os seres sencientes, e
a própria vida enquanto fenómeno.
E saber olhar,
meditar sobre o que se está a ver (sejam objetos ou ideias), não é mais do que
captar o seu caráter fundamental de "pura presença", que é sobretudo
a consciência atravessando a forma, reconhecendo-se a si própria nela, e por
isso dissolvendo temporariamente a distinção entre sujeito e objeto,
restaurando a visão plena da consciência de si para si.
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