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sexta-feira, agosto 28, 2015

Dois "eus"


É como se em mim convivessem dois "eus". Um "eu" criando, abrindo caminho, iluminando o mundo para que nele o outro "eu" viva. O primeiro - o meu "eu" mais profundo e sólido, a fonte da minha consciência - cria, ilumina, abre perante mim o mundo, no qual o segundo - o meu "eu" mais imediato e mutável, a minha vontade livre, o meu ego pessoal e identitário - vive, age, se movimenta, existe. O primeiro "eu" a-presenta-me o mundo, mostra-me o caminho; o segundo "eu" a-presenta-se ao mundo, percorre o caminho. Um inconsciente, subterrâneo; outro consciente, superficial. Os dois são eu.

O "primeiro eu" aparece primeiro, "a priori", antes que o ego tome consciência de si próprio, antes da emergência de qualquer forma de identidade, personalidade, símbolo, conceito ou significado - logo, é inclusive anterior ao próprio mundo, na sua forma existencial, pois ainda não emergiu o exist(ente). Nesse primeiro e fugaz momento que precede o ego, a consciência é apenas luz, pura presença, onde não há forma ou individuação. E, no princípio, o ego que emerge, ainda embrionário, não faz mais do que "pairar sobre a superfície das águas", ainda incapaz de distinguir na homogeneidade branca da luz da consciência qualquer espécie de forma ou individuação. Ainda não há mundo, pois não se consumou ainda a cisão entre sujeito e objeto; ainda não se "separou a luz das trevas", nem se rasgou o "firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras").

Cedo passamos a existir na esfera existencial das coisas individuadas (formas, objetos, conceitos, ideias), cujo centro absoluto é o nosso ego (mais uma forma), esquecendo rapidamente da luz que o precede, que ilumina os objetos, que lhes dá ser (como rapidamente nos esquecemos do ar que respiramos). Somos por vezes levados a acreditar, como idólatras, que essas formas e objetos é que são "reais", que o mundo que existimos enquanto indivíduos é tudo o que existe, subsistindo por si próprio.(sim, é mesmo "mundo que existimos", e não "em que existimos", pois é o existente que existe o mundo, no sentido em que o mundo "é existido" pelo existente, i.e., é uma projeção, extensão ou exsudação de si próprio).

Mas esquecemo-nos rapidamente que sem consciência não há mundo; ou seja, que é através da experiência subjetiva - cuja qualidade é ideal ou mental (como quem diz, imaterial) -, que a concretude material do mundo chega a nós, ou toma forma no nosso espírito. Dito de outra forma: a primeira, mais imediata, evidente e "real" de todas as realidades é a consciência. Todas as outras realidades que constituem a esfera do nosso mundo, da nossa realidade existencial, devem a sua luz à luz da consciência, em maior ou menor grau. São, a bem dizer, realidades mediatas, em segunda-mão, pois só a consciência é "prima facie". E o que é realmente intrigante é que a fonte dessa luz está radicada bem no interior de nós, sendo talvez o aspecto mais importante e que melhor define a nossa natureza, a natureza de todos os seres sencientes, e a própria vida enquanto fenómeno.


E saber olhar, meditar sobre o que se está a ver (sejam objetos ou ideias), não é mais do que captar o seu caráter fundamental de "pura presença", que é sobretudo a consciência atravessando a forma, reconhecendo-se a si própria nela, e por isso dissolvendo temporariamente a distinção entre sujeito e objeto, restaurando a visão plena da consciência de si para si.

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