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domingo, setembro 23, 2012

Neurobiologia e ética - o totalitarismo do "empiricamente objetivável"





A propósito do artigo intitulado As raízes neurobiológicas da justiça, publicado num blog relacionado com as neurociências (http://jus.com.br/revista/texto/22670/as-raizes-neurobiologicas-da-justica#ixzz27Ivt75n8), achei por bem tecer algumas considerações que me parecem pertinentes no sentido de introduzir alguma prudência na tentativa "empírica" de justificar a condição ética do ser humano. 


"Já há indícios de alguma disposição para estabelecer um debate entre as ciências que se ocupam do cérebro e da conduta e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, no sentido de admitir que a partir da aceitação dos melhores dados disponíveis acerca de como são os seres humanos será possível reconstruir, sobre bases empiricamente mais sólidas e seguras, os fundamentos do direito, da justiça e da moral." Portanto, estes senhores propõem que se assentem as bases do direito, segundo compreendi, em "bases empiricamente mais sólidas e seguras" de "como são os seres humanos".

Aquilo que eu pergunto é o seguinte: o que significa neste contexto o "ser", a "natureza" humana que se pretende empiricamente desvendar? Pois, eu também defendo que, no limite, a posse do conhecimento acerca da "natureza" humana nos daria uma base segura para respondermos à questão de "como devemos viver". Não sou porém tão otimista como estes senhores ao defender que tal natureza seja objetivável por via da investigação empírica, científica, biológica. O ser humano - é triste que tenha de lembrar sobretudo aqueles que defendem uma perspetiva evolucionista - é o animal menos determinado em termos biológicos. A genética, ainda que tenha um papel estruturador básico, não determina definitivamente aspetos tão simples como a língua que falamos, as nossas crenças, o nosso agir perante a contingência do mundo. Mais: precisamente essa indeterminação permitiu-nos enfrentar e superar a contingência, ao oferecer-nos instrumentos de resposta adaptativa perante a imprevisibilidade e a mutabilidade do mundo, sempre prenhe de desafios à sobrevivência. Assim - e já Piaget o tinha afirmado e muito bem - as nossas estruturas cognitivas e morais desenvolvem-se numa relação irredutível a qualquer uma das partes: meio ambiente (mundo), genética e ação do indivíduo no mundo.

A que chamam os neurobiólogos, portanto, de "natureza humana"? Essa mesma que pode e deve ser "empiricamente objetivável"? À genética "a priori", chamemos assim, ou às estruturas cerebrais de um adulto formado? Vejamos o que diz o artigo:

"Ernst Fehr e seus colaboradores (2002) estudaram esta questão explorando os cérebros de sujeitos mediante a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) enquanto estes decidiam se castigar a uma pessoa que havia abusado previamente de sua confiança violando uma norma justa. O estudo demonstrou que a parte do cérebro crucial no circuito da recompensa ou gratificação se ativa enquanto os sujeitos estão decidindo se castigar ou não. Pesquisadores anteriores demonstraram que esta mesma área se ativa quando, por exemplo, os sujeitos recebem dinheiro, vêem caras formosas, consomem cocaína ou no caso de indivíduos enamorados ao ver imagens de seus amados ou amadas."

Partindo da tomografia de um cérebro adulto - com as estruturas já formadas ou na fase mais avançada da sua formação - os cientistas concluíram - vejam bem! - que a resposta cerebral ao ato de condenar ou castigar alguém por ter violado uma regra comunitária considerada por todos como "justa" é uma resposta de satisfação ou reforço positivo, semelhante ao que se passa quando consumimos uma droga, ou quando estamos com a pessoa que amamos ou - acrescento eu - quando nos congratulam por algo que fizemos corretamente. O que diz isto acerca da justiça ou dos seus princípios? Em primeiro lugar, trata-se de um adulto já formado e, portanto, não compreendo porque parecem menosprezar ou esquecer todo o processo de socialização e de estruturação construtivista que já se deu ao longo do processo de desenvolvimento. Por outro lado, se o mesmo se passa quando comemos chocolate ou consumimos uma droga, então tal significa que a nossa "natureza" já possui em si as estruturas a priori para apreciarmos "aquele" chocolate em particular ou para nos sentirmos bem com "aquela" pessoa por quem nos apaixonamos? O reforço positivo e a satisfação manifestados numa área do cérebro podem explicar, em parte, o porquê de nos sentirmos bem por termos cumprido uma regra justa. Mas não diz "que" regra justa, ou sequer quão abrangente e pertinente é essa "regra" justa que cumprimos tão satisfatoriamente. Ou seja, dito de outra forma, podemos ficar satisfeitos por termos cumprido uma regra que consideramos justa do mesmo modo que um cão se sente satisfeito por obedecer à ordem do dono, ou do mesmo modo que um oficial de Hitler se sentia satisfeito em enviar judeus para os campos de concentração.

Como bem sublinha Nagel, no máximo a explicação neurológica pode ensaiar uma explicação causal para a justiça, mas nunca oferecer razões a favor ou contra uma determinado regra ou princípio de justiça. As explicações naturalistas não podem servir de fundamento último, empiricamente indiscutível e axiomático, fim de toda a reflexão ética. O facto de possuirmos a capacidade "natural", "a priorística" para seguir o bem e fugir do mal, nada nos diz acerca do bem que perseguimos e do mal de que fugimos. 

E quanto à seguinte citação:

"Isto é importante porque, da mão do castigo altruísta, o que aparece em realidade é a evidência de que os seres humanos se inclinam por natureza a castigar a injustiça, quer dizer, de que a disposição das pessoas para castigar aos indivíduos que mentem, enganam, roubam ou violam as normas sociais (morais ou jurídicas), inclusive quando não tenham sofrido nenhum dano ou se beneficiado pessoalmente, é parte de nossa biologia, um comportamento característico do ser humano. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem. É este sentido da justiça o que subjaz a idéia de John Rawls (1978)acerca da capacidade para lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de justiça universal, e não de interesses particulares, as regras do jogo."

Parece-me que existe aqui alguma confusão. Por um lado, o autor defende que é da nossa natureza castigar a injustiça. No limite, não distingo isso da vingança das turbas enfurecidas. Também elas se satisfazem com a "justiça" praticada. Devemos fazer a seguinte questão: perante esta circunstância da natureza humana se satisfazer com este "facto biológico" o que deve um juiz fazer perante um homem que matou outro porque este lhe tinha violado a filha? Afinal, o homem limitou-se a "castigar altruisticamente" o homem que prevaricou. Deve, por isso, ser absolvido? Não. O homem deve "conter", precisamente em nome de uma justiça mais elevada, a sua potencial satisfação permitindo que não se abra um perigoso precedente e não voltemos todos ao tempo da justiça pelas próprias mãos. Depois, diz o seguinte: "Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem". Eu pergunto: que equidade pode existir pelo simples facto de se sentir satisfação na condenação do outro que prevaricou? Estarei disposto, caso seja eu a prevaricar, a sofrer o mesmo castigo? Por uma questão de equidade, sim, deveria estar disposto, ainda que tal não me "satisfaça" muito em termos biológicos.

Gostaria de saber, portanto, se é possível algum tipo de objetividade ética a axiológica num contexto irremediavelmente subjetivista. Ainda que defendam a "objetividade empírica", o que dizer da objetividade dos princípios da justiça? Ah. Claro. Não existe. A justiça e os seus princípios dependem da satisfação, da prática variada e subjetiva dos seres humanos cuja única coisa que têm em comum é um conjunto de estruturas "naturais." Ora, pelo menos seria de esperar que fossem coerentes estes senhores e que, portanto, admitissem que não existe qualquer motivação valorativa na sua atitude científica. Trata-se de "ciência pura" no sentido de pôr os resultado mais recentes da neurobiologia ao serviço do direito e da justiça. Ora, neste sentido, como devo entender a seguinte citação?

"Como disse W. K. Clifford (1879) há mais de um século, temos o dever pessoal e social de combater as crenças não respaldadas pela evidência ou que se opõem ativamente a ela, do mesmo modo que temos a obrigação pessoal e social de tratar de evitar a propagação de uma enfermidade."

Terei lido bem? "Temos o dever social e pessoal". Não se trata isto da enunciação de um princípio ético, valorativo, de justiça, com pretensão de verdade e universalidade? E não é, de acordo com o autor do artigo, precisamente com base neste princípio ético que se pretende subjugar a ética e as conceções de justiça às estruturas subjetivas da natureza humana? A pergunta que eu faço é então a seguinte: onde vai buscar este princípio a sua universalidade, se o que interessa a priori são as estruturas "naturais" que são a condição de possibilidade da sua própria validade? Afinal, é ou não possível e necessário o raciocínio ético para além da mera abordagem empírica da sua natureza? Porquê este princípio e não outro qualquer? Talvez porque existam razões para que se considere este princípio melhor que outro. Razões que certamente ultrapassarão a mera justificação naturalista. Caso contrário, cairiamos no seguinte absurdo lógico: é nosso dever de justiça provar que a justiça não tem validade em si própria mas depende das estruturas cerebrais do homem. É nosso dever provar que o dever não passa de uma atitude instintiva da "natureza humana". A questão que posso colocar é simples e decisiva: então, que razões tenho para cumprir esse dever?

2 comentários:

Ana Carina Vilares disse...

Precisamente. Temos de saber pesar e pensar muito bem as luzes e as sombras do discurso da neuroética. As suas propostas e de alguma forma as suas soluções, a pretensão de as apresentar, é decisivo e cada vez mais premente para a filosofia. É preciso ter muito cuidado perante a grandeza e, por vezes, "obscuridade" do ser humano e ainda mais quanto ao tratamento e "descodificação" da sua natureza. Não conhecemos tudo, não sei se um dia vamos conhecer. É preciso cautela e muito respeito pela problemática em questão. Ela tem levado anos, séculos de discussões e debates. Não queiramos agora descobrir tudo à queima-roupa! Sem crítica e completamente sozinhos no terreno como o faria um qualquer positivismo de outrora.

Anónimo disse...

Quero saber como me tornar uma neurobióloga