A propósito do artigo intitulado As raízes neurobiológicas da justiça, publicado num blog relacionado com as neurociências (http://jus.com.br/revista/texto/22670/as-raizes-neurobiologicas-da-justica#ixzz27Ivt75n8), achei por bem tecer algumas
considerações que me parecem pertinentes no sentido de introduzir alguma prudência na tentativa "empírica" de justificar a condição ética do ser humano.
"Já há indícios
de alguma disposição para estabelecer um debate entre as ciências que se ocupam
do cérebro e da conduta e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, no
sentido de admitir que a partir da aceitação dos melhores dados disponíveis
acerca de como são os seres humanos será possível reconstruir, sobre bases
empiricamente mais sólidas e seguras, os fundamentos do direito, da justiça e
da moral." Portanto, estes senhores propõem que se assentem as bases do
direito, segundo compreendi, em "bases empiricamente mais sólidas e
seguras" de "como são os seres humanos".
Aquilo que eu
pergunto é o seguinte: o que significa neste contexto o "ser", a
"natureza" humana que se pretende empiricamente desvendar? Pois, eu
também defendo que, no limite, a posse do conhecimento acerca da
"natureza" humana nos daria uma base segura para respondermos à
questão de "como devemos viver". Não sou porém tão otimista como
estes senhores ao defender que tal natureza seja objetivável por via da investigação
empírica, científica, biológica. O ser humano - é triste que tenha de lembrar
sobretudo aqueles que defendem uma perspetiva evolucionista - é o animal menos
determinado em termos biológicos. A genética, ainda que tenha um papel
estruturador básico, não determina definitivamente aspetos tão simples como a
língua que falamos, as nossas crenças, o nosso agir perante a contingência do
mundo. Mais: precisamente essa indeterminação permitiu-nos enfrentar e superar
a contingência, ao oferecer-nos instrumentos de resposta adaptativa
perante a imprevisibilidade e a mutabilidade do mundo, sempre prenhe de
desafios à sobrevivência. Assim - e já Piaget o tinha afirmado e muito bem - as
nossas estruturas cognitivas e morais desenvolvem-se numa relação irredutível a
qualquer uma das partes: meio ambiente (mundo), genética e ação do indivíduo no
mundo.
A que chamam os
neurobiólogos, portanto, de "natureza humana"? Essa mesma que pode e
deve ser "empiricamente objetivável"? À genética "a priori", chamemos
assim, ou às estruturas cerebrais de um adulto formado? Vejamos o que diz o
artigo:
"Ernst Fehr
e seus colaboradores (2002) estudaram esta questão explorando os cérebros de
sujeitos mediante a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) enquanto estes
decidiam se castigar a uma pessoa que havia abusado previamente de sua
confiança violando uma norma justa. O estudo demonstrou que a parte do cérebro
crucial no circuito da recompensa ou gratificação se ativa enquanto os sujeitos
estão decidindo se castigar ou não. Pesquisadores anteriores demonstraram que
esta mesma área se ativa quando, por exemplo, os sujeitos recebem dinheiro,
vêem caras formosas, consomem cocaína ou no caso de indivíduos enamorados ao
ver imagens de seus amados ou amadas."
Partindo da
tomografia de um cérebro adulto - com as estruturas já formadas ou na fase mais
avançada da sua formação - os cientistas concluíram - vejam bem! - que a
resposta cerebral ao ato de condenar ou castigar alguém por ter violado uma
regra comunitária considerada por todos como "justa" é uma resposta
de satisfação ou reforço positivo, semelhante ao que se passa quando consumimos
uma droga, ou quando estamos com a pessoa que amamos ou - acrescento eu -
quando nos congratulam por algo que fizemos corretamente. O que diz isto acerca
da justiça ou dos seus princípios? Em primeiro lugar, trata-se de um adulto já
formado e, portanto, não compreendo porque parecem menosprezar ou esquecer
todo o processo de socialização e de estruturação construtivista que já se deu
ao longo do processo de desenvolvimento. Por outro lado, se o mesmo se passa
quando comemos chocolate ou consumimos uma droga, então tal significa que a
nossa "natureza" já possui em si as estruturas a priori para
apreciarmos "aquele" chocolate em particular ou para nos sentirmos
bem com "aquela" pessoa por quem nos apaixonamos? O reforço positivo
e a satisfação manifestados numa área do cérebro podem explicar, em parte, o
porquê de nos sentirmos bem por termos cumprido uma regra justa. Mas não diz
"que" regra justa, ou sequer quão abrangente e pertinente é essa
"regra" justa que cumprimos tão satisfatoriamente. Ou seja, dito de
outra forma, podemos ficar satisfeitos por termos cumprido uma regra que
consideramos justa do mesmo modo que um cão se sente satisfeito por obedecer à
ordem do dono, ou do mesmo modo que um oficial de Hitler se sentia satisfeito
em enviar judeus para os campos de concentração.
Como bem
sublinha Nagel, no máximo a explicação neurológica pode ensaiar uma explicação
causal para a justiça, mas nunca oferecer razões a favor ou contra uma
determinado regra ou princípio de justiça. As explicações naturalistas não
podem servir de fundamento último, empiricamente indiscutível e axiomático, fim
de toda a reflexão ética. O facto de possuirmos a capacidade
"natural", "a priorística" para seguir o bem e fugir do
mal, nada nos diz acerca do bem que perseguimos e do mal de que fugimos.
E quanto à
seguinte citação:
"Isto é
importante porque, da mão do castigo altruísta, o que aparece em realidade é a
evidência de que os seres humanos se inclinam por natureza a castigar a
injustiça, quer dizer, de que a disposição das pessoas para castigar aos
indivíduos que mentem, enganam, roubam ou violam as normas sociais (morais ou
jurídicas), inclusive quando não tenham sofrido nenhum dano ou se beneficiado
pessoalmente, é parte de nossa biologia, um comportamento característico do ser
humano. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal
de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais
contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem. É este sentido da
justiça o que subjaz a idéia de John Rawls (1978)acerca da capacidade para
lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de
justiça universal, e não de interesses particulares, as regras do jogo."
Parece-me que
existe aqui alguma confusão. Por um lado, o autor defende que é da nossa
natureza castigar a injustiça. No limite, não distingo isso da vingança das
turbas enfurecidas. Também elas se satisfazem com a "justiça"
praticada. Devemos fazer a seguinte questão: perante esta circunstância da
natureza humana se satisfazer com este "facto biológico" o que deve
um juiz fazer perante um homem que matou outro porque este lhe tinha violado a
filha? Afinal, o homem limitou-se a "castigar altruisticamente" o
homem que prevaricou. Deve, por isso, ser absolvido? Não. O homem deve
"conter", precisamente em nome de uma justiça mais elevada, a sua
potencial satisfação permitindo que não se abra um perigoso precedente e não
voltemos todos ao tempo da justiça pelas próprias mãos. Depois, diz o seguinte:
"Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal
de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais
contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem". Eu pergunto: que
equidade pode existir pelo simples facto de se sentir satisfação na condenação
do outro que prevaricou? Estarei disposto, caso seja eu a prevaricar, a sofrer
o mesmo castigo? Por uma questão de equidade, sim, deveria estar disposto,
ainda que tal não me "satisfaça" muito em termos biológicos.
Gostaria de
saber, portanto, se é possível algum tipo de objetividade ética a axiológica
num contexto irremediavelmente subjetivista. Ainda que defendam a
"objetividade empírica", o que dizer da objetividade dos princípios
da justiça? Ah. Claro. Não existe. A justiça e os seus princípios dependem da
satisfação, da prática variada e subjetiva dos seres humanos cuja única coisa
que têm em comum é um conjunto de estruturas "naturais." Ora, pelo
menos seria de esperar que fossem coerentes estes senhores e que, portanto,
admitissem que não existe qualquer motivação valorativa na sua atitude
científica. Trata-se de "ciência pura" no sentido de pôr os resultado
mais recentes da neurobiologia ao serviço do direito e da justiça. Ora, neste
sentido, como devo entender a seguinte citação?
"Como disse
W. K. Clifford (1879) há mais de um século, temos o dever pessoal e social de
combater as crenças não respaldadas pela evidência ou que se opõem ativamente a
ela, do mesmo modo que temos a obrigação pessoal e social de tratar de evitar a
propagação de uma enfermidade."
Terei lido bem?
"Temos o dever social e pessoal". Não se trata isto da enunciação de
um princípio ético, valorativo, de justiça, com pretensão de verdade e
universalidade? E não é, de acordo com o autor do artigo, precisamente com base
neste princípio ético que se pretende subjugar a ética e as conceções de
justiça às estruturas subjetivas da natureza humana? A pergunta que eu faço é então
a seguinte: onde vai buscar este princípio a sua universalidade, se o que
interessa a priori são as estruturas "naturais" que são a condição de
possibilidade da sua própria validade? Afinal, é ou não possível e necessário o
raciocínio ético para além da mera abordagem empírica da sua natureza? Porquê
este princípio e não outro qualquer? Talvez porque existam razões para que se
considere este princípio melhor que outro. Razões que certamente ultrapassarão
a mera justificação naturalista. Caso contrário, cairiamos no seguinte absurdo
lógico: é nosso dever de justiça provar que a justiça não tem validade em si
própria mas depende das estruturas cerebrais do homem. É nosso dever provar que
o dever não passa de uma atitude instintiva da "natureza humana". A
questão que posso colocar é simples e decisiva: então, que razões tenho para
cumprir esse dever?
2 comentários:
Precisamente. Temos de saber pesar e pensar muito bem as luzes e as sombras do discurso da neuroética. As suas propostas e de alguma forma as suas soluções, a pretensão de as apresentar, é decisivo e cada vez mais premente para a filosofia. É preciso ter muito cuidado perante a grandeza e, por vezes, "obscuridade" do ser humano e ainda mais quanto ao tratamento e "descodificação" da sua natureza. Não conhecemos tudo, não sei se um dia vamos conhecer. É preciso cautela e muito respeito pela problemática em questão. Ela tem levado anos, séculos de discussões e debates. Não queiramos agora descobrir tudo à queima-roupa! Sem crítica e completamente sozinhos no terreno como o faria um qualquer positivismo de outrora.
Quero saber como me tornar uma neurobióloga
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