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quarta-feira, outubro 21, 2009

Saramago - o (pseudo)iconoclasta



O lançamento do livro Caim de José Saramago veio acompanhado de uma enorme polémica gerada pelas suas afirmações acerca da Bíblia e da religião em geral. Segundo o entender de Saramago – a partir da sua perspectiva aparentemente desapaixonada e descomprometida -, a Bíblia é um “manual de maus costumes” que reflecte “ o que há de pior na natureza humana”. Ao mesmo tempo, põe em causa o carácter revelacional das escrituras, lançando em tom trocista a questão acerca do meio que Maomé, Abraão ou Moisés terão utilizado para comunicar com Deus. Afirma que o Deus do Antigo Testamento é vingativo, ciumento e figadal, sempre pronto a castigar o homem pelas suas transgressões, seja arrasando com cidades ou inundando o mundo durante quarenta dias.

Contudo, Saramago cinge-se ao Antigo Testamento sem referir que tipo de Deus está presente no Novo. O facto de Saramago atacar tão ferozmente o Antigo Testamento não deveria, em princípio, incomodar a Igreja Católica em particular, nem o mundo cristão em geral. A liturgia e o dogma cristãos assentam muito mais nos evangelhos, nas epistolas, nos Actos dos apóstolos e no Apocalipse, do que propriamente nos livros do chamado Pentateuco. Para os cristãos, este conjunto de cinco livros – Génesis, Exodo, Levítico, Números e Deuteronómio – deve ser lido e interpretado como o prenúncio e a preparação da humanidade para a vinda do Messias, que plenamente se revela nos evangelhos do Novo Testamento e cujo nascimento é previsto pelos profetas ditos maiores do AT– Jeremias, Isaías, Ezequiel e Daniel -.

O Deus do NT é diferente do do AT na medida em que age no mundo através de Jesus, o chamado Filho de Deus. Não só é através de Jesus que Deus age, como só através de Jesus pode o crente chegar a Deus. Jesus apresenta-se como “o caminho, a verdade e a vida”, pois “ninguém vem ao Pai senão por mim”. Jesus traz algumas novas noções que revolucionam em parte a religião judaica: o Antigo Testamento – que corresponde em grande medida à Torah judaica -, está imbuído de uma constante promessa na vitória do povo de Israel, no advento de um Messias político que libertará definitivamente o povo eleito do jugo e da diáspora e o conduzirá à paz na “Terra Prometida”. Por outro lado, Jesus já não fala em Terra Prometida, mas no “Reino de Deus”. Ora, este “Reino de Deus”, como o próprio Jesus afirma “não é deste mundo” e inclui, não só o povo eleito de Deus, mas todos os homens da Terra. É um reino do espírito e não um reino com fronteiras definidas e politicamente soberano. Jesus apresenta-se como o profeta prometido. Os judeus que nele acreditaram tornaram-se cristãos, os que não acreditaram continuaram judeus. Jesus refere várias vezes as tradições judaicas para nelas introduzir diferentes interpretações e mudanças significativas. Por exemplo, não considera necessária a circuncisão física nem o descanso ao Sábado como prerrogativas fundamentais. Ele confronta várias vezes os sacerdotes do Templo de modo a provar-lhes que as suas crenças e costumes estão errados e configuram uma errada interpretação das escrituras reveladas. Apresenta-se também como aquele que completará os “mandamentos de Deus”, acrescentando aos já 10 existentes um outro que parece dar sentido e vida todos os outros: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Ou seja, para Cristo é menos importante o cumprimento estrito e literal da regra e do mandamento do que o espírito da lei que é, em si mesmo, Amor.

Quanto ao Antigo Testamento ou Pentateuco, é preciso que se diga em primeiro lugar o seguinte: a escrita original dos cinco livros é em hebraico antigo. O hebraico antigo não tem vogais, mas só consoantes. A razão é simples: toda a tradição antiga é oral. As histórias eram memorizadas e transmitidas de geração em geração, e assim o foi por milhares de anos. Os primeiros povos semitas privilegiavam a oralidade à escrita. Neste sentido, o suporte escrito servia apenas como auxiliar de memória ao registo oral. Ou seja, só quem já sabia a história de cor podia interpretar a história escrita! Quem não conhecesse a história não tinha meio de a interpretar ou sequer de saber do que tratava. Além disto, o hebraico é uma língua extremamente flexível. Não existe apenas uma interpretação possível para um determinado texto, mas várias ainda que apontem sempre para um mesmo sentido. Aquele que lê e interpreta embarca numa perigosa aventura, pois está não só a ler mas a reescrever, pois só é possível dar sentido ao texto se se lhe introduzir as vogais. Neste sentido, acredito que os judeus, mais habituados a interpretar e com conhecimentos mais aprofundados do hebraico e da história do seu povo, são mais capazes de compreender não só o que está escrito, mas sobretudo o que não está escrito, ou pelo menos sub-entendido. O Cristianismo, ao querer impor a sua hegemonia sobre os textos bíblicos, interpretou sempre à sua própria maneira e frequentemente traduziu mal a partir do hebraico. Não só traduziu mal como apresentou interpretações unívocas e literais de muitos dos textos. A verdade é que nenhum dos textos do Antigo Testamento pode ser interpretado de modo literal. O Génesis, por exemplo, é um poema mitológico antigo que deriva provavelmente do cosmogonias babilónicas, ou quem sabe mesmo egípcias. A história do dilúvio e da arca de Noé tem todo um conjunto de similitudes com o mito de Gilgamesh, lendário rei sumério metade homem-metade deus que terá existido no séc. XXVIII A.C.

Abrãao - o Grande Patriarca de onde derivam as 3 grandes religiões monoteístas – era natural de Ur, cidade babilónica do Crescente Fértil de onde se acredita ser originário o primeiro grande código legislativo, o Código de Hamurabi. Os 10 mandamentos apresentam grandes semelhanças, no essencial, com este primeiro código. É também verdade que os judeus estiveram exilados no Egipto, e que não só seriam escravos como designa o livro do Êxodo, como em grande medida terão adquirido importantes conhecimentos religiosos, arquitectónicos e místicos que depois lhes seriam por demais úteis na construção do seu próprio templo. Terão chegado ao Egipto completamento dispersos, e dele terão saido unidos nas chamadas doze tribos de Israel – tribos de Rúben, Simeão, Levi, Judá, Zebulom, Issacar, Dã, Gade, Aser, Naflali, Benjamim, Manassés e Efraim – em direcção à Palestina.

Ainda assim, é importante denotar que grande parte da mensagem escrita parece estar numa série de outros dados mais subtis relacionados com certos aspectos místicos. Por exemplo, a importância do número 7, 12 e 40. Foram 7 os dias da criação, são 7 as qualidades do sábio, 7 as partes do corpo humano, 7 céus, 7 planetas, etc; são 12 as tribos de Israel, são 12 os meses, 12 os profetas menores, 12 são os apóstolos de Cristo; 40 anos estiveram os judeus no deserto, 40 dias esteve Cristo no deserto a ser tentado. Há uma lista infindável de relações numéricas que podem ser encontradas e que têm relação com aspectos místicos muito mais antigos que a religião judaica. Certos estudiosos acreditam inclusive que a escrita bíblica em hebraico esconde significados até hoje ocultos, ou só cognoscíveis para meia dúzia de iniciados. Outras correntes afirmam que é o próprio futuro que está inscrito nos caracteres hebraicos.

O que é mesmo certo é que acerca dos livros da Bíblia nem tudo o que parece é. Há uma dimensão cultural, mitológica e histórica que se deve ter em conta e que vale a pena estudar. Quem acredita deve acreditar sabendo aprofundar a sua própria crença. Saramago parece estar mais preocupado em tornar mais ignorantes aqueles que já por natureza o são, os mesmos que nunca leram nem se preocupam em fazê-lo com atitude crítica ou crente. Diga-se o que se disser, a Bíblia é inseparável da própria civilização e do modo de vida no qual estamos inseridos.

O que é estranho no senhor Saramago é que é tão iconoclasta e irreverente perante a ortodoxia religiosa, mas tão ortodoxo e rígido em relação à sua própria religião pessoal – o comunismo. O que tem o nosso Nobel a dizer acerca do livro vermelho de Mao, ou do Manifesto do Partido Comunista de Marx?

2 comentários:

Anónimo disse...

40 anos esteve Cristo no deserto a ser tentado???? Dias, talvez!

Ruben David Azevedo disse...

Tem toda a razão! Erro crasso.. já rectifiquei. Obrigado pela atenção.