Anúncios google

quarta-feira, maio 13, 2009

Carácter, Símbolos e Felicidade



Um homem tem de crescer mais tarde ou mais cedo. Um homem tem de aprender a afirmar-se, a não se deixar abater pela ignorância e pelo desprezo de quem lhe é muitas vezes alheio e inferior. Tem de ter personalidade, não no sentido de persona (personagem), mas no sentido de uma individuação caracterizada por uma componente de espontaneidade, e outra de responsabilidade e sentido crítico. A isso se chama ter carácter. Um homem com carácter é um homem com espinha dorsal, o oposto da ideia de serpente frequentemente associada ao mal e ao homem sem carácter, precisamente por ser um animal rastejante (logo inferior) e imprevisível no seu serpentear (embora tenha também uma espinha dorsal, apesar de muito mais flexivel). Talvez a maldição que Deus lançou sobre a serpente, a de comer pó e rastejar como ser maldito até ao fim dos tempos, surja precisamente da ideia de que o hábito de rastejar, ou seja, de ser inferior e imprevísivel em termos morais, se torna num puro vício que em nada dignifica a Humanidade e, antes de mais, está na raiz da perdição. É a perversão da centelha divina que ilumina o coração de cada homem, ela mesma símbolo e porta de Deus no mundo. Esta dualidade biblíca, religiosa, e com raízes profundas que derivam dos primórdios da civilização, assenta na noção do conflito sempre presente entre o bem e o mal, uma tensão jamais ultrapassada, um combate permanente no coração de cada homem. Apesar de moldado à imagem do seu Deus, basta uma simples tentação para atirar por terra a face divina do homem e condená-lo para sempre. Cada homem é um campo de batalha, um armagedão entre as forças da luz e as das trevas; cada homem vive o seu próprio juizo final sempre que olha para trás e se confronta com os monstros que ele próprio alimentou conscientemente; cada homem vive o seu pecado original sempre que surje o momento da decisão e, ao invés de fazer jus à divindade que em si habita, se deixa fraquejar. Um homem que fraqueja uma primeira vez está pronto para fraquejar muitas outras vezes. Acaba mais tarde ou mais cedo por acumular fraquezas com a naturalidade de quem colecciona selos ou moedas. Um homem que se habitua a ser fraco, é por natureza um homem condenado ao pessimismo. Deixa de acreditar em si mesmo e, mais grave ainda, deixa de acreditar em toda a Humanidade porque nela projecta a sua própria frustração, confundindo a parte pelo todo, tomando a sua natureza individual pela natureza universal. É por isso que um homem perdido pode perder toda a Humanidade, assim como o contrário também pode ser verdade. Quem se habitua à fraqueza passa a vida inteira à espera do seu redentor pessoal, um messias cujo sangue derramado lhe trará a purificação e lhe dará uma segunda oportunidade que ainda que tal lhe seja concedida, raramente aproveitará. A queda, ou seja, o próprio mal, deriva da fraqueza. Sócrates via na ignorância a mãe de todos os males. Porém, mais condenável do que a ignorância - na maioria das vezes involuntária - é a fraqueza, que deriva do conhecimento pleno da acção que se pratica, e das consequências dela derivadas. Diria que a ignorância é a mãe de todos os males, e a fraqueza é o pai – se é que tal incoerência de género se permite -. Ainda que a mulher derive de uma costela do homem, e com tal ideia se pretende designar a baixeza e inferioridade do feminino, a verdade é outra, totalmente oposta e reveladora. O sagrado feminino é aquilo que completa a incompletude do homem, é o que lhe dá substância e plenamente o aproxima do divino. Por alguma razão, as grandes virtudes são todas designadas no feminino, e dos sete pecados, só seis são femininos; a liberdade, a igualdade, a beleza, a verdade, a bondade, a própria Virtude (em oposição ao Vício designado no masculino); Desde a Vénus neolítica de abundantes seios, à Virgem Maria ou à Maya dos hindus, o sagrado feminino está por todo o lado e é porta priveligiada para o divino e o mistério; as ninfas, as musas (também as havia demónios, é certo); a Graça, essa palavra tão usada e tão significativa; a Terra, ou mãe terra para muitos; o útero sempre foi mais importante e abrangente que o pénis. O pénis penetra, mas só o útero acolhe e alimenta. As pedras neolíticas a que se convencionou chamar de menires, símbolos fálicos que apontam para o Céus, ansiosos por penetrar nos mistérios acolhedores da verdade celeste; contudo, só as mamoas e as antas podem acolher o corpo e devolvê-lo ao pó original. A estrela de David, intersecção entre o triângulo que aponta para cima (fálico e masculino), e o triângulo invertido (símbolo uterino e vaginal); as pirâmides do Egipto, as de Chitchen Itzá ou as de Teohituacan, cujo vértice aponta para o Céu, erectas e profícuas em saber e conhecimento astronómico e celestial. Pode haver melhor alegoria?

Um homem pode viver uma vida inteira alimentando-se apenas de mistérios antigos, de símbolos e de conhecimento milenar, que nunca se fartará, e certamente não tê-la-á vivido em vão. Contudo, o homem forte e com carácter sabe também olhar para o futuro com a mesma sofreguidão e entusiasmo com que olha para o passado. O homem forte e com personalidade confia no futuro, ainda que desdenhe largamente do presente. Porém, o presente contem já em si as sementes de todo o porvir. O homem com coragem, optimista e confiante, reconhece os sinais e aponta caminhos. Já muitas vezes no passado alguns homens olharam a sua contemporaneidade como prenúncio da decadência inevitável do mundo. Nenhuma esperança, divisavam apenas entre a poeira e o nevoeiro criador a destruição e o caos. E muitas vezes o caos e a destruição deram lugar à ordem; civilizações novas renasceram das cinzas como a própria Fénix. Os germéns da renovação residem no caos primordial, os sebastiões e os messias nascem precisamente do caldo das crises, e assim o universo progride, aparentemente com tantos armagedões como recomeços. Não há absolutos verdadeiros, porque verdadeiramente a morte não existe. O fim propriamente dito é apenas a antecâmera de um novo inicio, ainda que o Universo pareça ter vindo de um absoluto nada. A mente de um homem não abarca a linha lógica que torna coerente um paradoxo, não tem poder para se elevar e desapertar o nó górdio dos grandes mistérios, garantindo com isso a conquista do conhecimento supremo. Como o próprio Alexandre, o desejo de glória e o medo da morte compelem-nos a cortar o nó. Conquistar desta forma é condenar a conquista à instabilidade e à destruição precoce. Conquistar verdadeiramente é saber que se pode passar a vida inteira a desapertar o nó, deixando para as gerações futuras a tarefa de continuar o que foi começado. A conquista do conhecimento verdadeiro é um altruismo sincero, talvez um dos únicos que existam de facto. O homem fraco corta o nó; o homem forte desaperta-o.

A rotina destrói e corrói quando condena o homem a ser apenas uma pequena parte do que pode ser. A perspectiva dos dias rotineiros provoca o desânimo e a descrença, sobretudo nos mais insatisfeitos e de mente aberta. A resignação a este estado de coisas é igual ao hábito de ser fraco, conduzindo o indivíduo ao pessimismo e à descrença na espécie humana. Hoje, num mundo de pessoas sem rosto, as relações entre os seres humanos reduzem-se à relação entre coisas. A relação aberta e total entre seres humanos, noutras palavras, a relação verdadeiramente aberta e genuína não é possível num mundo de gente deprimida e oprimida, em que cada um desconfia do vizinho do lado e o colega de trabalho. Não é possível quando as relações entre as pessoas se fazem dos pedaços de cada um, entre especializados e profissionais, entre produtos e produtores, entre mascarados e travestidos. O homem corajoso liberta-se disto, aplica um pontapé raivoso, vindo do estômago já meio ulcerado por muitas desilusões e crispações sem propósito nesta vida baça, semelhante a um quadro de Magritte de rostos, chapéus de coco e objectos tão grandes quanto fúteis. O homem corajoso e forte liberta-se disto, mas não foge. Libertar-se é desapertar o nó da sua própria vida, não é cortar o nó e fugir. Essa é a maior tentação do homem lúcido: fugir! Fugir para longe, tornar-se eremita num amplo convento de paredes grossas, entre claustros silenciosos e frescos. Há quem se torne caminhante, agarre um cajado e percorra vales e serras verdes, num esforço contínuo de comunicar com a inocência original de todas as coisas. O que cansa nos homens é precisamente a mistificação, a perda da inocência original que deriva da entrega verdadeira e quase infantil; o que cansa nos homens é viverem numa espécie de carnaval permanente de máscarados tristes. Paradoxalmente, só quando lhes é pedido para se vestirem e travestirem em dias instituidos de carnavalidade, eles verdadeiramente se revelam. O que cansa nos homens é a falta de futuro – e em mesma medida, de passado, que no fim vai dar ao mesmo – nos seus modos de agir e viver. Nem passado, nem futuro, apenas um presente triste, rotineiro e verdadeiramente cinzento para a maioria dos seres humanos. O homem forte conhece o futuro e o passado, e esforça-se por viver com um passo naquele e outro neste. O homem fraco entrega-se ao presente, polvilhando os seus dias de pequenos sem-sentidos que em nada o enriquecem e elevam. Um presente feito de agoras que derivam de uma sociedade voltada para o : Compre já!, Adquira já!, Procure já!, Conheça já!, Vá já!... Seja feliz já e agora, sem mais delongas, é um dos lemas da modernidade. Não faltam livros para ensinar a arte de ser feliz, receitas elaboradas de cura e de enriquecimento ! Em última análise, tais livros fazem - algumas - pessoas felizes, sobretudo os próprios autores e editores de tais obras miraculosas que se vêem ricos ...

Bens não são felicidade. Adágio, lugar-comum, verdade aceite. A verdade é que ter dinheiro, só por si, não trás felicidade. O que trás felicidade é tudo aquilo que liberte o homem das suas próprias escravidões pessoais, que lhe aponte o caminho e o leve a ser ele mesmo o mais amplamente possível. Possuir bens materiais pode ter o efeito adverso de conduzir precisamente a mais escravidões, nomeadamente tornando um homem ainda mais desconfiado dos outros homens, ou implicando o acentuar de rotinas destruidoras para manter e até dilatar os bens que se possui. Um homem fraco pode enriquecer precisamente para fugir dos outros homens e da rotina, porque em última análise acredita que quanto mais bens possuir, melhor será visto, maior e mais respeitável será o seu estatuto, acedendo à elite e dispondo-se a olhar os outros homens como seres inferiores. Neste caso, ter bens é construir paredes à semelhança dos claustros dos conventos, muralhas que legitimem a sua superioridade -distanciamento - em relação aos comuns mortais. O homem forte e corajoso não se refugia no estatuto que o dinheiro ou os bens lhe possam trazer, o que não o impede de enriquecer ou possuir um império. O homem forte não é escravo do que tem; o homem fraco é o maior servidor do que pensa possuir. Em regra, o homem rico que é fraco torna-se avarento e desconfiado. O próprio Gandhi, um dos homens mais frugais da história da humanidade, dizia que, em si mesma, a riqueza não é um mal, desde que o homem rico não se deixe escravizar pelos seus bens, sendo como uma espécie de rio onde outros homens se alimentam, porque o dinheiro pode ser com um rio, dar vida por onde passa, ou como um lago entrofizado, caso esteja parado e sirva apenas como uma espécie de tesouro pessoal indissociável daquele que o possui, e onde aquele vai buscar a sua legimidade perante os outros homens. A água parada rapidamente se torna venenosa, não leva vida a lado nenhum. É antes morte. Contudo, um homem pode também servir-se inteligentemente dos bens que possui para quebrar o ciclo demolidor dos dias que autofagicamente se devoram, das semanas ocas e do cinzentismo de uma rotina alienadora, espartilhante e capaz de apagar o brilho de um olhar. Pode servir precisamente para cumprir uma vida, para gerar o ócio necessário para se ser um profundo artísta, um profeta, um missionário, um grande empresário capaz de pôr em prática um conceito inovador. Pode ser apenas uma oportunidade para se ser homem. Nesse caso, um homem não quer ser rico pela riqueza em si mesma, mas quer apenas o suficiente para ter uma oportunidade de ser quem nasceu para ser. Não quer ter fortuna, mas os meios para cumprir os seus sonhos nos quais certamente não está o de ser rico. Poucos são, contudo, os que verdadeiramente definiram os seus sonhos de uma forma inteligente e realmente produtiva. Muitos confundem caprichos com sonhos. Não há nenhuma semelhança entre sonhar ser um artista de renome e ter um ferrari. Não há nenhuma semelhança entre cumprir o desígnio de uma vida e obedecer a uma excentricidade vulgar.

Sem comentários: