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segunda-feira, abril 13, 2015

Demasiado sofrimento



Há demasiado sofrimento no mundo. A maior parte dele está completamente longe da nossa vista, quando mais do nosso coração. De vez em quando passamos por um velho mendigo na rua, ou uma mulher, ou uma criança triste, e ao vê-los prostrados e reduzidos, ao nível do chão, sujos e maltrapilhos, somos tocados pela sua miséria. Quando tal acontece pergunto-me em silêncio "O que comeu este homem hoje?", "Que espécie de enxerga o espera à noite?", "Que abrigo da noite fria?", "Que abrigo da solidão"?, "Que espécie de desespero?"... E faço-o do alto da minha condição, erecto e sadio, estômago cheio e já à espera da próxima refeição, dinheiro no bolso, uma casa, um quarto e uma cama para voltar depois das agruras do dia, uma palavra amiga e familiar e uma refeição quente...e uma espécie de esperança que me ilumina o hoje e o amanhã.

Há demasiada dor, demasiado desespero. Agora mesmo, há demasiada gente doente à espera de morrer numa cama de hospital, para quem a noite, a solidão e o silêncio têm o sabor da desesperança e o odor da morte que espreita. Nenhum futuro, nenhuma esperança de salvação. Homens, velhos, crianças. Há demasiada gente sem voz por essas periferias escusas do mundo das quais ninguém quer saber. Gente sem lei, homem ou instituição que a proteja, que a represente. Gente exilada, refugiada sine die por causa de guerras e conflitos que não provocou, que não pediu (falo eu, o exilado/refugiado por capricho e opção...). Gente que trabalha em antigas e novas formas de escravatura, de sol a sol, tratados como mercadoria, maltratados, espoliados, explorados, meras máquinas sem rosto, números que não merecem sequer um olhar de humanidade - e tudo isto para ganharem uma côdea de pão que não lhes chega para matar a fome, nem a sua nem a dos seus filhos, cujo choro esfaimado são impotentes para calar, de dia e de noite.
Há demasiada gente presa, alguns por coisa nenhuma, outros apenas por pensar em voz alta, outros porque ousaram dizer o que outros preferem calar, por medo ou comodismo. Há quem adormeça e acorde todos os dias num eterno crepúsculo, que viva cada hora - sempre demasiado longa - imerso no frio da solidão e de um medo que é terror e não desata. Há demasiada gente que não tem para onde ir à noite, depois das agruras do dia; que não tem onde descansar, lugar a que chamar lar, onde pousar a cabeça, onde aquecer o corpo e alma e encontrar uma presença amiga, que às vezes nem precisa de falar mas só estar. E mesmo entre aqueles que têm para onde ir e que não estão sós, há quem tenha casa sem ter lar. Desses, há quem só queira ter paz, viver com quem não lhe bata, quem não o atormente, quem não o prenda, quem não o use, quem não o subjugue, quem não o mate. Já não se pede que o ame, mas apenas que o liberte, que o respeite. Há quem só queira que o pouco lar que tem não se transforme num inferno - já lhe basta, tantas vezes, o inferno que encontra na rua, no trabalho, na vida.

Há demasiada gente, mesmo entre os que "têm tudo", que sofre como se não tivesse nada. Presos por ilusões, dependências e más escolhas que fizeram, porque pensavam que era nelas, nas dependências que criaram e más decisões que tomaram, que se encontrava a sua frágil felicidade. Lançaram-se a si próprios numa teia da qual já não conseguem libertar-se, num labirinto do qual já não sabem sair.

Penso também em todos aqueles que todos os dias, várias horas por dia, consentem em deixar à porta dos seus trabalhos e ocupações (muitas vezes detestáveis, inumanas) a sua soberania pessoal, como se deixa o casaco ou o guarda-chuva, para se tornarem parte de uma engrenagem que prontamente os esmaga à mínima hesitação ou sinal de inadaptação, ou se por acaso decidem ser diferentes e afirmar o seu próprio e humano ritmo. Na maior parte do tempo não somos senhores de nós próprios, abdicamos da nossa vontade e liberdade para mendigarmos umas horas de gozo, umas quantas horas para podermos sentir o pulso do nosso "eu", para vivermos um pouco no espaço da nossa intimidade e dos nossos sonhos, umas poucas "folgas" da pressão da roda dentada para que sintamos a agradável sensação de sermos senhores de nós próprios e do nosso destino. Pena que na maior parte das vezes essa sensação seja apenas como um sonho de Cinderela, sem consequências práticas para a nossa vida, sem que sejamos capazes ou sequer queiramos, nessas horas de soberania, fazer mais do que sonhar a nossa própria liberdade, lançar reais sementes de projeto, construir um futuro mais de acordo com o que realmente somos e queremos realmente ser.

Há, pois, que tecer o futuro, um que esteja de acordo com o sentimento de autenticidade e soberania pessoal que todos encontramos nas poucas horas de liberdade que a máquina nos consente, essa máquina/sistema que joga tão bem com as nossas necessidades e dependências - e que nós permitimos, porque embora muitas das necessidades sejam reais, outras são completamente inventadas, e nós consentimos e absorvemos, como bons e obedientes consumidores que não estão realmente dispostos a perder em coisas, posses e bens materiais para ganhar em liberdade, espírito, soberania pessoal, cultura.
Mas há sofrimentos e dores muito mais profundos, e é bom que os tenhamos sempre em mente, em nome da consciência e da verdade. Neste exato momento, há quem tenha perdido um filho(a), um irmão(ã), um pai, uma mãe, um amigo(a), seja num acidente de carro, de aviação, seja levado por uma doença, seja num atentado terrorista, seja na sequência de um obus disparado numa qualquer zona de guerra por este mundo fora - apenas mais um "dano colateral" de um conflito onde se jogam mais altos interesses, que raramente são os do povo, que é sempre, mesmo na vitória, aquele que mais perde. Falo por mim: leio a notícia do jornal, a pequena breve ou primeira página que seja, e passo à frente. Não me interessa; não me diz respeito. Nem cai o céu nem o mundo pára por causa disso. Se fosse comigo... haviam certamente de cair os sete céus, o carmo e a trindade; e a indiferença do mundo iria doer-me como mil punhais.
Se por um momento calarmos o nosso ego e nos dispusermos a ouvir, é certo que ouviremos os gritos dessa mãe, desse irmão, desse pai, desse amigo; de todos aqueles que, agora mesmo, num instante imprevisto, perderam aquilo que tinham de mais precioso e clamam por justiça divina. E ouviremos esses gritos multiplicados por mil, ou por milhões, e o sol de primavera que agora mesmo nos ilumina com a cor da alegria (o mesmo sol que ilumina todos esses que sofrem para além de qualquer palavra) já não nos parecerá tão jovial e alegre.

A verdade é que há demasiada dor no mundo, e nós indiferentes, anestesiados, até que nos calhe a nós. Há quem diga, para não ter de se incomodar, que não há nada que possamos fazer quanto a isso, ou que o que quer que façamos é pura e simplesmente irrelevante (o que para mim é mais grave). A miséria material e moral, a doença, a dor, são tudo fatalidades.

Quanto à miséria moral e material, basta dizer que é urgente abandonarmos uma série de preconceitos bem mais enraizados do que possamos imaginar, segundo os quais 1) a miséria é uma punição sobre aqueles que não se "souberam governar" ou adaptar às exigências da sociedade, do mercado e do mérito; 2) que a miséria é uma "condição de nascimento", isto é, de que quem nasce miserável, ou é originário de um meio ou classe de indigentes, há de ser miserável toda a vida, ou tem como que o gosto pela miséria, ou "predisposição" para tal; 3) que a miséria faz parte do modo como o sistema económico funciona e se comporta, e portanto é condição necessária ao progresso económico das sociedades. Ora, estou de acordo que a desigualdade seja uma condição necessária à verdadeira justiça social, se a entendermos como justiça distributiva baseada no trabalho e no mérito. Naturalmente, quem trabalha mais e melhor merece receber mais e melhor; quem tem mais qualificações merece ser mais bem pago do que quem tem menos qualificações, etc. Todos podemos, em princípio, concordar com isto. Mas isto está muito longe de legitimar o darwinismo social, isto é, o pressuposto de que a vida em sociedade se deve basear na "lei do mais apto", ao ponto de se considerar justa a exclusão de milhões de "inadaptados", fracos e frágeis, sejam velhos e doentes que não podem trabalhar, sejam indivíduos que, por qualquer circunstância, não tiveram acesso a uma educação ou formação adequada, seja quem, por causa de um negócio falhado ou por não conseguir encontrar trabalho regular, se vê de repente atirado para as malhas da pobreza e da indigência.

Por fim, há que abandonar a ideia perigosa - embora muito cómoda - de que o que quer que façamos, a nível individual, é irrelevante. O velho doente e prostrado que encontro na rua e a quem ofereço o almoço, ou simplesmente um sentido "Bom dia!" de olhos nos olhos, de certo não sentirá a minha pequena ação como irrelevante. Pode ser irrelevante para mim, nunca para ele. É verdade que não posso mudar a sociedade de um dia para o outro, mas quem falou em mudar a sociedade? A minha pequena-grande ação, somada a um milhão de ações semelhantes todos os dias, em toda a parte, há com certeza de ser relevante um milhão de vezes, para um milhão de pessoas; e o que é relevante para um milhão de pessoas pode ser, pelo seu impacto imediato ou apenas pelo exemplo, relevante para milhões de famílias ou comunidades. Por fim, devagar, talvez se consiga fazer o que se julgava impossível: mudar a sociedade.


Até lá, é preciso que nos mudemos a nós próprios, começando por mudar de mentalidade. Há demasiado sofrimento no mundo - e não é ontem nem a semana passada, mas já, agora mesmo! Ter isso em mente é o princípio de um acordar, o princípio de uma expansão de consciência que nos pode levar a agir se esse sofrimento não for sentido como algo alheio, mas como algo que nos toca como se fosse nosso, que nos incomoda e nos perturba.

quarta-feira, abril 08, 2015

Acredito em Deus




Acredito em Deus, não apenas como princípio fundamental do real, como realidade última subjacente a tudo o que existe, mas também – e sobretudo – enquanto Pessoa (acaso poderia ser de outro modo?). Não é uma fé perfeita. Muitas vezes tenho dúvidas; posso até dizer que a dúvida é coexistente com a minha crença – quando um está presente, o outro também. Nenhuma dúvida, porém, vai suficientemente fundo para ser capaz de subverter ou suprimir a minha crença na pessoa de Deus. Todas as minhas dúvidas têm origem na lógica: como posso eu sustentar racionalmente uma crença num ser que nunca conheci, que nunca vi com os meus olhos, baseado apenas num “sentido de Deus” que julgo possuir, e na minha capacidade para pensar conceitos tão elevados como os de Absoluto, Infinito, Ser, que pela sua extensão e abstração parecem tudo conter e necessariamente existir, ainda que a sua natureza me escape? Aí está a questão: nada parece justificar o meu salto lógico da ideia que sou capaz de pensar, para a realidade que eu creio existir; isto é, não sou capaz de justificar racionalmente o salto lógico que vai da minha crença no Absoluto, que apenas conheço como ideia, para a minha crença no Absoluto cuja natureza consiste em ser pessoa, isto é, a pessoa máxima – Deus.

E no entanto, acredito. Acredito numa razão universal da qual a minha própria existência e racionalidade são expressões particulares, e que portanto coexiste a todos os meus actos de pensamento e de consciência (o Logos); acredito também que a minha consciência particular é a expressão possível, no quadro das possibilidades que o mundo material oferece, de uma consciência muito maior, diria mesmo ilimitada. A consciência, enquanto tal, é o fundamento da minha personalidade (do latim persona = pessoa), e portanto acredito - melhor seria dizer, sinto ou intuo – que à minha personalidade particular coexiste uma personalidade ilimitada. Ela também sou eu, também está em mim, embora me ultrapasse infinitamente, o que faz de mim uma existência permanentemente “em aberto”, isto é, uma pessoa ou personalidade cujas fronteiras da sua própria concretização se situam fora de si; ou seja, é no transcendente que se situa a última fronteira da minha realização pessoal, o limite da minha perfeição, a minha finalidade (télos). Já lá voltarei.

Mesmo que, sustentado na lógica, eu me forçasse continuamente a negar o que sinto, a minha crença em Deus não deixaria de se impor e de prevalecer por fim, sobrepondo-se a qualquer ceticismo baseado na lógica imediata. Na verdade, o meu ceticismo não me abandonou – apenas se habituou a coexistir com a minha fé metafísica, cada um no seu nível, um mais profundo outro mais superficial, um mais lógico-racional, outro mais intuitivo-existencial, respeitando-se mutuamente. Há muito aprendi que não existem apenas factos ou verdades lógicas, mas também verdades existenciais sem as quais a vida ou existência pessoal se torna impossível – é o caso, por exemplo, da crença na liberdade ou livre-arbitrio. Mesmo que a ciência fosse capaz de demonstrar que somos completamente determinados por leis físicas desconhecidas, e que portanto não somos livres, ainda assim o nosso caráter fundamentalmente existencial exigiria a liberdade enquanto condição fundamental. Seria impossível viver sem acreditar na possibilidade da escolha, e impossível construir uma ética humana sem o fundamento da responsabilidade.

Como eu dizia, o impulso para acreditar em Deus é mais forte que a simples lógica, e vem como que acoplado ao meu mais alto pensamento, o pensamento do universal – Absoluto, Infinito, Totalidade -; e não só ao meu mais alto pensamento, como ao meu mais alto sentimento (na verdade ambos se completam, o segundo oferecendo algum conteúdo experiencial ao primeiro, que é todo forma, esquema, abstração concetual). A este último posso chamar de sentimento do Sublime ou do Belo. Se é verdade, como acredito, que a realização do que somos deve muito não apenas ao que somos capazes de pensar, mas também ao que somos capazes de sentir, não posso por conseguinte negar Deus sem me negar a mim próprio. Por este ponto de vista, prefiro viver em contradição lógica – que é apenas paradoxo e reside apenas na mente – do que em contradição existencial – que me implica todo. Antes em contradição lógica do que em contradição comigo.

Embora, tal como antes disse, não possa justificar logicamente a minha conclusão de que Deus existe a partir da premissa de que o Absoluto é pensável como ideia, posso pelo menos justificar racionalmente o modo como chego a esta ideia, e a outras similares como Totalidade, Ser, Unidade ou Existência Primeira. Posso afirmar, por via de um exercício válido de abstração ou de regressão até ao infinito, que se existem seres particulares tem de existir um Ser Geral, se existe a multiplicidade tem de existir a Unidade, se existe uma cadeia de causas e efeitos têm de existir uma Causa Primeira, por natureza não causada, ou causada exclusivamente por si própria. Como disse, pensar isto é perfeitamente aceitável como esquema, ainda que não possamos conceber a natureza metafísica de tais realidades, se de facto existem. Posso, deste modo, afirmar que o multiverso das existências particulares (nas quais estou incluído) se reduz a um Universo, ou seja, uma Unidade que é uma Existência Universal, que não apenas engloba todas as existências particulares, como as causa e subjaz. Este é o maior – ou pelo menos o mais abrangente – conceito de existência que posso conceber, embora não possa experimentar a sua natureza, se é que a tem – pelo menos não com os meus sentidos normais. Só há uma existência que posso experimentar, não apenas como vago conceito, mas como vida; não apenas como objeto de pensamento, mas como subjetividade (de subjetum = sujeito) – a minha própria existência. Posso aceder ao meu próprio absoluto, e não apenas pensá-lo, exprimindo-se na minha vida como totalidade existencial cujos focos irredutíveis são o “meu eu” e a “minha circunstância”, em torno dos quais orbitam todo o meu mundo e existência pessoais.

O que quero dizer é que, antes de mais, e acima de tudo, cada um de nós é uma existência que busca cumprir-se no máximo das suas potencialidades, atingir o seu fim. Na base tudo aquilo que podemos humanamente pensar ou sentir, de toda a nossa cultura, de toda a nossa moral, de todos os nossos projetos pessoais, de todos os nossos desejos e aspirações mais banais, está um a priori que é uma pulsão inexorável para ser. Não para ser animal ou objeto, mas para ser pessoa. Tanto quanto sabemos, não há forma de ser mais alta (e sublinho o “tanto quanto sabemos”). E embora ser pessoa seja a nossa aspiração mais elevada, a nossa verdadeira e mais profunda vocação, não lhe conhecemos nem a forma nem o conteúdo exatos. Para que uma pedra ou um gato se “realizem” não é preciso muito. Os limites da sua realização estão bem definidos e determinados à partida. Por outro lado, os limites da pessoa são desconhecidos. O ser humano, enquanto existência que busca cumprir-se, nunca sabe realmente quando a sua luta chegou ao fim, quando atingiu a plenitude do seu ser. Tanto quanto sabemos, podíamos viver mil anos e não ultrapassarmos a condição de existências insatisfeitas, pessoas por cumprir. A questão é esta: será que as coisas poderiam passar-se de outra forma para um ser cujo mais alto pensamento/ideal é o de Deus, o mesmo é dizer, o de Infinito, o de Perfeição existencial? É como se os limites da nossa realização pessoal não estivessem contidos em nós, na nossa condição biológica ou cultural, mas fora de nós. Dito de outro modo, como se só nos pudéssemos realizar completamente fora de nós, isto é, no transcendente – em Deus. Para usar uma imagem, é como se a nossa existência particular fosse um rio que corresse para Deus, desaguando em Deus. Neste sentido, a demanda da personalidade para se cumprir implica necessariamente uma abertura da personalidade particular para, em obediência ao seu mais alto pensamento e à sua mais alta intuição, ir ao encontro dos seus limites, que se coincidem com os limites da Personalidade Ilimitada que lhe coexiste, sendo que esta última contém aquela completamente. É como se na condição humana existisse uma contradição interna que só no Infinito pode ser superada, do mesmo modo que só no Infinito duas rectas paralelas podem esperar encontrar-se alguma vez. E a contradição é possivelmente esta: só no ilimitado (em Deus) a existência da pessoa pode encontrar os seus limites (i.e. cumprir-se plenamente como Pessoa), sendo que o ilimitado, por definição, não tem limites.

Para uma existência cuja essência (i.e., ponto de partida e destino) é ser pessoa, conceber a ideia de Existência Perfeita, de Infinito, de Absoluto (tudo variações do mesmo pensamento), não apenas tem enorme apelo, como ela não pode ser senão concebida como o ideal ético de perfeição ao qual toda existência humana deve aspirar. É evidente que para a maioria a realização deste ideal não cabe na exiguidade temporal de uma vida humana. A origem da ideia da “vida do além” talvez esteja precisamente aqui, na frustração acumulada de gerações e gerações de existências pessoais que falharam em cumprir a promessa de infinito tragicamente anunciada na sua consciência. A promessa de Deus que se renova a cada nova existência que emerge, uma nova aliança a cada novo homem. Seja algures num paraíso celeste, ou no culminar de um ciclo de muitas existências, a existência que busca há-de encontrar os limites da sua perfeição pessoal, de acordo com a promessa do seu mais alto pensamento e sentimento.

Pois, não é demais repetir, e todos temos essa experiência – os limites da pessoa são desconhecidos, situando-se muito para além da mera perfeição animal ou biológica, que com efeito rapidamente se atinge sem grande esforço. Mas, no homem, é esse “acréscimo”, esse “mais-qualquer-coisa” a que chamamos de “espírito” ou “personalidade” que faz toda a diferença, e que o empenha uma vida inteira numa busca por uma outra espécie de realização que está muito para além dos limites da sua biologia.

Heidegger pretendia definir-nos como “seres para a morte”; eu creio que é mais apropriado definir-nos como “seres para Deus”. O que nos “mata” na morte é a hipótese demasiado assustadora de que não haja tempo suficiente para cumprirmos a promessa de Infinito contida na nossa consciência, e que seja aniquilada em nós, demasiado cedo, uma força de vida que, por ter os seus limites em Deus, jamais deve morrer, ou pelo menos não antes de cumprir aquilo que nasceu para ser – uma perfeição chamada Pessoa, a divindade em nós, que é ao mesmo tempo o melhor que a nossa humanidade pode dar, em obediência ao que de mais alto pode pensar e sentir.  

Em conclusão, não sei se é ou não lógico acreditar em Deus. O que sei é que enquanto pessoa que sou, obediente ao apelo da minha vocação mais profunda para me concretizar no máximo da minha personalidade, não posso deixar de estar aberto e disponível para ir ao encontro do que me transcende, espaço ilimitado onde se situa a chave da minha realização, onde repousam as fronteiras do meu ser, impelido apenas pelas possibilidades que posso apenas vagamente entrever através do que posso pensar e sentir de mais elevado – o Absoluto que infinitamente me ultrapassa, e o Belo/Sublime que infinitamente me comove. 

quinta-feira, janeiro 22, 2015

Considerações em torno da natureza última da realidade







Palavras/Expressões-chave: Ser, "Coisa em si", Perceção, Realidade última, Consciência, Absoluto, Presença. 


I

Qual a natureza última da realidade? É inevitável que procuremos responder a esta questão a partir das nossas próprias ideias e referências concetuais. Mas, como pensar algo que, por natureza, se situa para além de tudo o que conhecemos, e até daquilo que podemos conhecer? O que quer que seja essa realidade fundamental, basilar, que se encontra no núcleo cósmico da matéria e do ser, que os físicos designam por “energia” – sem que saibam efetivamente do que se trata, de onde vem e para onde vai –, é possível que se situe para sempre fora do alcance do nosso conhecimento, pois só conhecemos o que podemos compreender, e só compreendemos aquilo que podemos integrar e relacionar no contexto de uma teoria, de um todo sistemático e coerente. Só podemos racionalmente compreender aquilo que podemos definir, isto é, atribuir qualidades e predicados, inserir em categorias.

Ora, essa realidade última que procuramos não pode ser definida relativamente a nada; nenhum conceito ou categoria mais abrangente poderá contê-la, pois ela própria, pela sua natureza fundamental, é a mais abrangente das categorias: tudo é energia; mas o que é a energia? Tudo é ser; mas o que é o ser?

O Ser, enquanto conceito mais abrangente, não é definível senão pelo próprio Ser. Não há conceito ou predicado mais abrangente que possa dizer o Ser, senão o do próprio Ser – o Ser é, e é tudo.

Para pensar a realidade última somos tentados a “sair para o exterior” dos nossos conceitos, a subirmos de nível reflexivo para nos libertarmos dos nossos preconceitos habituais, tendo em vista uma “purificação” da razão que nos torne mais abertos à compreensão de um realidade completamente nova, sem que os nossos (pré)conceitos, conjeturas e categorias habituais nos ceguem a essa visão. Em nome de uma maior objetividade, é preciso que sejamos capazes de distanciação, que nos coloquemos num ponto de vista exterior àquilo que procuramos conhecer. Mas será que a realidade última, que é “última”, admite uma plano exterior a si própria, isto é, admite ser recolocada num contexto mais abrangente que ela própria?

Ora, se nós próprios, de corpo, mente e consciência estamos irremediavelmente mergulhados na realidade última que procuramos compreender, a que título julgamos poder colocar-nos num plano exterior, separado dela? Em que medida a abstração racional permitirá o conhecimento de qualquer coisa do qual não podemos realmente abstrair-nos, pois está presente em tudo o que somos, inclusive na matéria da nossa consciência? Tal conhecimento, se fosse possível, seria sempre incompleto, baço.

Kant defende que certas realidades últimas, como sejam aquelas das quais intuímos uma unidade fundamental, mas que estão para sempre além da nossa experiência possível (Deus, Mundo, Alma), jamais podem ser conhecidas fenoménicamente, embora possam, no máximo, ser pensadas. Esta capacidade de pensar a unidade e a totalidade denota uma profunda necessidade da razão em buscar permanentemente a síntese, a unidade do conhecimento, no sentido de conferir progressivamente maior sentido e coerência ao real. Este - o real - está sempre sob interrogação, como um Todo. A questão da realidade última será, assim, a questão de todas as questões, pois não é apenas uma dada realidade particular que está em questão, mas antes a realidade cuja natureza confere sentido à totalidade do real.

II

A razão e a experiência têm limites, e quanto mais descemos aos abismos da matéria, mergulhando nos fenómenos quânticos e suas estranhas leis, mais contraintuitivo e menos lógico nos parece o comportamento da matéria a um nível fundamental, como se tratasse de uma dimensão completamente díspar. 

Dada a configuração da nossa razão, a sua dependência de princípios/regras lógicas e categorias como espaço, tempo e localidade, é possível que o conhecimento científico, isto é, teórico e estritamente racional da realidade última, enquanto realidade metafísica, nos esteja para sempre vedado. É mesmo possível que qualquer tipo de conhecimento fenomenológico baseado numa dicotomia tradicional sujeito-objeto, em que cada um se situa de forma clara e bem delimitada fora de esfera um do outro, e o sujeito num posição de aparente neutralidade epistemológica, também não seja aplicável aqui. Se for verdade que a realidade é monista, isto é, é constituída exclusivamente por uma e uma só substância, e se nós, em corpo, mente e consciência, somos feitos dessa mesma substância fundamental, então essa substância fundamental, enquanto “objeto” do nosso conhecimento, não pode estar absolutamente separada do “sujeito” do conhecimento, que somos nós.

Em resumo, o conhecimento da realidade última a partir do exterior, com base num sujeito que conhece e num objeto que é conhecido, em que o sujeito é ativo e capaz de com-preender o objeto (isto é, possui-lo, contê-lo num conceito, numa ideia ou categoria), é inviável. Pois, no caso da realidade última, não só o sujeito não está separado do objeto, como é o próprio objeto que “contém” o sujeito, e não o inverso. Não é possível possuir, cognitivamente falando (i.e. apreender numa ideia, perceção ou conceito bem definido) algo que, antes de mais, nos possui, porque é anterior e constitutivo de tudo, inclusive do próprio ato de conhecer.
           
III

Um conhecimento baseado em ideias e conceitos é sempre relativo, mediado por representações. Isto significa que se o conhecimento da realidade última for mediado por representações (conceitos, fórmulas, etc.), então não poderemos de facto conhecê-la senão através de uma muito fraca, baça e parcelar aproximação, porquanto nenhuma dessas representações poderá realmente ser fiel, porque relativa, a uma realidade que é absoluta. Dito de outro modo, não podemos obter um conhecimento total da realidade se nos mantivermos irredutivelmente imersos no nosso ponto de vista relativo.

É claro que falamos sempre a partir do pressuposto aparentemente inquestionado de que existe um “exterior” às nossas perceções, e, no limite, uma realidade exterior última, “metafísica”, que abrange e pervade todos os fenómenos. Não a conhecemos nem temos acesso imediato a ela através da experiência, mas “intuimo-la”, isto é, algo nos sugere que o universo fragmentário dos fenómenos sensoriais a que chamamos “mundo”, não se sustenta por si mesmo, mas remete, em última análise, e necessariamente, para um fundamento, que é também uno e absoluto. Intuímos que, de certo modo, tudo se encontra relacionado a um nível fundamental, mesmo os fenómenos mais dispersos e diversos. 

Mesmo em nós, seres biológicos e conscientes, intuímos que existe uma unidade fundamental que nos torna superiores à soma das nossas partes; uma unidade metafísica radicada na base do “eu”, o fundamento da sua irredutibilidade e continuidade, da sua persistência existencial; o centro em torno do qual se constrói a nossa identidade mas que, tal como a “unidade do mundo”, igualmente nos escapa na sua natureza mais profunda, se a tem.

Não sabemos se essa unidade metafísica subjacente aos fenómenos é real. Pode ser que não passe de algo que a nossa razão, por natureza e necessidade, impõe aos fenómenos no sentido de lhes conferir unidade, coerência e inteligibilidade. Quem sabe se não se trata de uma projeção da unidade do “eu” sobre o mundo, como se fossemos naturalmente levados a antropomorfizar ou “pessoalizar” um universo fundamentalmente impessoal e fragmentário. Daí que sejamos frequentemente levados a “reduzir” o fragmentário ao unitário, por exemplo através de leis físicas ou fórmulas matemáticas simples. Daí que sejamos levados a formular princípios metafísicos unitários como Deus, Brahman, Logos ou Energia, reduzindo o real a um só princípio que não só o sustenta como lhe confere inteligibilidade, ordem, continuidade e consistência ontológica. 

Talvez seja tudo uma ilusão, ou talvez não. Imaginemos o seguinte caso hipotético: nem eu nem o leitor alguma vez vimos um cérebro. Ouvimos falar dele, mas desconhecemos por completo a sua configuração, e também a sua função. Um dia entramos num laboratório e vemos um pela primeira vez, mergulhado num frasco em formol. Para nós, aquela “coisa” que vemos em nada é diferente de uma mesa, uma cadeira e até de um simples computador. Não passa disso mesmo: uma coisa, sem interioridade, apenas exterioridade. Um objeto como qualquer outro. Concordamos, porém, que estaríamos a cometer a maior injustiça se negássemos por completo que aquela “coisa” que se chama “cérebro” um dia albergou, de um modo misterioso, uma consciência pessoal, uma interioridade subjetiva, um “qualia”. Alguma vez suspeitaríamos se tal não nos fosse dito? Claro que não; não lhe atribuiríamos mais “metafísica” do que a uma pedra.

Não estaremos a cometer uma injustiça semelhante ao negar à própria natureza do real a sua “metafísica”, isto é, a sua realidade última, uma espécie de interioridade, atribuindo-lhe apenas exterioridade, funcionalidade, mecânica? A realidade da consciência, da interioridade subjetiva, coloca-nos perante um facto inegável: o universo admite o metafísico; isto é, admite que a matéria na sua face exterior, objetal, seja perpassada medularmente por uma subjetividade, isto é, uma consciência capaz de “ser para si” de forma irredutível e intransmissível. A não ser que sejamos paladinos de um ceticismo extremo relativamente à existência das outras mentes, temos de admitir que cada um de nós é uma prova viva – em particular cada um de nós, para si próprio, na experiência irredutível da sua interioridade subjetiva – da realidade metafísica da consciência, cuja existência e unidade está muito para além do funcionamento orgânico fragmentário do nosso cérebro, essa “coisa” no meio de tantas outras “coisas” no mundo.

Ao analisar o mundo exclusivamente do ponto de vista do seu funcionamento e mecânica, corremos precisamente o risco de ficar aquém da sua essência, roçando apenas a sua face exterior, a face que se entrega à mensurabilidade e à explicação científica. Analogamente, se nunca tivéssemos visto um cérebro e o analisássemos, mesmo que cientificamente, poderíamos talvez concluir que se trata de uma extraordinária máquina biológica de processamento de informação, mas alguma vez chegaríamos a compreender que “ali” algures emergiu uma consciência viva, uma identidade pessoal, uma interioridade mental, intelectual, emocional, moral?
           
IV

A experiência subjetiva da “minha” identidade, do meu “Eu”, sugere-me a existência radicada em mim de um fundamento, uma realidade última que sustenta a continuidade, consistência e permanência desse “Eu”. É a experiência constante, existencial, deste “Eu” que me leva a supor a existência de um alicerce metafísico para a “mesmidade” do meu ser. Se podemos conhecê-lo? Hume e Kant diriam que não, pois não podemos objetivamente conhecer o que ultrapassa os limites da nossa experiência. Podemos experimentar a continuidade, a “mesmidade”, mas não podemos experimentar a “alma”, o “ser”, metafisicamente falando (ainda que em Kant possamos pelo menos pensá-lo).

Do mesmo modo, no mundo ao alcance dos fenómenos encontramos mil e uma razões para supor uma continuidade e permanência semelhantes: não é comum o chão fugir-nos debaixo dos nossos pés, a não ser em circunstâncias muito excecionais e relativamente previsíveis; se vou trabalhar de manhã tenho a expetativa (como diria Popper) de que à noite, quando chegar do trabalho, a minha casa ainda se encontrará no mesmo sítio, bem como os móveis da minha sala; se coloco a água ao lume, tenho a expetativa de que, dentro de alguns minutos, a água irá ferver. No mundo “real”, criamos expetativas com base na imagem ordenada e racional que temos dele; quando alguma dessas expetativas sai gorada, surge um problema, o que de certo não acontece, por exemplo, no mundo onírico.

Esta continuidade e regularidade tantas vezes experimentada, em mim e no mundo, é reforçada pelo modo como a natureza – pelo menos a nível macro – obedece a determinadas leis, tornando-se previsível até certo ponto, mas não totalmente. As leis físicas, biológicas, químicas, etc. são a mais manifesta expressão dessa regularidade. Mas, de onde vêm estas leis? Qual o seu fundamento? Serão cegas ou terão uma finalidade, isto é, serão teleológicas? Porquê estas e não outras? Todas estas questões são diferentes faces da questão principal – a da natureza última da realidade.

Valerá também a pena dizer o seguinte: as leis físicas não são a realidade última; apenas a manifestam. Leis “macro” como a da gravidade e decorrentes dela, só existem na medida em que a matéria se organizou e complexificou previamente até a força gravitacional pudesse manifestar-se e influenciar corpos físicos de massa suficiente. Se nos colocarmos ao nível dos átomos deixa de fazer sentido falar em leis da gravitação, e temos de começar a falar em leis derivadas da relação entre “força nuclear forte” e “força nuclear fraca”, que mantêm as partículas subatómicas unidas. Se nos colocarmos ao nível dos constituintes atómicos, como protões e electrões, e começarmos a tentar analisar isoladamente as suas naturezas e comportamentos, deparamo-nos com o domínio da incerteza e da probabilidade, e ao invés de leis e regularidades encontramos anomalias e aspetos inusitados, como sejam a possibilidade de um electrão se poder comportar simultaneamente como onda e partícula, dependendo de estar ou não a ser “observado”; ou, se projetado (como na famosa experiência do duplo orifício) poder, em teoria, percorrer ao mesmo tempo vários percursos possíveis (várias “histórias”), ou até a possibilidade de dois electrões projetados em direções opostas se influenciarem de forma recíproca e instantânea, mesmo à distância de milhões de quilómetros no espaço (quantum entanglement).

Significa, portanto, que a nível “micro” as leis divergem, tornam-se mais fundamentais, como que se “libertam” do determinismo macro (já para não dizer que estão na sua base). A emergência de novas leis naturais decorre da emergência de novas realidades, decorrentes da complexificação da matéria; por outro lado, a própria organização e complexificação da matéria é ela própria regida por leis. Uma molécula de água emerge da associação entre átomos de oxigénio e hidrogénio, segundo as leis físico-químicas que regem essa associação; mas ao emergir enquanto molécula de água tornou-se mais do que a simples soma das suas partes, e já pode por sua vez relacionar-se com outras moléculas de água de modo a formar um composto – a própria água, no estado sólido, líquido ou gasoso – capaz de, por exemplo, ser afetado e afetar campos gravitacionais, conduzir electricidade, absorver e despender calor (e deste modo entrar no jogo das leis da termodinâmica, leis “macro” por excelência), etc.

A nível “macro”, por conseguinte, o universo torna-se mais previsível, mas essa previsibilidade assenta, fundamentalmente, na imprevisibilidade e no caos aparente. Escapam-nos as leis “micro”, quanto mais nos aventuramos nos abismos do ser. As leis determinam, isto é, são causa eficiente e formal dos fenómenos; conduzem-nos numa dada direção, com vista a uma dada finalidade (veja-se, por ex., o modo como as leis da genética permitem que uma semente se torne numa flor, e uma flor num fruto). A lei causa o fenómeno, mas o fenómeno, ao que parece, também causa a lei, ou pelo menos cria as condições para que a lei emirja.

No limite, se nos dedicarmos a um exercício tipicamente filosófico de regressão infinita, chegaremos ao âmbito da realidade última onde não existe anterioridade formal ou legal; isto é, onde toda a lei tem o seu princípio, bem como todo o fenómeno; pois, neste domínio, Lei e Fenómeno são uma e a mesma coisa. A Lei é a Realidade, a Realidade é a Lei. E como a realidade última não é determinada por nada, senão por ela própria, então ela não é apenas o lugar onde a toda a lei começa, mas também a própria lei; não só é livre de criar e de se criar, como constitui a própria liberdade em estado puro. 

Muito naturalmente, e quem sabe senão por um vício da razão, desembocamos na ideia aristotélica de causa sui, a “causa primeira” porque “não causada”, substância ou motor imóvel que causa tudo o resto, mas que não é causada por nada, senão por si própria. Não falo, porém, numa causa em sentido temporal-sequencial, do tipo da primeira peça do dominó que, uma vez tombada, faz tombar sequencialmente as peças seguintes, com uma origem e uma finalidade bem delimitados no tempo e no espaço.

Dito de outra forma, não me refiro a uma causa que tem lugar de uma vez para sempre, como num momento criacional, que depois se retira para dar lugar a uma sequência causal determinada, teleológica. Refiro-me antes a uma “causa primeira” bem enraizada no aqui-e-agora e em cada ente, que pervade tanto essências como aparências (o mesmo é dizer, pervade as coisas na sua objetividade, bem como o pensamento que as pensa por representações, e a consciência que permite a compreensão pela subjetividade). Isto é, permeia tudo aquilo que, de algum modo, é ou possui ser (uma aparência, que é uma ideia, também possui um ser, uma “qualidade” que permite a sua experiência subjetiva enquanto tal).

Refiro-me a um fundamento que não se limita a “sustentar”, como um alicerce estático, uma camada superficial de realidade substantivamente diferente, mas que, ao criar continuamente a própria realidade, a cada momento a torna existente e presente, num fluxo de contínua criação.

De notar que atualmente são os próprios físicos a admitir que é incorreto falar de um “nada” ou “vazio absoluto”, pois a todo o momento há partículas fundamentais, como quarks, a “aparecer” e “desaparecer” da realidade, vindas do nada para logo retornarem ao nada, como se a matéria-prima do real estivesse a todo o momento a ser produzida e destruída, num fervilhar ininterrupto.
  
V

Mas todas estas considerações em torno da causa primeira não são senão formalismos, derivações lógicas, exterioridades que não nos levam a um conhecimento concreto da natureza última da realidade. Por um lado, o facto de podermos deduzir, por regressão infinita, a existência de um fundamento, seja ele qual for, não significa que esse fundamento seja real. O mesmo se aplica à conclusão da existência de uma “causa não causada”, ou de uma realidade absoluta, não relativa. A nossa razão encaminha-nos facilmente para tais conclusões, por natureza e vocação, mas tais conclusões não podem ser senão meramente reguladoras e esquemáticas, e talvez digam mais acerca do nosso modo de pensar do que da realidade em si mesma.

Na verdade, o conhecimento que buscamos acerca da realidade última não pretende ser meramente exterior, esquemático e conceptual. A unidade interessa-nos; a ideia de absoluto inquieta-nos. Pressentimos que talvez haja alguma verdade nestes grandes conceitos e esquemas às quais nos conduz a razão, mas há um limite que se nos impõe e impede-nos de aceder aos “conteúdos” desses esquemas, de modo a que pudéssemos verificá-los ou prová-los experimental ou observacionalmente. Reconhecemos a incompletude desse conhecimento, e talvez por isso é que estejamos sempre, uma e outra vez, ao longo da história do pensamento, a retornar ao problema do ser, mesmo depois de declarada a morte de Deus e da metafísica; mesmo depois do positivismo, do neo-positivismo, do cientismo, e outros ismos que reduzem a realidade à matéria observável.

O que realmente pretendemos com a questão acerca da natureza ou essência do real, não é apenas de caráter epistemológico, mas também ético-existencial. Não queremos compreender a realidade última apenas para “possuir” um determinado conhecimento explicativo que depois possamos usar a nosso proveito, mas também não o fazemos apenas por diletantismo. Suspeitamos que se pudéssemos desvendar a natureza íntima do real conquistaríamos a chave para o Sentido, não apenas do universo como um todo, mas também de nós próprios, seres do universo. Mais do que formalismos e esquemas intelectuais, queremos conteúdos existenciais. E atenção que esta busca não é exclusivo apanágio dos muitas vezes pejorativamente apelidados de “místicos”, mas de todos aqueles que se dedicam ao pensamento e à ciência: veja-se, por exemplo, como os físicos atuais se debatem por uma “teoria de tudo”, uma simples fórmula capaz de explicar toda a realidade, uma chave matemática para todos os fenómenos do real, capaz não só de explicar como de prever…

O esforço de redução/simplificação é sempre um esforço esquemático da razão, seja produzindo uma conceção metafísica de Ser ou uma fórmula matemática. É sempre a razão procurando apropriar-se da natureza dos fenómenos, sem todavia ser capaz de a ela aceder senão de forma muito superficial e redutora. A razão, por natureza, busca a Forma, mas não se pode confundi-la com conteúdo substantivo. A razão não tem qualquer privilégio epistemológico de acesso às “essências”, como várias gerações de racionalistas defendiam, seja através de ideias inatas ou dos princípios lógico-matemáticos. Não se chega à verdade por via exclusivamente intelectual, senão por aproximação teórica através da conjetura, da tentativa e do erro.

VI

E se, ao invés de conceitos, abstração e dedução racional existirem outras formas mais “intuitivas” de aceder à essência e unidade metafísica do real, à verdade em sentido absoluto? Dito de outro modo: poderá a realidade última, mais do que ser pensada como teoria, ser realmente existida, isto é, experienciada subjetivamente na sua absoluta objetividade através de uma experiência subjetiva, pessoal? Poderá a consciência chegar onde a razão não chega, proporcionando-nos uma experiência de conhecimento significativa, pessoal e atual, possivelmente inefável e intransmissível (como qualquer experiência subjetiva “qualitativa”) da realidade última ou, chamemos-lhe, “coisa em si”?

Porque não, se a realidade que procuramos é essencial e constitutiva do nosso próprio ser – corpo, mente e consciência?

Será possível, por assim dizer, um autoconhecimento absoluto, no qual a consciência fosse capaz de se conhecer a si própria absolutamente, no seu ser mais profundo? Um conhecimento monadológico, que pressupõe uma identificação plena entre sujeito que conhece e objeto conhecido?

Haverá outra forma de conhecer plenamente uma realidade que se supõe absoluta, em si, senão a partir de dentro dessa mesma realidade, existindo-a como existimos a nossa própria vida e interioridade? Podemos fazer da realidade metafísica fundamental, mundo?

Não se trata da “dissolução do Eu” na unidade cósmica -  porque conhecimento ou tomada de consciência pressupõe sempre e necessariamente um sujeito - mas de alargamento da consciência do “Eu” até que, de algum modo, este se confunda e reconheça no seu verdadeiro eu, aquele que constitui o absoluto da realidade última que tudo pervade. Por este “Eu” metafísico, radicado na realidade, significo, antes de mais, uma Existência, e não um ser pessoal superlativo, um homem ou um deus no sentido tradicional. Essa Existência, por ser em si, e por não estar sustentada em mais nada senão em si própria, confere a si própria o seu ser, cria-se continuamente, e por isso É para si própria – precisamente como uma mónada.

Cada um de nós é também uma existência, absoluta nos seus próprios termos, porque irredutível a outrem, porque intransmissível, porque capaz de se mover a si própria dentro do seu próprio mundo, livremente, deslocando o seu centro sem nunca se perder dele, seja através do espaço e do tempo, seja através do intelecto. Cada um de nós é também “ser para si”, pelo modo como está assente em si próprio, na sua “mesmidade”, sem precisar de recorrer a algo exterior a si.

De certo modo, podemos pensar que entre a Existência (enquanto fundamento do real) e a existência (fundamento do nosso “Eu” particular)  não existe uma rutura, um abismo intransponível, mas antes uma diferença de grau. Conhecer a realidade última de um modo existencial significaria superar essa diferença, de modo que a pequena existência, absoluta do seu modo, fosse capaz de alargar o seu âmbito através de um alargamento da consciência, ao ponto de ser capaz de aceder à fonte da sua própria existência absoluta – a realidade última. Um alargamento e aprofundamento da consciência significa que ela se torna capaz de proporcionar experiências subjetivas de realidades cada vez mais profundas, tornando-se sensível, no limite, à sua própria natureza. 

Este alargamento e aprofundamento da nossa consciência não pode deixar o “Eu” subjetivo intocado e imóvel – a consciência que se expande é acompanhada por uma expansão do “Eu”, isto é, da própria subjetividade, até que esta, no limite, se identifique plenamente com o “Eu” da Existência absoluta que constitui o absoluto por excelência, bem enraizado na medula de todo o real. Neste movimento jamais existe dissolução mística do “Eu” – apenas aprofundamento e expansão. Um absoluto, como o próprio nome indica, não se pode dissolver. Apenas pode aprofundar e expandir-se em direção aos seus verdadeiros limites.

Talvez esteja na altura da filosofia ocidental se voltar seriamente para a antiga sabedoria milenar de certas religiões e místicas orientais, que há muito praticam modos não intelectuais de aceder à unidade metafísica do real, em vez de simplesmente as renegar como pseudo-ciências ou superstições sem sentido. Há muito que o poder da ascese, seja através de formas de oração, yoga, e outras, parece estar intimamente ligada à capacidade de expandir a consciência, de tal modo que essa expansão parece estar diretamente relacionada com um profundo e inefável sentimento de unidade cósmica. Esta parece ser a via para uma forma de conhecimento existencial, mais do que meramente intelectual ou conceptual. Um conhecimento que é sabedoria, isto é, que não é visado exclusivamente como posse, poder, informação, mas cuja busca diz respeito à realização do homem integral numa perspetiva holística, ou se quisermos, cósmica.

VII

Coloquemos a questão com honestidade: o que sobra daquela estante de livros à minha frente quando não está a ser observada? (Falo da estante apenas a título de exemplo). A estante que ali está, com as suas formas, os seus ângulos retos, cores e nuances de luz, confronta-me objetivamente. Não creio, como os realistas mais radicais, que a estante exista tal como é, isto é, tal como a vejo, quando ninguém está a observá-la, como totalidade objetal com qualidades. A perspetiva que dela tenho é resultado da minha perceção visual, mas também do modo como a minha mente completa as lacunas do que não posso ver, inserindo essa imagem parcial num contexto espaciotemporal, com dimensões e extensão, e também com um propósito e até uma história, um valor e um significado.

Também não sou idealista puro: não acredito que, o que quer que ali exista e que eu vejo como "estante”, deixe pura e simplesmente de existir, logo que deixo de o percecionar. O seu ser ou natureza não existem apenas quando as perceciono (o Esse est percipi), mas existem – suponho - por si, embora possam ser diametralmente diferentes do objeto que perceciono. O que sem dúvida sustento com o meu olhar e consciência não é o “ser” da estante, mas exclusivamente o seu ser para mim, o móvel enquanto ideia e fenómeno.

Acredito, sem dúvida, que algo resiste do ser da estante quando ninguém está a observá-la, o que faz de mim até certo ponto um realista. Ora, quando retirarmos de cena o ser para nós, o que sobrará? Só uma coisa pode sobrar: o ser para si.

Em que consiste este ser para si que resiste? Seja o que for, é algo que lhe confere consistência ontológica, ser, permitindo a sua continuidade e permanência, pelo que posso voltar a ver a estante logo que abro os olhos, e esperar que tal sempre aconteça. Não é a sua forma geométrica, não é a sua massa, não é nenhuma suposta qualidade primária ou secundária que subsiste. Todas as qualidades que vejo e analiso não são senão diferentes formas de ser para mim. 

Suponho, pelo contrário, que o que quer que resista tem de ser o mais simples possível, pois qualquer objeto que se dê à minha perspetiva é sempre composto de partes diferenciadas que posso distinguir, e o próprio objeto, enquanto tal, é ele próprio aquilo que é (i.e., enquanto ser para mim) na medida em que se distingue por individuação. Logo que deixo de percecioná-lo, é como se se abatessem todas as divisões e distinções, e o ser repousasse de novo sobre si próprio na simplicidade absoluta.

Mas essa simplicidade absoluta não é o reino do não-ser. É antes o ser no seu estado mais puro, elementar e absoluto. É o ser no seu estado permanente, sustentado em si próprio, porque capaz de ser para si, de tal modo que, para ser, não precisa de ser sustentado por nenhuma existência, visão ou perceção exterior. O ser-para-si sustenta-se pela sua própria existência e presença para si próprio.

Imagino, portanto, que quando deixamos de percecionar um qualquer objeto, é apenas a imagem dele que desaparece e o seu ser real que subsiste, a sua essência, que é a essência do real no seu todo – a realidade última. Esta essência não é já o objeto-estante nem nada tem que ver com ele, mas antes – imagino – um oceano de partículas infinitamente simples, tipo mónadas absolutas, que são para si próprias, na plena presença de si próprias, sustentando o seu próprio ser pela sua presença, quiçá através de uma autoconsciência ou autovisão plenas. Será, sem dúvida, o mais próximo que temos de Deus, ou de deuses (“Tudo está cheio de deuses”, escreveu Tales; estaria realmente certo?).
             
VIII

Falar em “ser para si” ou “coisa em si”, é pressupor a existência de uma realidade que se situa para além da experiência das nossas perceções. É um pressuposto arriscado, sobretudo se pensarmos como os empiristas céticos ou idealistas, segundo os quais todo o conhecimento que possamos ter do mundo é conhecimento de perceções e ideias, o que nos impede de “sair para exterior” para provarmos a nossa crença num “mundo em si”, exterior às nossas perceções.

Se pensarmos assim, colocamos um limite ao nosso conhecimento, sob o pressuposto de que existe uma realidade essencialmente incognoscível, o que, por conseguinte, e paradoxalmente, nos obrigaria por sua vez a provar a incognoscibilidade dessa mesma realidade, o que só poderia acontecer se pudéssemos conhecê-la. Mas se não podemos conhecê-la, então não podemos provar que é incognoscível, e por aqui entramos no famoso problema da autorefutabilidade do ceticismo radical.

De facto, saber que há limites inultrapassáveis implica que se conheçam esses limites, e o que está para além deles. Conhecer apenas um lado de uma fronteira não nos diz positivamente o porquê de ela não se poder atravessar. Podemos estar proibidos, mas isso não é o mesmo que saber.

Pode ser ainda que tais limites não sejam, em si, inultrapassáveis, mas antes que os limites residam nos nossos instrumentos cognitivos. Mesmo nesse caso, porém, só podemos estar certos de tais limites se estivermos também certos de que existem dimensões do real que os ultrapassam. Temos fortes razões para acreditar que existem átomos, e também espectros de luz e som que não podemos ver nem ouvir, e portanto admitimos, com base nessas crenças, que o alcance dos nossos sentidos é limitado.

De qualquer modo, admitimos que por vias indiretas podemos ter acesso a essas realidades e, por consequência, podemos superar parcialmente as nossas limitações naturais.

E com a ajuda dos instrumentos lógicos da nossa razão, conseguimos construir teorias e ideias explicativas coerentes de dimensões do real, normalmente inacessíveis ao senso comum.

É possível que nunca venhamos a ter a prova definitiva, positiva, das nossas hipóteses e teorias mais elaboradas, pelo menos através da via estritamente científica (isto é, racional, observacional e experimental). Os instrumentos, princípios e regras lógicas do nosso pensamento são apenas isso mesmo - instrumentos, meros “andaimes” do pensamento; não descrevem a realidade em si, e muitos menos são essa realidade. São reguladores estruturantes do pensamento, necessários à construção de qualquer edifício teórico, não “reflexo puro” de “substâncias” ou “princípios metafísicos”.

A “coisa em si” consiste, portanto, naquilo cuja existência e natureza não podem ser conhecidas nem provadas. É esse “sempre mais além” cuja existência intuímos, e que enveredamos todos os nossos esforços cognitivos para desocultar, embora o fim nunca seja o fim, e a verdade total sempre nos escape.

Na verdade, não temos senão experiência imediata da qualidade subjetiva das nossas perceções, sensações e ideias, no seio da nossa irredutível interioridade. Cada uma destas qualidades – sejam sensações, pensamentos ou sentimentos – é um “em si” que eu posso conhecer, objetiva e absolutamente. Não falo dos objetos exteriores, mas da qualidade subjetiva das representações e imagens da minha mente – a qualidade intensa, viva, incontornável de uma perceção, cujo único ser consiste, na verdade, em ser para mim (ao contrário de qualquer objeto exterior).

A qualidade de uma perceção visual ou táctil (p.ex. a rugosidade ou lisura da mesa onde escrevo), tem um ser próprio que é para mim diretamente acessível e é, na verdade, o seu único ser (o Esse est percipi aplica-se às ideias e perceções, mas não aos objetos exteriores, como anteriormente já vimos). Diria, com rigor, que só no seio de uma subjetividade é possível a absoluta subjetividade.

O mundo dos fenómenos situa-se, por assim dizer, entre duas metafísicas: uma à qual temos acesso direto através da consciência, no reduto da nossa interioridade subjetiva; e a outra, que é aquela que se situa no exterior da nossa interioridade, para além e na base de todo o fenómeno. A primeira é a dos objetos/essências mentais, situadas no domínio da nossa interioridade subjetiva; a segunda a das essências metafísicas, situadas para além da esfera da nossa consciência.

Talvez não exista, como já vimos, uma divisão absoluta entre ambas as metafísicas. O mundo não chega a ser uma barreira: é apenas um espaço que se abre à nossa existência, enquanto seres biológicos muito peculiares, desde que começamos a existir, para que possamos efetivamente existir. Não nos limitamos a existir no mundo, porque o mundo, existencialmente falando, não é um lugar. Existimo-lo, porque a nossa natureza é existir, e através das nossas virtualidades biológicas e da nossa liberdade; o que quer que lá fora haja de certa forma se entrega, e por vezes se molda, não apenas ao que já somos, mas ao que voluntariamente desejamos ser. O mundo não está pronto, à espera do ser para existir. Mundo e existência são uma só realidade – não é apenas o homem que é ser-no-mundo, mas o mundo que é ser-no-homem.

Dizia eu: talvez não exista uma divisão absoluta entre as metafísicas. Desde que a consciência, e com ela a interioridade, se possam alargar e expandir, quem sabe se no limite não é possível ter experiência subjetiva, imediata, das essências do mundo, da “coisa em si”? Pudéssemos nós apreender a “coisa em si” como se fosse uma ideia, uma qualidade mental, e qualquer representação/mediação seria dispensável.

Peguemos em qualquer ideia, como a de “cavalo”, por exemplo. A perceção que temos da imagem mental “cavalo” é imediata. Possuímos uma experiência subjetiva, que é o mesmo que dizer, direta da ideia “cavalo”. Esta ideia é para nós um objeto mental, uma totalidade absolutamente presente à nossa consciência, pois a sua natureza consiste, integralmente, em ser-para-mim na experiência de uma qualidade subjetiva. A sua natureza de evento fisiológico ou neuronal não me interessa, não me diz respeito; pode ser causa da minha perceção, mas definitivamente não é a perceção, porque essa só existe ao ser percecionada. Só aí, no espaço de uma consciência, é que ela emerge como ideia, e só essa imagem me diz respeito, como qualidade que eu posso apreender.

Ora, supondo, como o fiz no início, que a realidade última, a “essência de tudo” que é Existência, reside em tudo o que tem ser, e sustenta todo o ser, então também a minha ideia de “cavalo” é constituída, na essência da sua qualidade de perceção, pela realidade última.

E supondo também que um conhecimento da realidade última tem de ser existencial, isto é, só se efetiva a partir de dentro do absoluto da existência primeira ou Existência, por via de uma expansão da consciência/subjetividade pessoal até aos limites da consciência/subjetividade absoluta.

Segue-se, portanto, que a imediaticidade do conhecimento da realidade última em muito se assemelha ao conhecimento imediato de uma ideia ou perceção. Isto é: presença absoluta de uma totalidade que consiste integralmente em ser-para-nós.

Mas, se uma ideia/perceção é já, em si mesma, presença absoluta, será possível que ela possua uma natureza ainda mais profunda, como seja a da realidade última que a constitui? Será possível à consciência conhecer-se sendo, de outra forma que não seja através de uma absoluta presença de si para si própria, na forma de uma experiência qualitativa de uma perceção ou imagem mental?

Respondo que a experiência da presença absoluta de um objeto mental à consciência, é já sintoma, em pequena escala, da imediaticidade decorrente de um situação em que uma certa realidade tem acesso imediato à sua natureza essencial – neste caso, falamos da consciência, que se experimenta a si própria na qualidade dos seus objetos.

Ao ter acesso imediato à sua natureza essencial, denunciada pelo modo absoluto como as ideias se apresentam perante a consciência, em total ser-para-nós, a consciência encontra-se, realmente, presente a si própria na sua natureza. A consciência revela-se, portanto, ser-para-si, condição de qualquer absoluto.
    
Diríamos, por conseguinte que a natureza da realidade última está já presente nessa qualidade que é experimentada subjetivamente e que consiste em absoluta presença, constitutiva de qualquer perceção ou ideia. Assim, conhecer objetivamente a natureza da realidade última, como existência absoluta, não seria mais do que expandir a consciência até que ela fosse capaz de se tornar absolutamente presente para si própria, na sua inteireza, explodindo com todas as formas – perceções, ideias, conceitos -, deixando apenas, intacta, a qualidade da pura presença.

quarta-feira, junho 25, 2014

"Se", de Rudyard Kipling

(Tradução minha do original "If"; ver original aqui

Se não perdes a cabeça quando todos à tua volta
Perderam as suas e te culpam por isso,
Se te manténs confiante quando todos duvidam de ti,
Mas reconheces o seu direito a duvidar;
Se és capaz de esperar sem desesperar,
Ou de nunca mentir, mesmo quando mentem sobre ti,
Ou de nunca odiar, mesmo quando és odiado,
E ainda assim não te revelas bom demais, nem presunçoso ao falar:

Se és capaz de sonhar sem te deixares subjugar pelos teus sonhos;
Se és capaz de pensar sem que o pensamento seja o teu único fim;
Se, quando confrontado com o Triunfo e a Desgraça,
Tratas estes impostores com igual desprezo;
Se suportas ver as verdades que uma vez pronunciaste 
Distorcidas por gente sem escrúpulos para servirem de armadilha aos tolos,
Ou se te deparas com a ruína de tudo aquilo por que lutaste,
E tens força para reconstruir tudo de novo com ferramentas gastas:

Se és capaz de arriscar todas as tuas conquistas passadas,
Numa única jogada de sorte,
E perder, e começar tudo do início
E jamais abrir a boca sobre a tua perda;
Se és capaz de dar o máximo do teu coração, nervos e tendões,
Mesmo depois de terem perdido toda a serventia,
E persistir quando já nada mais existe em ti
Senão essa Vontade que não cessa de lhes dizer: "Persistam!"

Se és capaz de te dirigir às multidões sem perderes integridade,
Ou caminhar lado a lado com Reis, sem perderes a simplicidade, 
Se não te deixas magoar, nem por inimigos nem por amigos muito amados;
Se todos os homens podem contar contigo, mas nenhum em demasia;
Se consegues encher cada minuto que passa, implacável,
Com sessenta segundos que valham uma vida inteira,
O mundo é teu e tudo o que nele há,
E, acima de tudo, serás um Homem, meu filho!

terça-feira, maio 27, 2014

Quais os nossos deveres para com as gerações futuras? - O "decrescimento" como proposta

Artigo proposto a concurso na edição 2013 do Concurso de Ensaio Filosófico da Sociedade Portuguesa de Filosofia (versão sem cortes e com nome acrescentado a posteriori)

Resumo: Este artigo começa por problematizar o pressuposto de que temos deveres para com as futuras gerações, antes de enunciar qualquer dever. Qual o fundamento ético desse dever? Um caminho possível é o do princípio de responsabilidade de Jonas, que institui como primeiro dever para com as gerações futuras, o dever de prudência. Este traduz-se “numa nova espécie de humildade” que reconhece a debilidade do poder de prever e ajuizar face ao poder de agir. Largos domínios tecnológicos – biotecnologia, da genética, etc. – estão abrangidos por este princípio pois influem diretamente na matriz da condição humana. Os riscos são tanto maiores quanto maior é o desconhecimento das consequências. Há todavia domínios cujas consequências para o ser humano estão cientificamente bem documentadas e decorrem da ação humana no planeta. Conhecemos não apenas as consequências, mas temos também o poder de agir. Falamos do impacto da ação humana no planeta, traduzida em consequências ecológicas graves que decorrem do sistema económico-político das chamadas “sociedades do crescimento”. Se nada for feito para diminuir a “pegada ecológica” da ação humana, o futuro do planeta ficará seriamente comprometido e com ele as futuras gerações. Neste contexto, é não só prudente como urgente agir. O crescimento pelo crescimento é pernicioso para as sociedades e para a biosfera como um todo. Assim, elegemos a proposta do “decrescimento sereno” como hipótese de trabalho económica e quadro ético-político para a mudança que urge implementar. A proposta tal como é sistematizada por Latouche (2012) consiste não apenas numa reestruturação do económico (menos consumo e predação de recursos, respeito pelos ritmos da natureza), mas sobretudo do político, com base num quadro ético que privilegia os valores da verdade, do sentido de justiça e da solidariedade, e atribui maior prioridade aos bens convivenciais, relacionais e espirituais do que ao bens materiais.

Palavras-chave: prudência, crescimento, decrescimento, economia, capitalismo, ecologia, política, obsolescência programada, consumo. 

quarta-feira, janeiro 15, 2014

Ensaio sobre a substância dos valores

Bosch, "O jardim das delícias"

Os valores não são entidades metafísicas independentes do sujeito valorativo e da esfera cultural. Não existem em nenhum plano metafísico, num mundo de idealidades ou formas puras. É no contexto de uma cultura, primeiro como significados, depois como símbolos, que os valores encontram o seu “ser” e substância. O mundo dos valores é a esfera onde residem, sincrónica e diacronicamente, todos os aspetos imateriais, simbólicos e semânticos de uma cultura; é nesta dimensão, coexistente à dimensão física espacio-temporal, que os sujeitos se movem e constroem as suas identidades socioculturais, logo morais. É nesta dimensão que os valores nascem, emergem e adquirem progressivamente densidade ontológica, como se construídos pela lenta sedimentação de camadas significantes. É nesta dimensão que os valores se tornam urgentes, incontornáveis, comunicáveis e até universais, e também a partir dela que aqueles influem na ação dos homens, logo, na história. A substância de um valor sedimenta-se lentamente, passo a passo, à medida que uma dada cultura, no seu fluxo auto-reprodutivo, vai oferecendo fundamento e significado a esse mesmo valor. Temos vários exemplos como o valor da dignidade humana, da liberdade ou qualquer outro, que têm a sua história própria e ainda se nos apresentam como inacabados, limitados, abstratos à sua maneira, carecendo de um trabalho semântico contínuo, de manutenção, de conceptualização permanente. Porque os valores são substâncias culturais, simbólicas e semânticas, não significa que se oponham à natureza humana, ou que lhe sejam completamente alheios, se entendermos que esta se manifesta, também, na e pela cultura. Tal como dissemos, a esfera axiológica coexiste a esfera física espacio-temporal, não se lhe opõem porque a segunda serve de substrato à primeira. No homem, a dimensão fisiológica serve de substrato à esfera axiológica, e é também legítimo pensar que a natureza ou condição humana, não sendo meramente fisiológica, se desdobra e exprime plenamente exclusivamente e necessariamente através da cultura, que mais não é do que uma atribuição humana de significados, uma reapropriação humana da natureza e do mundo que diz mais acerca do homem do que acerca desse mesmo mundo; se entendermos que a cultura não se resume apenas a uma forma de dominação do “animal humano”, mas ao modo pelo qual o humano plenamente se realiza, numa dialética sempre inacabada entre biologia e cultura.

Há por isso valores que emergem na aurora de uma dada cultura, para os quais há necessidade de encontrar todo um fundamento, um significado, um sentido, precisamente porque tais valores aparecem como urgentes à emancipação da condição humana (em resposta, por exemplo, a certos tipos de opressão). A opressão, nas suas várias formas, é sempre parasitária, tende a contaminar a substância dos valores, a inoculá-los com as suas ambiguidades, como um vírus, mantendo-lhes todavia a sua aparência benigna, emancipadora e virtuosa, transformando-os em cavalos de Tróia da opressão. Basta ver como o valores da verdade, da ordem, da honra, da bondade, da justiça, e até da liberdade, foram e são ainda frequentemente instrumentalizados pelos totalitarismos de toda a espécie, com rosto ou sem rosto, políticos, económicos ou financeiros. Quanto mais abstratos os valores, mais corrompíveis. Para evitar a corrupção dos valores, para lhes fazer a manutenção que merecem, não há outra via que não seja a cultura, que é feita de produção de significados novos, de interpretação de significados antigos, de criação e tradução, de exemplos bons, de práticas concretas de bem-agir que são sempre a forma mais eficaz de conferir substância vital aos valores, de os encarnar, dando-lhes uma face mais concreta, definida e permanente.

Os piores vícios da natureza humana exprimem-se também por via da cultura, e contribuem desse modo para a corrupção dos valores, seja produzindo novos, seja parasitando os antigos de face virtuosa. Há valores que se bastam a si próprios e a maioria das culturas consagraram como virtuosos, como o altruísmo, a lealdade ou a abnegação. Outros, como o egoísmo, só podem ser defendidos como virtuosos à luz de um utilitarismo: são-no na medida em que produzem um bem maior; são-no na medida em que abrem portas, segundo se diz, à concretização de valores virtuosos.

Entendemos como viciosos ou “negativos” todos os valores que favorecem de algum modo a opressão, e como virtuosos ou “positivos” todos o que favorecem emancipação do homem. É óbvio que o entendimento do que é “opressão” e “emancipação” humana é em si mesmo discutível, remetendo-nos para as profundidades da ética e da antropologia. Emancipação e opressão serão, em si mesmos, valores, igualmente passíveis de corrupção e carentes de manutenção permanente, através da cultura. Isto, todavia, não deve fazer-nos cair num relativismo sem solução, porque acreditamos que existem aspetos da condição humana que são, em princípio, universais, mas cujos contornos talvez ainda não sejam totalmente claros para nós. Estes talvez se exprimam e condensem em valores, positivos e negativos, revelando tendências mais consistentes que atravessam a história das civilizações e culturas humanas, que não se dissipam facilmente e tendem a emergir e reemergir logo que se tornam urgentes num dado período histórico. Estes podem surgir, na mesma cultura em diferentes períodos históricos, ou em culturas distintas, com faces e histórias diferentes, e certamente com distintos conteúdos experienciais. Os valores não são estáticos nem estão dados. O que resiste deles é a sua face virtuosa ou viciosa, que num dado período histórico emerge como urgente, apontando caminhos e respondendo a determinadas aspirações humanas que vão sempre no sentido da mudança, da emancipação, da liberdade, e não em sentido inverso. No início da uma nova era civilizacional - como no renascimento europeu, no pós-revolução francesa ou no pós-segunda guerra mundial - os indivíduos viram-se sempre confrontados com a necessidade de dar corpo às aspirações de emancipação mais profundas dos povos, de definir, assim sendo, a natureza do bem e o mal, fosse produzindo novos valores, fosse abrindo um processo de re-significação, limpeza e depuração de valores antigos cujo significado foi contaminado ou parasitado por forças perversas, mas cuja urgência para a civilização futura justificava esse esforço de reabilitação.

De certo modo, o que aqui dizemos é que os valores mais persistentes, enquanto “substâncias culturais” (chamemos-lhes assim), revelam importantes tendências da condição humana, boas ou más, virtuosas ou viciosas. São produto do enfrentamento, confrontamento, interpenetração da natureza humana – entendida aqui estritamente como produto da evolução biológica, estruturas genéticas definidoras e definitórias – com as condicionantes impostas e possibilidades abertas pelo mergulho num dado período histórico, espaço simultaneamente físico, espacio-temporal, simbólico e semântico. Espaço material e imaterial no qual a natureza humana se debate, joga e luta para encontrar um lugar, que na verdade não se “encontra” como se estivesse dado, mas se constrói; debate, jogo e luta que resulta em criação, em produção de cultura, em enriquecimento do património simbólico e semântico. Jogo sempre inacabado, verdadeiramente trágico, que consiste precisamente na nossa condição – a condição humana.  

Em suma, os valores são objetivos (logo, objetos), mas não são nem essências nem formas puras no sentido clássico. São significados passíveis de despoletar experiências significantes (encarnar valores como a bondade, lealdade, altruísmo traduz-se em ações concretas, mas também em satisfação e até em prazer estético visto que é visto como “belo” agir bem e heroicamente por um valor elevado a ideal…), e de serem comunicados através de símbolos, ou seja, de linguagem. Eles adquirem consistência ontológica à medida que o homem se esforça por construir o seu “ethos” próprio, a sua morada. Para este efeito, ele só pode fazê-lo através da cultura, que por sua vez exige memória, anamnese coletiva, capacidade para ir às raízes, interpretar e reformular criativamente as heranças da tradição. A cultura e, por inerência, os valores, não podem ser vistos como objetos estáticos que a crista da tradição conduz na sua onda, linearmente, do passado para o futuro, sem mais, sem retrocessos nem necessidade de memória, que as gerações do passado transmitem, intocadas e intocáveis, às gerações futuras. Quando se entende que as novas gerações não têm nada a acrescentar à substância dos valores, e que esta se encontra bem definida por autoridades a isso consagradas, detentoras derradeiras do seu significado e da sua verdade, é como se se procurasse conter o fluxo incessante e auto-reprodutivo da cultura, que a cada geração tem necessidade de se renovar, de se enriquecer de símbolos e experiências. Tal como um fluxo de um grande rio não pode ser travado, o fluxo da cultura também não. Querer atribuir definitivamente um significado unívoco, universal, extra-histórico a um dado valor ou conjunto de valores, é arrancá-los daquilo que lhes confere concretude e vitalidade histórica. É torná-los progressivamente desconhecidos e estranhos aos olhos e corações dos homens concretos e suas aspirações. É torná-los progressivamente instrumentos daquela opressão de que falamos já, que oculta por detrás da face virtuosa de valores como a liberdade, a justiça, o amor ou a verdade, uma agenda de dominação que os transforma, por fim, em pálidas sombras das melhores virtudes e mais altas aspirações humanas.

A cultura, tal como o nome indica, implica o cultivar incessante de significados, e portanto de virtudes e valores que uma dada civilização elege como estruturantes à sua própria existência e perenidade. Cada geração tem o direito e o dever de redefinir a sua existência histórica à luz das heranças que a cultura lhe outorgou, seja através da arte, da literatura, da ciência, da filosofia, dos saberes teóricos ou práticos. É talvez este o papel das chamadas humanidades, que na verdade deveriam congregar todos os saberes, práticas, artes e ciências que são fruto da atividade humana e contribuem para enriquecer a esfera semântica e simbólica da nossa cultura. Mas não: hoje as humanidades são sinónimo de “letras”, ou seja, literatura, línguas, e todas aquelas disciplinas que o cientismo da nossa época decidiu menorizar por falta de “exatidão” e “culto excessivo da subjetividade”. Hoje, uma vez mais, urge fazer um trabalho de re-significação que devolva às humanidades o seu crédito, à luz de um ideal de unidade da cultura. E isso é possível, porque, até ver, nenhuma autoridade ou cátedra tem o monopólio exclusivo de tais significados, como não tem de nenhuns.