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domingo, abril 01, 2012

A Construção da Cidade - Educação ao serviço do "Reino dos Fins"


Torre de Babel



(artigo escrito no âmbito da disciplina de EFDS, Mestrado em Ensino da Filosofia, FLUP)

Introdução

O objetivo deste trabalho é o de procurar compreender em que medida é possível educar o indivíduo no sentido de o preparar para uma experiência democrática, sem cair no erro da doutrinação ideológica, e se para este escopo a educação deve também ela ser democrática. A partir de uma visão russeliana de educação, importa compreender em que medida será possível conciliar o indivíduo com o cidadão, no sentido em que o primeiro está relacionado com uma perspetiva multidimensional do humano, e o segundo com uma perspetiva direcionada para a promoção de um determinado status quo, ou ordem social. Será possível conciliar uma visão até certo ponto conservadora de educação como promoção de uma determinada ordem social – ainda que democrática –, com a educação plena do indivíduo como pessoa? Constituirá o fim último de um sistema de educação ideal a derradeira fusão das duas dimensões? Procurar-se-á dar uma resposta plausível a esta questão. Ao mesmo tempo, em que medida a educação pode ser a via através da qual se atingirá um kantiano reino dos fins? Em que medida a escola como espaço de educação científica e de experiência valorativa pode contribuir para a construção de uma cidadania plena, através da qual promove o respeito pelo alteridade, pela diferença, pela irredutibilidade do outro, e uma efetiva capacidade de diálogo e de gestão da conflitualidade inerente às relações humanas? Sublinharemos a importância da lucidez, do aperfeiçoamento de competências racionais no uso crítico do pensamento, de uma razão liberta das malhas do preconceito que é sempre fator de divisão artificial, de fronteira, de opacidade nas relações entre os indivíduos candidatos a cidadãos, cuja origem se encontra muitas vezes na tradição, na cultura, na religião, no nacionalismo, no etnocentrismo, em suma, na história que cada indivíduo transporta em si mesmo como ser permeável ao meio em que se integra.

Neste sentido, pode a educação ser colocada num plano supracultural, numa espécie de visão privilegiada da totalidade, imparcial? Não será esta supraculturalidade antes um equívoco? É evidente que, na prossecução do objetivo de construir a cidade, de fundar o tal reino dos fins, a educação deve promover a compreensão e o respeito pela legalidade, não entendida aqui como respeito meramente formal por um código legal, pelos seus tramites numa perspetiva baseada no medo pela punição e na imposição, mas numa perspetiva de compreensão profunda de uma legalidade antes demais fundada em princípios de legitimidade, noutras palavras, de princípios éticos, que o futuro cidadão deve compreender no sentido de os tomar como seus, como se emanados da sua própria autonomia racional, nunca descartando o seu importante papel de legislador, de ativo intérprete na refundação sempre eterna de uma verdadeira legalidade democrática que se pretende verdadeiramente universal e cosmopolita.


Discurso, razão e comunicação

A experiência democrática é, antes de mais, uma experiência comunicacional. É, diríamos nós, a experiência comunicacional por excelência. Nenhum regime social e político radica de forma tão profunda na comunicação, atividade que se quer igualitária, proporcional, aberta e verdadeiramente livre. Só a democracia faz jus à etimologia da palavra comunicar, no sentido de pôr em comum. Um regime hierarquicamente rígido, constituído por classes superiores e inferiores, sem mobilidade social ou de mobilidade reduzida, não é verdadeiramente uma sociedade de comunicação. Só existe comunicação ou diálogo entre iguais, entre pares. Entre superiores e inferiores, monarcas e súbditos, existirá no máximo uma espécie de monólogo em que um ouve e o outro acata. Não é por acaso que a democracia assenta numa série de liberdades, sendo que aquelas que estão diretamente relacionadas com o ato de comunicar surgem como as mais relevantes, nomeadamente a liberdade de expressão, pensamento e imprensa.

Assim, a vivência democrática caracteriza-se pelo ruído, pelo barulho e pelo conflito das palavras. Basta assistir a cinco minutos de um qualquer debate parlamentar para ter noção desta realidade. O silêncio, a ausência de conflitualidade, a calma em demasia, a adulação e o excessivo respeito, não são necessariamente sintomas de uma vivência social e política saudável. Muito pelo contrário. São vivências marcadas pelo ressentimento, pelo medo e pela palavra sussurrada, segredada, subterrânea. Não raro, a supressão do conflito significa apenas o seu recalcamento, uma espécie de “atirar para debaixo do tapete” cujo único efeito será o de gerar descontentamentos clandestinos e secretos, em vez de os absorver na dinâmica do sistema e assim, evitar que se tornem verdadeiramente subversivos e até revolucionários. A palavra contida, seja entre amigos, seja na comunidade ou na sociedade, é sempre geradora de ressentimento, e provavelmente estará na raiz do próprio ódio. A razão é muito simples. O ato de falar, de expressar pensamentos, é algo que está na raiz da própria humanidade. O homem nada é sem o verbo, sem a palavra, e a sua liberdade de agir – que radica na sua dignidade – nada é sem a sua liberdade de dizer. Portanto, negar ao indivíduo a sua liberdade de dizer, de expressar o seu pensamento, é negar a inerência da sua dignidade e, em consequência, negar a sua humanidade. Porque a democracia é diálogo e comunicação, a liberdade de pensamento não se limita apenas à liberdade de pensar, ou seja, de engendrar algo mentalmente sem no entanto o verbalizar. Até hoje, tanto quanto sabemos, não é ainda possível sondar os pensamentos dos indivíduos, a não ser que o exprimam pela palavra. Aquilo que caracteriza o homem enquanto ser racional – e os gregos sabiam-no bem – é o pensamento feito discurso, o Logos. Diálogo será, desta forma, uma comunhão do logos, de pensamentos que não estão isolados mas que se abrem um ao outro através da ponte da palavra, e assim se beneficiam e enriquecem mutuamente.
Quanto a esta questão, escreve Kant em Paz Perpétua que

“A liberdade de pensar contrapõe-se, em primeiro lugar, à coação civil. Sem dúvida, há quem diga: a liberdade de falar ou escrever pode-nos ser tirada por um poder superior, mas não a liberdade de pensar. Mas quanto e com que correção pensaríamos nós se, por assim dizer, não pensássemos em comunhão com os outros, a quem comunicamos os nossos pensamentos e eles nos comunicam os seus? Por conseguinte, pode muito bem dizer-se que o poder exterior, que arrebata aos homens a liberdade de comunicar publicamente os seus pensamentos, lhes rouba também a liberdade de pensar”

Porquê colocar a tónica na importância da comunicação? Porque uma democracia verdadeiramente funcional implica uma comunicação funcional, ou dito de outra forma, racional. O cidadão enquanto indivíduo que habita a pólis, enquanto ator e não mero espetador na sua construção, manutenção e aperfeiçoamento, deve ser antes de mais um bom comunicador. Comunicar bem não é sinónimo de falar ou escrever bem, ainda que tais competências sejam importantes. Comunicar bem é antes de mais uma atitude ética, uma disponibilidade para bem-dizer o bem-pensado, mas sobretudo para bem-ouvir. Implica abandonar uma espécie de zona de conforto intelectual, expondo-se ao outro, desnudando-se como entidade vestida de identidade, dispondo os seus argumentos como quem expõe partes de si mesmo ao contraditório, à possibilidade de refutação, ao crivo do outro enquanto par, indivíduo provido da mesma essencial dignidade, co-vivente numa comunidade de co-responsáveis. Enquanto indivíduo, tenho direito a uma esfera privada do pensamento na qual nenhum outro tem direito de penetrar. Enquanto cidadão, eu tenho o dever de comunicar, de dar a conhecer o meu entendimento relativamente ao que considero melhor para a cidade na qual me constituo como elemento co-responsável. Entendamo-lo, se quisermos, como um dever ético. Não é por acaso que hoje tanto se fala em transparência e em verdade na política. O político, enquanto cidadão que representa outros cidadãos no governo da pólis, tem o dever de agir com vista ao bem da comunidade, pelo que as suas motivações, crenças políticas, interesses, devem ser declarados, ou seja, públicos, na medida em que estão na base das decisões que afetarão toda a comunidade política.


Indivíduo, Cidadão, Razão Pública

Ora, o papel de uma educação que se quer democrática, como já percebemos, é o de promover o ato de comunicar como pilar fundamental. Não se pode, porém, comunicar no vazio, de forma impensada ou aleatória. É preciso pensar bem, racionalmente, com vista ao esclarecimento no sentido de uma ilustração kantiana, projetando o pensar no sentido da universalidade. Esta universalidade que o pensamento deve visar – ainda que nos tempos pós-modernos possa ser vista como expressão de uma ideia anacrónica, demasiado otimista relativamente ao poder da razão – mais não é do que a superação de um pensar particular, local, tendencialmente egoísta e parcial. Ainda que tal universalidade seja, em termos absolutos, impossível de atingir – senão por um pensamento muito próximo do da Divindade Suprema –, cada ser particular, enquanto ser de razão, deve ser capaz de pensar para além do imediato, visando os problemas de uma forma senão objetiva, pelo menos dessubjetivada. Esta dessubjetivação começa, precisamente, quando nos abstraímos da nossa condição de indivíduos para assumirmos a condição de cidadãos. Num mundo globalizado cujos imperativos de convivência sã estão cada vez mais presentes, coloca-se, mais que nunca, a problemática de uma ética universal, cujos princípios estejam para além de uma moralidade local, parcial, revelada. Assim, esta condição de cidadania tem um âmbito cada vez mais aberto, cosmopolita. Em termos mais simples, diríamos que quanto mais próximos estivermos dessa condição de cidadania, mas próximos estaremos da Humanidade enquanto comunidade e enquanto condição. Desta forma, abstrairmo-nos da condição de indivíduos com vista à condição de cidadãos cosmopolitas não significa que percamos a nossa condição de sujeitos, a nossa singularidade enquanto pessoas. Seremos tanto mais humanos quanto mais cidadãos de uma verdadeira cidade global. Dessubjetivação não significa despersonalização, dissolução de identidade, uniformização.

Neste sentido, a educação que se pretende democrática, com vista a formar cidadãos, não deve matar o indivíduo. Russel em Educação e Sociedade distingue o indivíduo do cidadão, o primeiro como expressão de mudança, rebeldia e autonomia, e o segundo, como expressão conservadora, dependente, simpática aos olhos do Estado, reprodutora do status quo. O que o autor pretende sublinhar é que, nas condições sociais e políticas contemporâneas à obra – estamos a falar dos inícios dos anos trinta do séc. XX – a grande demanda do sistema educativo era o de formar cidadãos respeitadores e reprodutores da ordem social vigente. Portanto, o Estado, enquanto responsável pela educação dos seus jovens, sempre se dispôs a sacrificar o indivíduo ao cidadão. Como sublinha Russell,

“Cidadãos, tal como os concebem os governos, são pessoas que admiram o status quo e que estão preparados para dar o melhor do seu esforço no sentido de o conservar. Por mais estranho que pareça, enquanto os governos, em geral, pretendem produzir homens deste tipo (…) os seus heróis do passado são precisamente do tipo que se esforçam por evitar no presente.(…) Todas as nações ocidentais veneram Cristo, que, se viesse agora, seria com certeza tratado como suspeito pela Scotland Yard, e a quem seria recusada a cidadania americana, quanto mais não fosse pela sua recusa de pegar em armas.”

Haverá, desta feita, alguma forma da educação conjugar a formação do cidadão sem sacrificar a singularidade do indivíduo? Será possível conciliar ordem social com autonomia e progresso? Ora, a resposta que proponho é de que sim, é possível. É, como é óbvio, mais uma expetativa baseada num determinado ideal de cidadania que acredito ser possível construir. Para tal, a educação enquanto sistema deve ver-se livre de alguns vícios, se assim podemos chamar. Vícios de doutrinação, ideologia, conservadorismo e tradicionalismo que impeçam os educandos de se constituírem como elementos ativos na ordem social, envolvidos, participantes, críticos. A cada geração de educandos deve ser dada a oportunidade de trazer algo novo a um mundo que, em si mesmo, é já demasiado velho.

Hannah Arendt no artigo Crise na Educação diz algo de fundamental a este respeito que

“Faz parte da condição humana que cada geração cresça no interior de um mundo velho, de tal forma que, preparar uma nova geração para um mundo novo, só pode significar que se deseja recusar àqueles que chegam de novo a sua própria possibilidade de inovar.”

Há, portanto, duas visões que se confrontam: por um lado, os que defendem que a educação é um importante meio através do qual as sociedades se protegem do perigo potencialmente subversivo de cada geração emergente. Desta forma, a civilização ou sociedade adia a sua aniquilação, pereniza-se enquanto cultura. Por outro lado, existem os que defendem que a educação deve ser um instrumento para acolher a novidade, afastando da criança ou jovem todas as limitações que impeçam o seu são crescimento, de forma a permitir que as sociedades se renovem a cada geração, evoluam e desse modo não cristalizem no tempo.

As teorias evolucionistas desde Lamarck a Darwin vieram lançar uma nova luz sobre o devir da espécie, mas também das sociedades. As sociedades que procuram perenizar-se pela reprodução geracional da tradição, dos antepassados, da cultura ancestral, e que não se adaptam, não evoluem, não incorporam novos elementos culturais e civilizacionais, estão condenadas à dissolução ou à assimilação. A partir de uma conceção linear, de sentido único da evolução – herdada em grande medida do positivismo do séc. XIX, do marxismo e do hegelianismo – concebeu-se que as sociedades tendiam a evoluir sempre no sentido do progresso, e portanto, as novas gerações abririam a possibilidade de um salto qualitativo no processo civilizacional, pelo que o entendimento acerca destas também se foi alterando progressivamente. Este excessivo otimismo encontrou o seu crepúsculo no desastre civilizacional das duas grandes guerras mundiais. Curiosamente, por esta altura, surgiu uma outra consciência, há muito proclamada por filósofos como Kant, da urgente necessidade de um novo tipo de racionalidade, não já científica no sentido estrito, mas pública. É aquilo que chamo de razão pública. É verdade que o otimismo civilizacional baseado numa ideia de progresso científico falhou. A Razão enquanto entidade elevada à condição de quase divindade que viria substituir o reino da superstição religiosa, da metafísica, falhou redondamente na medida em que se tornou verdadeiramente totalitária. Esta conceção teve o condão de esvaziar toda e qualquer discussão ética ou política.

Assim, pretendia-se aniquilar a superstição mas apenas se logrou fundar outro tipo de superstição. Lembro, por exemplo, as pretensas bases científicas nas quais Hitler se baseou para justificar a superioridade da raça ariana e a inferioridade dos judeus, com consequências bem conhecidas por todos. O esvaziamento da discussão ética, em parte devido à secundarização da metafísica, atirou para segundo plano qualquer discussão relativa à relação entre os estados, à legalidade ou legitimidade, à política enquanto campo ético de ação. Só depois da Primeira Guerra Mundial se retomou a discussão acerca da necessidade de uma política verdadeiramente supranacional, anti-nacionalista, voltada para a proteção do indivíduo enquanto ser de dignidade inalienável. Depois da Liga das Nações tivemos as Nações Unidas, e com as Nações Unidas a renovada proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O retorno, portanto, da discussão ética. A superação, portanto, da razão estritamente científica totalizadora, no sentido de um razão abrangente, radicada numa metafísica fundamentalmente ética. Não só supranacional como suprareligiosa. Pelo menos, creio eu, com essa intenção.


Educação democrática num mundo pós-ideológico

Ora, muitos afirmam que hoje, na pós-modernidade, vivemos num mundo pós-ideológico. A superação das ideologias sejam científicas, políticas, filosóficas, conduziria a um grau de universalidade suficiente que permitiria, por fim, a paz perpétua, recuperando a noção kantiana. Porém, a verdade é que mesmo uma pretensa não-ideologia tem sempre uma matriz ideológica, de uma forma ou de outra. Mesmo quando afirmamos que a educação deve ser não-ideológica, o que queremos de facto afirmar é que ela deve ser democrática, aberta, promotora de uma determinada visão que, em si mesma, se funda em determinados princípios que acreditamos estarem eticamente corretos, e numa visão do indivíduo que não deixa também de ser ideológica. A ideologia seja ela qual for, começa a degenerar a partir do momento em que, no seu esforço universalista, cai no abismo da absolutização. Ao promover-se uma ideologia nacionalista – cuja raiz é também universalista – cai-se no erro da uniformização pelo princípio da igualdade. Da mesma forma, ao promover-se uma ideologia aparentemente democratizadora, a absolutização do valor, por exemplo, da igualdade, cai precisamente no mesmo erro da uniformização que padroniza através da igualdade. Ao perder de vista a diferença, a singularidade das pessoas e das circunstâncias, toda a ideia degenera em ideologia e afasta-se daquilo que deveria ser uma análise diferenciada, permanente e inteligente. Geralmente isto acontece por via administrativa, pois toda a sociedade, à medida que se complexifica, caminha no sentido da excessiva burocratização, e a burocratização é sempre fria, numérica, preguiçosa e privilegiadora dos procedimentos, da letra da lei, muito longe das realidades pessoais e do espírito que deve animar uma sociedade que se quer relacional e democrática.

Neste horizonte, a educação não foge à regra e desta feita mais tarde ou mais cedo é subjugada pelos imperativos burocráticos uniformizadores dos programas, dos currículos, dos timings sempre curtos, sempre para ontem. Ao mesmo tempo, as democracias pretendem que a educação seja, também ela, democrática, mas a verdade é que a democracia na educação existe apenas enquanto processo de igualização, de esforço no sentido de tornar a acessíveis a todos as mesmas oportunidades de alfabetização e instrução. A mesma malha administrativa que coloca a tónica em apenas uma dimensão da democracia, subverte-a ao destituir o sistema educativo de tempo, recursos e autonomia suficientes para que a escola, enquanto espaço privilegiado, se torne um lugar de formação verdadeiramente humana, aberta, multidimensional.
Existem, portanto, duas dimensões da educação democrática que considero fundamentais: em primeiro lugar, a dimensão do aperfeiçoamento de uma atitude racional, nunca estritamente científica, mas com vista à compreensão e intervenção na dimensão da razão pública. Não existe democracia sem que os cidadãos compreendam a importância fundamental das orientações basilares do direito nacional, internacional e da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Neste sentido, o futuro cidadão deve ser colocado perante as inquietações éticas que estão na base de todo o Direito que, por sua vez, está na base daquilo a que chamamos hoje de Estado de Direito, que mais não é do que um Estado de Razão Pública. Faz todo sentido que, nesta vertente, o indivíduo tenha contacto com a noção de Dever, de ética deontológica, de razão prática. Faz todo o sentido que o educando perante as problemáticas da legalidade e da legitimidade, para que possa vir a assumir uma postura de verdadeiro legislador no sentido de uma coincidência crescente entre as leis e máximas que constituem o código de uma legalidade democrática e os imperativos da sua própria vontade racional. O que se pretende é que o futuro cidadão possa dizer acerca dos códigos fundamentais e dos princípios éticos que estão na base da experiência democrática algo tão simples como isto: “Podia perfeitamente ter sido eu, se a isso tivesse dedicado a minha reflexão racional, a criar todas as máximas que constituem este código. Por isso, tomo-as como minhas e respeitá-las mais não é do que respeitar a minha vontade. Assim, não estou coagido a cumpri-las porque efetivamente quero reger a minha vida de acordo com elas.” Otimista demais? Talvez. A verdade é que os códigos legais não são perfeitos, nem mesmo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas isso não impede que, pela reflexão, o cidadão não possa precisamente descobrir onde estão as principais lacunas e contribuir, como ator do processo político, para melhor as adequar aqueles que considera ser os mais corretos e justos princípios éticos.

Um interessante exercício seria colocar os alunos em diversas situações do género posição original ralwsiana. Do género: pedir a uma assembleia de alunos que se disponha a chegar a um consenso sobre os mais justos princípios éticos. Colocá-los na situação de imaginarem que teriam de criar um código ético que servisse de base a uma futura constituição de um futuro estado. Não conheceriam, nesta circunstância original, nem o seu estatuto no futuro estado, nem a sua condição – homem ou mulher, pobre ou rico – nem sequer o regime político que seria adotado. De acordo com Rawls, os princípios emanados da posição original seriam válidos e universais. Todos os intervenientes estariam de acordo visto que, em principio, todos se pronunciariam a favor de um conjunto de princípios que seriam benéficos para todos, não propriamente por um altruísmo natural, mas porque nenhum dos intervenientes quereria ficar prejudicado pelo estatuto ou condição que lhe coubesse na sociedade futura. Eis um exercício muito prático e interessante que põe em jogo precisamente a razão prática como instrumento de razão pública.

Quanto à questão do aperfeiçoamento de competências racionais em contexto educativo gostaria de dar a palavra a Kant:

“Servir-se da própria razão quer apenas dizer que, em tudo o que se deve aceitar, se faz a si mesmo esta pergunta: será possível transformar em princípio universal do uso da razão aquele pelo qual se admite algo, ou também a regra que se segue do que se admite? Qualquer um pode realizar consigo mesmo este semelhante exame e bem depressa verá, neste escrutínio, desaparecerem a superstição e o devaneio, mesmo se se está muito longe de possuir os conhecimentos para a ambos refutar com razões objetivas.(…) É, pois, fácil instituir a ilustração em sujeitos individuais por meio da educação; importa porém começar cedo e habituar os jovens espíritos a esta reflexão.”

Considero curiosa esta passagem na medida em que Kant surge com um novo imperativo, mas desta vez não propriamente relacionado com a ação moral. Ainda que, obviamente, todo o imperativo seja, em si mesmo, moral na medida em que é emanado pela razão pura, e com esta se confunde, este é um imperativo a que Kant chama de máxima da autoconservação da razão cujo fim é o de evitar o erro, superar a superstição, o obscurantismo e o conhecimento falacioso. É um importante instrumento no sentido de promover uma boa dose de lucidez, de ilustração, pois em qualquer sociedade dita democrática é também um imperativo ético que todos tenham acesso ao conhecimento e à informação.

Porém, o excesso de informação a circular, sobretudo nos dias de hoje em que são diversos os interfaces e meios de difusão da informação, pode cair-se precisamente no oposto do que se pretende, o da desinformação e da propagação rápida do erro. Nesta senda, é legitimo afirmar que uma educação democrática que procure gerar competências do uso da razão, deve também inspirar nos educandos um constante e profundo questionar do conhecimento dado, que muitas vezes chega sem ser solicitado, de forma fácil, por exemplo, através de uma simples televisão no quarto de dormir. A democracia tem a particularidade de gerar constantemente os germens da sua própria destruição. Precisamente por ser um regime aberto, com um amplo conjunto de liberdades, que acolhe o contraditório e permite o conflito de opostos, são muitos os fatores que podem, facilmente, destrui-la e subvertê-la a partir de dentro. À semelhança do nosso corpo, o importante é ter um bom sistema imunitário que possa, a todo o momento, debelar os potenciais radicais livres que são capazes de, no limite, nos matar. Pois, o sistema imunitário da democracia não é a força, ou a supressão do conflito ou a aniquilação dos contrários. O sistema imunitário da democracia é uma razão bem treinada, esclarecida, até certo ponto cética e iconoclasta, tanto ao nível dos cidadãos como das associações de cidadãos; tanto ao nível privado como público. De novo Kant:

“Pensar por si mesmo significa procurar em si próprio (isto é, na sua razão) a suprema pedra de toque da verdade; e a máxima de pensar por si mesmo é a ilustração. Não lhe incumbem tantas coisas como imaginam os que se situam a ilustração nos conhecimentos;(…) muitas vezes, quem é excessivamente rico de conhecimentos é muito menos esclarecido no uso dos mesmos.”

Considerações finais

Daqui se conclui que para fundar um regime plenamente democrático, baseado do direito individual, no direito público, inserido numa comunidade não apenas de pessoas e bens, mas de estados, no qual o indivíduo seja o princípio e o fim de toda a ação política que, neste medida, se confunde com ação ética – diríamos, kantianamente, um reino dos fins –, é essencial que, também a educação seja um instrumento democrático que promova, não as finalidades do estado ou de uma coletividade, mas a formação integral do cidadão como fim, também ele, em si mesmo. Não se pretende que a educação seja um instrumento, um meio técnico através do qual a sociedade atinge determinados fins como, por exemplo, a sua manutenção, ou o domínio sobre outros estados, mas uma dimensão da própria democracia, um espaço através do qual a democracia se aprofunda, questiona, liberta.

A Democracia existe para servir o indivíduo, oferecendo-lhe todas as condições para se constituir como pessoa com vista à felicidade possível. Neste sentido, a dimensão política do regime democrático constitui-se em dimensão educacional. Por outro lado, o indivíduo serve a Democracia. A dimensão singular, única e irrepetível do indivíduo constitui-se em dimensão de cidadania. É, portanto, uma simbiose. Dou a palavra a Russell,

“O resultado deste estado de coisas [educação tradicionalista e doutrinária] foi tornar a educação numa parte da luta pelo poder entre religiões, classes e nações. O aluno não é nunca considerado em si mesmo, mas apenas como um recruta: a máquina educacional não se preocupa com o seu bem-estar, preocupa-se com objetivos políticos ulteriores”

Curioso que, ainda no âmbito da imparcialidade não-ideológica, supranacional da dimensão educacional, Russell faz ainda a seguinte proposta: “Os manuais de História deveriam ser preparados pela Sociedade das Nações, com um assistente dos EUA e da URSS.” Compreende-se a proposta de Russell à luz da ideia que muitos dos nacionalismos que ocasionalmente foram e são geradores de guerras fundamentavam-se não propriamente em história, científica, imparcial e sistemática, mas em visões parciais dos acontecimentos fundadores de uma determinada cultura ou nação. Visões geralmente empoladas, que sublinhavam os aspetos positivos, gloriosos, e ocultavam os erros ou, pior, desculpavam-nos. Algo mais próximo do mito do que propriamente de História fidedigna. Inglaterra, Portugal, Espanha, desculparam o facto concreto e indiscutível de terem invadido, ocupado e extorquido recursos a outros povos durante o período das descobertas e colonizações, com uma pretensa missão civilizadora, sancionado por Deus e pela Igreja. Esta conceção civilizante prevaleceu durante séculos nas mentes dos conquistadores que acreditavam – fruto da educação – na sua superioridade e na sua missão, sem descortinarem realmente o que se estava a passar. Já a história dos vencidos é muito diferente.

Contudo, nos dias de hoje, não se pede propriamente que seja a Organização das Nações Unidas a elaborar uma História Universal que possa ser ensinada em todo o mundo, mas que existam critérios científicos, partilha académica, imparcialidade. Talvez, paulatina e progressivamente, ou por efetiva necessidade ou por antecipação inteligente, os povos encontrem meios de comunicar, linguagens comuns que, sem prejuízo da diversidade, voltem a unir aquilo que, verdadeiramente, nunca esteve separado. Como podemos querer comunicar com povos de outros planetas, senão aprendemos ainda a comunicar com o nosso vizinho?




Bibliografia

• ARENDT, Hannah (1957), A Crise na Educação, in Arendt, Hannah, Weil, Eric, Russell, Bertrand, Gasset, Ortega y, Quatro Textos Excêntricos, Seleção, prefácio e tradução de Olga Pombo, Lisboa: Relógio d´Água Editores, 2000
• RUSSELL, Bertrand (1932), Educação e Sociedade, tradução de Antunes Neves Pedro, Lisboa: Livros Horizonte, 1982
• KANT, Immanuel (1786), Que significa orientar-se no pensamento, in KANT, Immanuel, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, trad. portuguesa de Artur Mourão, Lisboa: Edições 70, 2008

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