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sexta-feira, setembro 09, 2011

Liberdade e consciência de si



Quando tomamos consciência de nós, já estamos no mundo. Tanto quanto sabemos, a nossa existência não deriva de um ato de escolha. Nenhum processo de decisão tem lugar, e em nenhum momento nos colocam a opção de não nascer. O estar aqui, o ser no mundo, não depende verdadeiramente de nós. Alguns, se a vida lhes corre de feição, se a existência lhes é fácil e pródiga em dádivas, talvez nunca se lembrem disto. O mais natural é aceitarem de bom grado esta condição sem colocarem questões. Outros, menos aventurados, sofrem calvários, e o caminho que lhes é colocado sob os pés é feito de espinhos e escolhos de diversa espécie. Estes, se a certa altura a chama da consciência neles despontar, poderão dar de caras com o absurdo e perguntar “Porque nasci se a minha existência é apenas sofrimento?”. Talvez aqueles que nunca viveram noutra condição, que sempre sofreram e não recordam outra forma de viver, cedam à força do hábito e não deparem com nenhum abismo entre o que é, e o que deve ser. Assim, nunca chegam a questionar o que lhes é dado. Para eles, estar vivo não implica necessariamente um estado de felicidade, nem se revoltam contra a vida se esse estado de beatude não se segue necessariamente ao ato de vir ao mundo. Um escravo que sempre foi escravo, poderá vir a aspirar ser livre?

Para aqueles que acreditam que a humanidade caminha no sentido da liberdade, há pois que perguntar onde se situa, ou em que consiste este gérmen de libertação. Povos houveram que se desenvolveram em torno de uma matriz cultural, que fundaram civilizações mais ou menos complexas, e que subitamente se viram escravizados e vencidos. A queda original é precisamente o movimento de perda de uma condição adquirida. A esses, o quadro da sua condição anterior constituído pelas justificações da sua dignidade como homens, passa a constituir o escopo da sua luta pela libertação, a condição original onde é mister regressar, o ómega da sua emergência da perdição. Para estes povos, a tradição é mais do que um elemento de agregação, mais do que um conjunto bonito de histórias, lendas e símbolos. É uma necessidade de sobrevivência. Consiste na memória que permitirá chegar ao fim do caminho, que dará aos mais jovens, aos que nunca viveram o “paraíso”, o significado da sua dignidade como homens e como povo, para que não esmoreça a luta. Assim nascem os mitos e os heróis de toda a espécie. A afirmação de um povo é pois a afirmação de um mito que dá consistência e motivação a um esforço de emancipação.

Os que procuram escravizar, estropiar a dignidade de um povo, submetê-lo a uma nova ordem, vêem-se por isso na necessidade de mutilar, em primeiro lugar, os pilares que justificam a sua existência – a tradição, os mitos fundadores, os seus rituais. É preciso mutilar a memória, gerar o esquecimento generalizado, para que os mais novos se desliguem dos justificativos da sua dignidade e, consequentemente, esmoreça a sua ânsia de retorno ao “paraíso”. Sem memória não há passado. Apenas futuro. Quando existe apenas futuro é fácil dividir e integrar. É também mais fácil manipular.

Porém, mesmo nas sociedades sem memória, nos povos estropiados de uma tradição que se vêem subitamente integrados numa cultura maior, há mínimos de dignidade de humana que não dependerão, penso eu, de uma tradição. São esses mínimos de dignidade que pede qualquer homem: direito à vida, liberdade e segurança. Mesmo o escravo sem memória, desligado dos feitos dos seus antepassados, sentirá revolta perante o carrasco que o vergasta por mero capricho, ou perante os que roubam o fruto do seu trabalho impedindo-o de se alimentar a si e aos seus filhos. A primeira luz da dignidade humana não é divina, não é revelada. É antes figadal, vem das entranhas e da revolta reprimida. É humana até às fezes. Porém, é inconsistente e não gera união se não encontra bases mais profundas – na tradição.

Assim, podemos afirmar que se não existe memória, é preciso encontrá-la. E a memória da Europa ocidental da idade média era sobretudo a memória da doutrina cristã, dos caminhos de Cristo, dos apóstolos e dos seus feitos. Seria, em larga medida e para a maioria dos homens, uma memória baseada num mito de servidão necessária para o merecimento da vida eterna. O reino não era deste mundo, mas do outro. Seria totalmente irrelevante, assim, lutar por uma emancipação em direção a um “reino” de liberdade anterior, político e concreto. Esse reino estava no céu, e cada homem seria um Adão expulso do éden pelo pecado original, que só retornaria a ele pelo sofrimento e pela virtude incondicional. A memória dos mosteiros, dos “scriptoriums” das abadias, era outra e bem diferente. Para quem tinha acesso aos gregos e aos seus escritos, aos romanos e ao seu direito, aos sábios muçulmanos tradutores do grego, aos filósofos cristãos e pagãos, a memória era outra, de outro tipo. E esta, era mister manter oculta pois significava o perigo da subversão. Noutras palavras, o perigo da emancipação do homem e um justificativo sólido para a sua dignidade.

Os oprimidos e os opressores sentiam no seu íntimo – de acordo aliás com os mais puros sentimentos cristãos – que a condição humana pedia outra atenção, outro espaço para se expandir e para ser. Não é por acaso que o renascimento europeu seja, ao mesmo tempo, a era do retorno ao pensamento greco-latino…e da reforma protestante.

Assim como um homem, a certa altura da vida, acorda do seu sono para ganhar consciência de si e do seu lugar no mundo, também a civilização tem o seu tempo e hora para acordar do seu sono e reaver a sua memória. Toda a civilização começa pela afirmação de si mesma, no caldo dos mitos. Progride no sentido da tradição, ou seja, na constante actualização da sua memória através dos ritos – que são precisamente atos no presente que servem para presentificar os significados do passado -, transmitindo o passado através da linha do futuro. Daí a palavra tradição derivar do latim traditio, ou seja, transmissão. A fase seguinte é da dúvida. A era da dúvida nas sociedades pode ser muitas vezes um tempo de criação, mas também de destruição. Pode ser um tempo de retorno ao passado, de reformulação de mitos, ou de invenção de novos. A última fase, diria eu, é o niilismo pessoal assente em mitos fundados no indivíduo. Uma nova idade média?

Isto em traços muito gerais.

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