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quinta-feira, novembro 11, 2010

Sobre a Ética hoje




Dê cada um ao mundo aquilo que lhe diz faltar, e talvez este se regenere
Agostinho da Silva


Fala-se muito nos dias de hoje em Ética. É preciso ética nisto, é preciso ética para aquilo, é preciso “eticizar” a sociedade, é preciso ética na política e nos negócios. Noutras palavras, pretende-se moralizar a sociedade, assegurando o cumprimento de certos critérios normativos, certas regras que se pretendem universais e que traduzirão um maior respeito das instituições em geral e das pessoas em particular em relação ao outro. Esse outro somos cada um de nós e a nossa circunstância, como diria O. Gasset, circunstância de não sermos apenas indivíduos, mas de sermos homens aos quais se atribui uma dignidade inerente e inalienável. Dignidade que nos dá o direito de pedir contas e o dever de as prestar, seja a cada um dos outros homens, seja às instituições políticas, económicas, culturais ou científicas.

Noutras palavras, ética pressupõe relação e reciprocidade, seja entre o indivíduo e a sociedade, seja entre o indivíduo e outro indivíduo, seja até entre o indivíduo e si mesmo. Fala-se hoje menos numa ética de virtude individual no sentido de um código moral de acção que permita uma “vida boa” no sentido aristotélico, porque o conceito de indivíduo da sociedade ocidental dá-lhe amplos poderes no que concerne à sua busca de uma felicidade própria, pessoal e intransmissível. A perda de influência da esfera do religioso em relação ao secular, e a ascensão dos existencialismos vários que atribuem ao homem um papel de “criador de si mesmo” ou, em termos nietzcheanos, de “fundador de novos valores”, conduziram paulatinamente a um relativismo, não já de carácter colectivo, mas individual e individualista. O culto dos ídolos antigos, dos deuses e rituais, deu lugar ao culto do indivíduo. Os que ouvem falar em “virtude” logo fazem soar o alarme da seca e bafienta moral dos religiosos. “Justo-meio” e “moderação” parecem ser entraves à felicidade dos cultores de um hedonismo militante que tudo justifica. E o que não se vai buscar aos livros de filosofia, também ela tida como bafienta e sem qualquer utilidade, vai-se beber sofregamente às novas “bíblias” da auto-ajuda, onde os novos profetas da felicidade fácil elaboram filosofias de “pronto-a-vestir”.

Assim, a Ética é hoje uma necessidade de valorização da boa-fé como valor contratual. Em termos democráticos, a sociedade consiste numa espécie de contrato elaborado entre indivíduos, sectores, instituições. Como o próprio nome indica, é uma sociedade. Em termos abstractos, cada um de nós aderiu a essa sociedade no estatuto de homem livre, ou seja, por escolha e vontade própria. Em termos práticos não é bem assim porque não escolhemos propriamente nascer neste ou naquele contexto, mas o facto de vivermos num contexto democrático dá-nos um outro estatuto de responsabilização perante as escolhas comuns que não teríamos numa sociedade totalitária ou ditatorial. Em vez de um contrato elaborado por todos numa espécie de situação primordial na qual nenhum dos indivíduos conheceria de antemão o seu estatuto na sociedade (Rawls), viver numa sociedade democrática é antes um constante renovar desse contrato. Não consentimos apenas uma vez dela fazer parte, mas várias, nos vários momentos em que, seja por meios de representação, seja por vias directas, fazemos ouvir a nossa voz na construção da chamada coisa pública. Ao legitimarmos através do voto um determinado governo, e ao elaborarmos legislação por meio dos nossos representantes eleitos numa assembleia ou num congresso; ao sermos chamados, como representantes do poder local ou nacional; ao cumprirmos a lei em vez de lhe desobedecermos através da desobediência civil – porque em democracia podemos desobedecer às leis desde que estas estejam mal feitas, ou em desacordo com os princípios gerais da constituição ou até da Declaração Universal dos Direitos do Homem – recorrendo aos tribunais para provar a nossa pretensão. No mundo globalizado cujas fronteiras não são mais factores de limitação mas portas abertas para outras culturas e modos de vida, o facto de escolhermos continuar a residir no nosso país, ou até de escolhermos viver num outro país, é já uma forma de contratualização democrática.

Assim, cada sector da sociedade deve prestar contas aos outros sectores quando não cumprem a sua parte contratual. Os políticos às populações porque se comprometem a gerirem o que é público tendo em conta o interesse público, e não os seus interesses particulares. Em troca, recebem a legitimidade do voto. As instâncias económicas públicas e privadas também devem prestar contas, as primeiras porque fazem uso do que é público com fins eminentemente públicos, e as segundas porque não podem fazer colidir os seus interesses privados – legítimos aliás – com o interesse público. Igualmente importante, os indivíduos têm de prestar contas aos demais sectores da sociedade se fazem colidir o seu interesse privado, individual, com o interesse privado, individual de outro indivíduo. Por indivíduo entendo aquilo que se chama em termos do Direito de pessoa individual e de pessoa colectiva. À estrutura que regula tudo isto segundo peso e medida, e que funciona como cláusula máxima deste contrato social sempre renovado, se chama Lei.

O anseio pela ética é então o anseio pelo cumprimento da Lei? Também, mas não só. Por um lado, se um determinado sector da sociedade, precisamente aquele que tem por missão vigiar o cumprimento da lei, não cumpre a sua parte do contrato, há aqui uma crise de boa-fé. Não só é eticamente errado que haja quem não cumpra a lei, como é errado que aquele a quem democraticamente é outorgado o dever de fiscalizar o cumprimento da lei em nome da sociedade, não seja capaz de o fazer ou o faça tendo em conta interesses particulares. Contudo, não ser capaz de o fazer é uma questão política pois quem tem o dever de reformar a justiça e de lhe dar meios para agir bem e rápido são as tutelas políticas. O erro e a falta de boa-fé estão, portanto, do lado dos políticos. Se, a título individual ou colectivo, os agentes judiciais se deixam corromper ou não estão interessados numa melhor justiça, a falta de boa-fé está do lado deles. O facto de um determinado sector da sociedade estar incumbido de fiscalizar o cumprimento da lei, não iliba os outros sectores de terem o conhecimento da lei. Perante um tribunal ninguém pode alegar o desconhecimento da lei para justificar os seus actos. Assim, há um comprometimento ético de todos no cumprimento da lei, sem excepção.

O que acontece na maioria das vezes é que o senso comum que a todos parece pertencer - sublinho parece - iliba o próprio em detrimento do outro. Pede-se ética para os outros, pede-se que eles prestem contas e justifiquem os seus actos sem qualquer contemplação. Já para nós próprios existe toda e qualquer justificação, e raramente nos sentimos no direito de prestar contas seja a quem for. A nossa autonomia radicada na nossa liberdade e dignidade como indivíduos pressupõe um comprometimento ético de boa-fé para com o outro. Pressupõe reciprocidade e não unilateralidade neste compromisso. Pressupõe uma mesma proporção de direitos e de deveres para todos sem excepção. Pressupõe, não só um compromisso com a exterioridade, como o outro ou os outros outorgantes do nosso contrato. É também um compromisso connosco mesmos, com a nossa interioridade. Alguns diriam, com a nossa consciência. Sim, porque mais difícil do que a consciência dos direitos - consciência viva e sempre instigadora da acção e da revolta – é a consciência dos deveres. Tendemos a dogmatizar os nossos direitos, fazendo deles axiomas imutáveis, e a pôr em questão todos e cada um dos nossos deveres como se tratassem de hóspedes indesejados da nossa consciência.

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