
Porque vivemos numa época de trincheiras, de extremos que não se tocam, ou recusam tocar-se sob o signo do orgulho; porque tenho ouvido falar os crentes, e também muitos não-crentes (que são apenas crentes de outras "divindades"), e porque uns e outros parecem sustentar as suas crenças em pés de barro, deixo aqui uma pequena reflexão sobre a existência ou não-existência desse ser absoluto a que se chama "Deus". É uma reflexão que não pretende dar respostas, receitas de "abertura fácil" ou de uso "instantâneo". A questão da divindade e da crença talvez se coloque mais em termos de pergunta que não admite resposta, ou de mistério que perenemente se eleva para além de qualquer cogitação.
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A eterna questão: Deus existe? Se existe, o que é Deus? Em que consiste o seu ser, a sua substância? Se não existe, porque o enunciamos tão recorrentemente, nas suas mais variadas formas, há milhares de anos? Se admitirmos que não existe, ficará a questão resolvida sem apelo? Podemos provar a existência ou o seu contrário? É Deus “provável”, ou noutras palavras, verificável? Um Deus provado, ainda é Deus? Se acreditar é o único critério para crer, então porque precisa o crente de provas?
O Universo, as suas leis, os objectos que o constituem, comportam a existência de Deus? É conciliável o universo como o conhecemos, como o entendemos à luz da ciência, como teorizamos acerca do modo como surgiu e se expandiu, com Deus? Qual a ideia mais perfeita que podemos engendrar, mais semelhante à divindade? Absoluto? Infinito? Porque é que, necessariamente, atribuímos a Deus uma absoluteidade ilimitada infinita iluminada? Será Deus apenas o expoente máximo dos mais abrangentes conceitos engendrados pela mente humana, uma ideia sem correspondente real? Ou será Deus algo exterior, transcendental e intangível ao pensar humano? Se Deus existe, o seu “existir” é igual ao “existir” de uma árvore, ou de uma pedra? Existirão, pelo contrário, diversos tipos, planos, dimensões do existir?
Destilado o deus que engendrámos das impurezas do mito, o que sobra? Isso que sobra, é ainda Deus? É mais fácil afirmar categoricamente que o Minotauro não existe, ou que Deus não existe? Qual a diferença?
Expurguemos, fragmentemos, a ideia de Deus. Vejamos se o que resta é digno de ser chamado de divino. Separados todos os atributos de Deus, sobra apenas um nome. Um nome é uma palavra. Não é um deus. Porém, só através das palavras nos podemos socorrer para falar dele. Se fragmentarmos uma cadeira, se lhe retirarmos peça a peça, o que sobra? Por um lado, sobra – novamente – um nome. Cadeira sem os atributos da cadeira, sem a sua substância, é apenas uma palavra oca. Em termos materiais, o que resta da cadeira fragmentada? O que fica no lugar da cadeira? Puro espaço. Resta puro espaço, que é o que dá à cadeira a possibilidade de o ser, porque nenhum objecto é sem estar delimitado por uma dimensão espacial. E Deus? Partindo do princípio que existe uma materialidade que é Deus, o que resta da fragmentação do divino? Que tipo de espacialidade, de dimensão geométrica pode dar a tal objecto a possibilidade de ser, de se delimitar? Por outro lado, se o próprio espaço material é uma ideia, o que resta da cadeira talvez seja isso mesmo – pensamento. O espaço material esfuma-se para dar lugar a qualquer coisa inefável e exterior ao pensamento, algo que não podemos verdadeiramente conhecer, por ser puro objecto. O mais próximo do nada, sendo ainda alguma coisa. É a espacialidade de Deus também ela, em última instância, pensamento? Nosso pensamento? Contudo, se procuro deslindar os limites, a espacialidade onde se integra Deus, apenas me ocorre uma ideia – infinito. Contudo, o espaço material, esse mesmo onde se integra a cadeira, só é espaço porque é limitado e ao mesmo tempo limita, ou delimita. Espaço infinito é espaço nenhum. A infinitude do espaço é a negação da possibilidade de delimitação. Espaço ilimitado não contém objectos limitados. É Deus limitado, ou ilimitado? Assim, se Deus for infinito não pode estar contido ou delimitado por qualquer espacialidade. Existe sem espaço, ou fora dele. Diz-se que duas rectas se cruzam no infinito, ou que qualquer recta faz parte do arco de uma circunferência infinita. Porque não afirmar que o infinito de Deus encontra os seus limites no infinito? Se o centro de um universo infinito está em todo o lado, porque não dizer que o centro de Deus está por toda a parte?
O que me leva, mais uma vez, a cair na tentação de dar atributos a isso que não conheço, e chamo Deus?
Pensemos a ideia contrária. Deus é nada. Não existe. Assim, o infinito é apenas o infinito. Este não contém nada. Talvez nem o próprio infinito exista ou seja. Mais uma ideia, uma palavra. Existe apenas universo, materialidade, o que posso ver através dos meus olhos, ou de instrumentos científicos diversos. O que posso calcular ou prever. Se assim é, elimino todos os paradoxos? Posso acreditar na finitude e na delimitação, mesmo sabendo que para além dos limites do universo algum tipo de espacialidade tem de existir para permitir a sua progressão? Posso acreditar na finitude e na delimitação, mesmo sabendo que me é difícil compreender que antes do primeiro momento de expansão universal – Big Bang – nada existia? De onde veio, então, o tudo? Não é o próprio universo, na sua materialidade, que se oferece ao paradoxo, à infinitude e à absoluteidade?