Casa do Ser
"A linguagem é a casa do ser. E nessa morada habita o homem. Os pensadores são os guardiães dessa morada" M. Heidegger
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segunda-feira, fevereiro 13, 2017
Página de Facebook - Ruben Azevedo
Às pessoas que nos últimos - quase - 12 anos têm acompanhado este meu blog, saibam que podem acompanhar os meus textos mais amiúde na minha página de facebook, onde escrevo com grande regularidade (o que há muito tempo não acontece aqui, no blog).
Peçam-me em "amizade", ou sigam-me aqui:
https://www.facebook.com/ruben.d.azevedo
Um bem-haja,
Ruben David Azevedo
terça-feira, outubro 25, 2016
RESENHA SOBRE O MEU LIVRO "ENIGMA - NOEMAS EM TORNO DO MISTÉRIO DO SER E DO EXISTIR"
(Para adquirir o livro clicar aqui ou aqui) Página facebook do livro aqui |
O livrito reflete, como um todo, uma crença muito pessoal: a
busca pela verdade e pelo conhecimento, para ser completa, tem de visar o
"real-objetivo" e o "real-subjetivo". Por outras palavras,
não há conhecimento pleno sem autoconhecimento. Nenhuma demanda pelos factos do
mundo e da vida pode dispensar uma outra demanda que lhe é paralela e, sem a
qual, aquela não fica completa, nem chega a ser existencialmente útil para o
Homem.
Por isso mesmo, o livrito divide-se em duas partes: a
primeira titulada "Noemas em verso", exprime sobretudo o
"real-subjetivo", isto é, nela procuro dar forma escrita - a forma
escrita possível dada a inefabilidade de certos sentimentos - às minhas mais
profundas inquietações, aos meus mais profundos desejos, ao meu contínuo
assombro perante o mistério do Ser e do Existir, e também à esperança - em suma,
às motivações subjetivas que definem o meu modo de ser e estar no mundo, e
perante o mundo. Aquilo que emocionalmente me move e determina a orientação da
minha vida, entendida como demanda existencial cujo Horizonte é a Verdade.
Trata-se nesta primeira parte, fundamentalmente, de tornar
claras para mim próprio as minhas reais motivações existenciais, modelando pela
palavra, ou vestindo pela palavra (parece-me a metáfora mais adequada)
sentimentos, ânsias e visões internas que se mostram frequentemente de forma
turva e difusa, por forma a que se tornem inteligíveis, em primeiro lugar de
mim para mim próprio. Daí serem mais "noemas" do que
"poemas", pois etimologicamente poesia significa criação (do grego
"poiésis"), e mais do que criar, eu acredito que, no que diz respeito
ao meu real-subjetivo, à minha interioridade profunda, eu me limito a procurar
dar forma escrita a sentimentos, ideias, formas e visões, "noemas"
(do grego "noema", ideia, conceito, visão) que se insinuam na minha
consciência, que emergem e se revelam de forma confusa, às vezes opaca. Mas que
são essenciais, pois possivelmente trazem consigo a marca da sua origem
profunda, que é a das profundidades arcaicas da consciência de onde brotam as
tendências singulares da personalidade individual, e por conseguinte do destino
individual. Logo, constituem vias de real autoconhecimento. Autoconhecimento
sempre indireto, que requer sempre interpretação; que requer observação através
do espelho das ideias e das palavras, e não de forma imediata, face a face. Mas
não é sempre assim? E será que terá de ser sempre assim?
A segunda parte, titulada "Noemas em prosa",
constitui globalmente o capítulo dedicado ao real-objetivo. Nele exploro alguns
temas do mundo e da vida numa atitude mais impessoal, isto é, mais
argumentativa e filosófica, temas como o da Verdade, o Amor, Deus, o
Conhecimento e a sua importância na vertente individual mas também
social-civilizacional, a Educação em sentido amplo e radical, a Consciência,
etc. Mas é claro: tendo sempre como pano de fundo, como retaguarda
motivacional, as mesmas motivações, anseios, e desejos subjetivos profundos que
assistem à primeira parte. Só que agora a atitude é diferente, visa o exterior,
a explicação, a racionalidade pública. Mesmo quando no fundamento da explicação
racional, da argumentação, estão crenças subjetivas profundamente enraizadas,
crenças existenciais como todas aquelas que definem a minha fé básica no
Transcendente - sim, Deus, Consciência ontológica do universo; Sentido, Alma,
Lei e inteligência cósmica (Logos), etc. E por aí, fé fundamental no Homem, na
sua liberdade, e na possibilidade derradeira da sua realização plena, integral;
no limite, admito mesmo uma escatologia da salvação, mesmo que seja a da
eternidade realizada mil vezes ao longo da História, em cada homem, a cada
geração de homens. Digo-o desassombradamente.
O texto ou "noema em prosa" de maior fôlego e
alcance nesta segunda parte é precisamente aquele que tem como horizonte o da
realidade última, o fundamento ontológico do real; se quiserem, a escatologia
do real - pois não é o conhecimento da origem simultaneamente o conhecimento do
fim? Trata-se do artigo "(Con)siderações metafísicas em torno da natureza
última da realidade". Para quem é da área da filosofia, em particular da
metafísica ou da ontologia, aconselho vivamente a sua leitura, por mais
discutíveis que sejam as teses que nele defendo. Em termos muito básicos, o que
nele defendo é o seguinte:
1º - É impossível conhecer ou descrever a natureza última da
realidade, a "coisa em si", tal como Kant defende, pelo menos do
mesmo modo que conhecemos e descrevemos realidades como as árvores, as pessoas
e os frutos, pois só podemos conhecer e definir aquilo que podemos relacionar
com outras ideias e conceitos relativos; só podemos conhecer de forma relativa,
e a realidade última, sendo a última das realidades e portanto a mais
abrangente possível, não pode ser descrita ou definida por nada que lhe seja
exterior, do mesmo modo que não se pode descrever o Ser com outro predicado qualquer
fora do Ser, mas apenas dizendo que O SER É.
2º - Sabemos que a realidade última, a "coisa em
si", seja lá o que for, É, mas conhecê-la por via de categorias abstratas
como a de Absoluto ou Ser não nos chega; conhecer a realidade última de forma
mediada, isto é, por conceitos e ideias, não nos interessa EXISTENCIALMENTE
FALANDO.
3º - Assim, um conhecimento realmente interessante da
"coisa em si" só pode ser, para o ser que existe, uma outra forma de
existência. Isto é, para que a realidade última possa ser conhecida plenamente,
ela tem de ser "existida". Ela tem de ser experienciada do ponto de
vista do "ser-para-si", do mesmo modo que os indivíduos conscientes
se experimentam a si próprios e às suas vidas a partir de dentro das suas
próprias consciências, como "seres-para-si".
4º - A "coisa em si", tal como cada um de nós
próprios para si próprio, constitui um "ser-para-si", isto é, uma
subjetividade absoluta. Todas as nossas perceções das coisas, das árvores, das
pessoas, dos objetos à nossa volta, são apenas imagens, formas de
"ser-para-nós", fenómenos que se oferecem às nossas consciências; mas
se nos retirarmos a nós e às nossas consciências, o que resta dessas coisas?
Resta o "ser-para-nós", as imagens que delas mantemos nas nossas
mentes; mas o que resta fora de nós e das nossas consciências? Resta a
"coisa em si", que só pode ser um "ser-para-si" que a nós
completamente nos escapa, pois trata-se de uma outra subjetividade que nos é
absolutamente alheia, absolutamente outra.
5º - Mas repare-se que a realidade última também está em nós
e dentro de nós. A natureza profunda das nossas mentes e consciências é também
ela constituída dessa natureza última; por conseguinte, a "coisa em
si" que é ser-para-si reside também enraizada no mais profundo de nós.
Dito de outra forma, a Subjetividade Absoluta está profundamente enraizada no
fundamento da nossa subjetividade relativa.
6º - Se não podemos apor a nossa consciência relativa sobre
a natureza última do mundo no sentido de a conhecermos como conceito, teoria e
ideia, será que podemos pelo menos mergulhar nas profundidades da nossa própria
consciência no sentido de chegarmos precisamente a TOMAR CONSCIÊNCIA da sua
natureza última, isto é, do Absoluto que nela reside, e que está por toda a
parte, e fundamenta todo o Real?
7º - Será que a consciência pode chegar a tornar-se
plenamente consciente de si própria, ao ponto de em si mesma ser capaz de
dissolver a distinção entre sujeito e objeto, tornando-se plena e absolutamente
presente para si própria? E não será, em última análise, esse o modo de
chegarmos a conhecer simultaneamente a natureza e o sentido últimos do universo
e de nós próprios? Não será precisamente nesse lugar que conhecimento e
autoconhecimento podem chegar a cruzar-se, nesse infinito profundo da
Consciência? E como lá chegar? Não necessariamente pela via estritamente
cognitiva-intelectual, mas por vias mais intuitivas que incluam formas de
meditação ou contemplação, já previstas, aliás, em várias tradições espirituais
e religiosas.
Porque escolho este texto? Porque nele está refletida aquela
que é a motivação e o estilo que pautam a minha forma de buscar a verdade: uma
busca na qual todo o conhecimento se visa como pretexto para o
autoconhecimento; conhecer, e conhecer-me como sou conhecido, para usar as palavras
de São Paulo; reconhecer que, para já, estamos limitados a conhecer de forma
mediada e confusa, através do espelho das ideias e das palavras, mas que não
está fechada a possibilidade de que possamos vir a conhecer face a face, de que
possamos vir a conhecer o Sentido que subjaz a todos os sentidos.
Enfim, por tudo isto, faço votos para que adquiram o
livrito, quanto mais não seja para que vos desperte e estimule a pensar o
impensável, ou a refutar e discutir o que aqui o ali vos parece absurdo e
impossível.
A todos um bem-haja,
Ruben David Azevedo
segunda-feira, agosto 15, 2016
Reabilitar a alma como resposta para o "hard problem" da consciência - porque não?
(for english version please click here. This article has also been published in Medium community.)
Considero que a hipótese da existência da alma
deve ser tida em conta na resposta ao problema da consciência, ou, mais
precisamente, ao chamado “hard problem” da consciência, o problema que diz
respeito à natureza e origem da experiência subjetiva enquanto tal. Dito de
outra forma, considero que deve ser ponderada a possibilidade que considero
muito plausível de estarem esgotadas todas as tentativas estritamente
fisicalistas ou materialistas de dar uma resposta cabal a este problema
fundamental, e que o adágio "no brain,
never mind" deve efetivamente ser revisto ou pelo menos reinterpretado,
porquanto reflita acima de tudo um preconceito filosófico muito comum entre
filósofos, neurocientistas e cientistas cognitivos que se têm debruçado sobre o
mistério da consciência. Preconceito que é reflexo de um paradigma transversal
a várias ciências, mas que não tem propriamente base empírica e científica.
Paradigma orientador, que aponta horizontes de resposta, mas que no caso da
consciência e do mistério da experiência subjetiva talvez esteja a apontar para
o horizonte errado, pois há muito que a investigação estritamente fisicalista,
fisiológica, materialista do cérebro se debate com o problema da natureza da
consciência sem lhe encontrar uma saída consistente com esse pressuposto
orientador. Tal como já escrevi num outro trabalho,
“…por mais rigorosos que sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e
profundos que sejam os tratados que descrevem certos aspetos do seu
funcionamento, há uma dimensão da consciência que continua a escapar aos
melhores (cientistas e filósofos). Esta dimensão é precisamente o segundo nível
do problema identificado por Chalmers, o do “hard problem” da consciência.
Porque, admiravelmente, os neurocientistas são capazes de explicar em parte o
modo como o nosso cérebro identifica, por exemplo, uma face conhecida na rua,
descrevendo os processos neurológicos que lhe estão subjacentes; conseguem,
inclusive, descrever com algum sucesso o modo como o cérebro transforma os
dados dispersos que penetram pelos sentidos em padrões informacionais
reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na prática, traduz a informação
que vem do mundo (por ex., através da luz), em padrões, imagens mentais,
ideias, perceções. Aquilo que eles falham permanentemente em explicar, a “pedra
no sapato” da investigação neurocientífica, é o modo como somos capazes
de percecionar subjetivamente esses
padrões, essas imagens mentais, essas perceções. Dito de outro modo, a questão
fundamental é a de saber como é
possível a experiência subjetiva, que na prática significa perguntar
acerca da natureza da mente e do mental, da sua qualidade (qualia).” (O bosão
da consciência, Blog Casa do Ser, § 33)
Talvez esteja na altura,
portanto, de uma revolução coperniciana, também no domínio das neurociências,
que reabilite outras hipóteses, como a da alma, que possam desbloquear este
problema.
Entendo aqui a “alma” num
sentido minimalista, isto é, não no sentido de um órgão, substância ou entidade
metafísica que substitua o cérebro e as suas incontornáveis funções de
processamento cognitivo e sensorial, que hoje é mais do que inquestionável que
têm origem nos processos neurológicos; não uma alma no sentido tradicional,
isto é, origem do pensamento, da vontade, da inteleção, dos sentimentos,
emoções e perceções, mas tão-só a base, digamos, metafísica, onde todos estes fenómenos produzidos pelo cérebro se
refletem, ou seja, adquirem o seu caráter
subjetivo. Cito de novo o já referido trabalho (Idem, § 21): “O ser consciente é, pois, reflexivo, porque
dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao
fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai
no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por
mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a
perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a
produz para outrem.”
Não nego, por conseguinte, como
não podia negar face à vanguarda da investigação neurocientífica, que o cérebro
- provavelmente o mais complexo de
todos os sistemas biológicos e não-biológicos conhecidos -, seja de facto a
origem de todas as funções neurológicas e cognitivas: intelectuais, emocionais,
percetivas, volitivas, não-volitivas, etc. Mas não necessariamente da consciência
que sustenta e torna possível a experiência subjetiva.
Definiria
“alma” como uma espécie de “essência senciente”, por natureza contínua, eixo
fundamental, núcleo duro da identidade ou “si”, em cuja órbita se constrói o
“eu”, que é a identidade sociocultural. O “si” não é o “eu”, pois este último
pressupõe um conjunto de dimensões socioculturais e socio-identitárias, que
dizem respeito à história e projeto de vida do sujeito (o que chamo de
“identidade projecional” – sonhos, aspirações, objetivos de vida, etc.). O “si”
é o alicerce, a medula do “eu”, a própria condição de possibilidade de qualquer
identidade individual, porquanto seja a base de toda a reflexividade consciente
– aquilo que outrora designei por “espetador”, que situado no mais profundo e
misterioso reduto da toda a consciência individual, se constitui como
retaguarda, consumidor final, observador primeiro e derradeiro dos eventos
electroquímicos ou neurológicos do cérebro na sua face mental ou subjetiva -
precisamente o factor que faz toda a diferença entre o simples computador, que
não é consciente ou sensível aos produtos e padrões informacionais que produz,
por não possuir tal “retaguarda”, e o ser consciente, o homem ou o animal, que
não só possui dentro da sua caixa craniana o mais complexo e potente computador
biológico, mas é consciente e sensível,
de um misterioso ponto de vista subjetivo, aos seus produtos de ordem
cognitiva, pois é dotado de interioridade.
Espetador fugidio, sem
localização definida ou definível, fisicamente falando; natureza misteriosa,
“olho do espírito”. Acerca da sua natureza podem elocubrar-se várias teorias,
inclusive aquela que aventei na aventura especulativa que constituiu o trabalho
anterior já por duas vezes citado (e que não passa disso mesmo, uma aventura
especulativa como qualquer outra…).
Fundamento do “eu”, dizia, pois
toda esta esfera socio-identitária que constitui o “eu”, sendo por natureza concetual
e simbólica, seria insustentável sem a dimensão da interioridade ou
subjetividade consciente, que por sua vez seria impossível sem a base ou
fundamento de toda a experiência subjetiva, logo de toda a consciência – a dita
“alma” ou “essência contínua senciente”, que porventura será independente do
cérebro físico, ou situar-se-á num plano ontológico paralelo.
Eis algumas das razões porque
defendo que a consciência não pode ser explicada sem o recurso a esta realidade
fundamental. Embora a neurociência e as ciências cognitivas estejam perto de
explicar os processos neurofisiológicos por via dos quais o cérebro produz
perceções - que não são senão imagens e padrões mentais de carácter
informacional -, está por resolver o fulcro do problema, que tem que ver com o
modo como estas perceções – que na origem não são senão eventos electroquímicos
no cérebro – são interpretadas subjetivamente,
isto é, adquirem o caráter muito real de eventos mentais percecionáveis de um ponto de vista subjetivo, no
contexto de uma interioridade consciente. Como é que um padrão electroquímico
despoletado no cérebro de um dado sujeito que, por exemplo, se queima ao
colocar as mãos no fogo, pode ser efetivamente sentido como dor para esse mesmo sujeito, de um modo absolutamente
único e intransferível? Sim – como explicar que esse padrão originalmente
neuroquímico possa adquirir esse caráter mental de “ser-para-alguém”? Este,
parece-me, é o fulcro do problema. Sendo verdade que o nosso mundo mental é um
fluxo interminável de diferentes perceções, imagens e eventos mentais vários,
fruto de uma máquina biológica que evoluiu precisamente para ser capaz de a
todo o momento extrair informações acerca do mundo interior e exterior, pensando-o
e interpretando-o sensorialmente, é também verdade que existe um denominador
comum a todas as perceções: são sempre “nossas”, confundem-se com a identidade
do próprio sujeito que as perceciona; quer dizer, a experiência subjetiva não
se distingue do próprio sujeito da experiência; um não se entende sem o outro,
e, em boa verdade, não existe sem o outro.
Como, aliás, o próprio “eu”, ou seja, a identidade social ou sociocultural, não
existe fora do sujeito que, subjetivamente,
a interpreta e pensa conceptualmente, sendo que a
identidade enquanto constructo conceptual e simbólico é simultaneamente uma
perceção ou evento mental complexo (a “ideia de si”) e o próprio “eu”, ao qual
o sujeito se refere quando fala ou toma consciência de si próprio. Graças,
portanto, à experiência subjetiva, a identidade adquire o seu carácter
“reflexo”, ou seja, torna-se identidade de
e para alguém; torna-se em ideia autorreferencial, porquanto continuamente
parte de si para voltar a si – torna-se “eu”, portanto.
É
como se a experiência subjetiva ocorresse num estranho e misterioso reduto da
mente, onde os padrões informacionais electroquímicos misteriosamente se
transmutam em eventos mentais, perceções, sentimentos. É
como se, num qualquer “centro” mental ou fisiológico ocorresse uma comunicação,
um contacto ou sobreposição total que permite uma continuidade entre realidades de
naturezas distintas, um contacto integral, ponto por ponto, como numa
plasmagem, entre uma realidade de ordem fisiológica e outra não-fisiológica, em
que a informação electroquímica da primeira fosse transferida à segunda numa
forma, digamos, imaterial, ou da
matéria, seja ela qual for, que constitua o propriamente “mental” ou
“consciente”. Recorrendo à terminologia kantiana relativamente à chamada
“aperceção transcendental”, seria como se uma “unidade de perceção” contactasse
integralmente, ponto por ponto, com uma “unidade de consciência”, numa sobreposição
total entre ambas, só isso explicando que uma dada perceção – por ex., a visão
de uma árvore à minha frente, a partir da janela – seja percecionada como uma totalidade, isto é, uma visão integrada
à qual não falta nenhuma parte da qual eu possa ter diretamente consciência,
nas atuais condições de distância, visibilidade, etc. Escreve Kant: “…as diversas
representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas
representações minhas se
não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O
pensamento de que estas representações dadas na intuição me pertencem todas equivale a
dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo menos posso fazê-lo” (KANT, Crítica
da Razão Pura, B133-B134, pp. 132-133)
E repare-se que esta questão da
“unidade de consciência”, unificadora e integradora dos fluxos electroquímicos
do cérebro em totalidades designadas perceções, é tão mais misteriosa quanto as
neurociências ainda não foram capazes de determinar, de forma exata e
conclusiva, no cérebro como no restante sistema nervoso, nenhum “centro” onde a
referida transmutação físico-mental possa ocorrer. Não se conhece nenhum centro
fisiológico onde possam convergir os vários fluxos informacionais de caráter
neuro-electro-químico que se processam em sectores diferentes do cérebro, de
modo a formar uma totalidade, um padrão informacional complexo que possa ser
interpretado mentalmente como uma perceção complexa. Pois, como é sabido, a
formação de uma perceção complexa envolve o contributo de vários sentidos e
processos cognitivos, que ocorrem em “clusters” neuronais situados em pontos
diferentes do cérebro. Por exemplo: tenho a perceção muito evidente, coerente e integrada, de que estou neste momento sentado numa
cadeira de madeira um pouco dura, a escrever ao computador, em minha casa,
sobre uma mesa de madeira com uma textura muito polida. Pela janela do meu lado
direito entra a luz do sol; posso ouvir a música de fundo que toca na playlist
do meu computador, e os meus dedos a bater nas teclas. Tenho na boca o sabor do café
que acabei de beber e cuja chávena se encontra ao meu lado direito, sobre a
mesa, e no nariz ainda um pouco do seu cheiro delicioso. Em resumo, é este o
ambiente que me rodeia e onde me posso neste momento situar, de forma
consistente e integrada - enfim, una,
porquanto essa unidade que caracteriza a minha perceção complexa seja o reflexo
ou projeção da “unidade de consciência” que me constitui.
Ora, todos os estímulos que
constituem esta perceção complexa são processados e transformados em padrões
electroquímicos em diferentes setores do cérebro, a saber: os táteis são
processados na área somatossensória, localizada no lobo parietal; os auditivos,
no córtex auditivo, localizado no lobo temporal; os visuais, no lobo occipital,
localizado na parte de trás do cérebro. Não obstante a distância que separa os
vários setores, a experiência subjetiva é sempre una, e não fragmentária e
parcial. O fluxo de dados percecionais, embora alimentado por correntes de
informação sensorial e cognitiva de natureza distinta e com origem em pontos
diferentes do cérebro, é misteriosamente unificado
por um laço que supera e suprime essa distância; um laço que supera o
meramente o local; um laço, digamos, não-local.
Mesmo que esse centro físico bem determinado no cérebro existisse, continuaria ainda por explicar o intrigante processo segundo o qual, nesse local em particular, o físico se transformaria em mental, quer dizer, o meramente electroquímico em experiência subjetiva consciente; o como e também o porquê desse local em específico possibilitar essa estranha alquimia que permite a introdução de um conjunto de fenómenos fisiológicos e electroquímicos observáveis e mensuráveis objetivamente, no mundo não observável e não objetivamente mensurável da subjetividade, onde só o sujeito é senhor da sua interioridade. Se, por outro lado, esse centro físico não existe, resta-nos conjeturar, por exemplo, que o cérebro é ele todo, integralmente, um “grande centro”, onde a realidade, digamos, imaterial da consciência (isso a que decidi chamar “alma”) coexiste paralelamente à realidade material, fisiológica do cérebro, talvez mesmo de um modo fundamental, celular ou quântico, permitindo uma imediata apreensão e unificação, a todo o momento, dos vários fluxos de informação sensorial e percetiva processados em setores situados em áreas diferentes do cérebro; ou seja, permitindo que diferentes processos sensoriais e cognitivos se transformem, imediatamente, em perceções complexas cujo caráter essencial é o de serem percecionadas de um ponto de vista subjetivo, de forma unificada e integrada.
Web/Bibliografia
-
O
bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o
“hard problem” da experiência subjetiva - Blog Casa do Ser, link: http://casadoser.blogspot.pt/2015/07/o-bosao-da-consciencia-uma-proposta.html.
-
KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, trad. de Manuela Santos e
Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
domingo, julho 17, 2016
Angústia existencial
(Foto: por Filipe Pimentel) |
A angústia existencial tem muito que
ver com a consciência dolorosa de que se fica sempre aquém do que se pode
realizar e ser, do que se pode de mais alto pensar e sentir; a consciência do
desperdício da vida, por medo ou comodismo. É a dor de uma alma que se sente
capaz de grandes e belos feitos, que sente vocação de imortalidade... e no
entanto, se sente limitada e como que condenada a uma circunstância de vida da
qual se sente incapaz de se libertar. E tanto maior é a consciência e a dor
dessa limitação, quanto maiores são os seus sonhos e aspirações, quanto mais
alto é aquilo que pode pensar e sentir. A consciência recorrente deste
confronto entre o sonho e a realidade aparentemente intransponível da
limitação, entre a pulsão vital do ilimitado e a limitação circunstancial que,
de forma angustiada, se julga intransponível, tem de cada vez o sabor de uma
pequena morte; tem o sabor amargo do tédio e do absurdo. E este sentimento fere
mais por se saber que o tempo é curto, e que se vai morrer.
É isto a angústia.
Como ultrapassar isto? Muitas vezes,
fica-se à espera. À espera de um resgate. Espera-se que a libertação venha de
fora. E às vezes vem, mas só dura realmente se formos capazes de tomar as
rédeas da nossa salvação, se estivermos dispostos a assumir até ao fim, sem
medo ou desânimo, covardia ou preguiça, todas as consequências, boas ou menos
boas, agradáveis ou dolorosas, das nossas completas escolhas. Escolhas que se
tomam integralmente (ou que às vezes nos tomam integralmente), sem olhar para
trás. Os germens do medo e do comodismo, da dependência e do desânimo, estão
sempre em nós, nunca nos abandonam verdadeiramente, mesmo depois de vencidas as
pontuais circunstâncias limitadoras. É que, para além de vencermos as
circunstâncias, temos de saber vencer-nos a nós próprios, a todo o momento – e
isto é o essencial de toda a sabedoria. Estamos sempre em risco de “cair” numa
nova dependência, num novo estado inferior de limitação e pobreza de espírito,
frequentemente iludidos de que se tratou de uma escolha real, quando na verdade
fomos sim determinados pela nossa fraqueza, cedemos ao encantamento de sereia
do fácil e cómodo. Depois da comodidade, vem a angústia – mas então já nos
acomodamos, inclusive à própria angústia, que é o pior! Não há nada mais pernicioso
para um espírito do que uma angústia acomodada, ou um comodismo angustiado.
A ausência de luta jamais foi
sinónimo de paz. A verdadeira paz, que é paz de consciência, exige luta
permanente, e contínua vigília e atenção. Luta e vigilância contra as tentações
do medo, do fácil e do cómodo, que às vezes se rebuçam em falsas possibilidades
de escolha. Luta, que é trabalho, para manter vivos os sonhos, claras as ideias
e os propósitos, vigorosas as forças, as faculdades, as virtudes e os afetos.
Luta que, bem orientada na direção de uma vocação ou horizonte de vida, se
traduz em verdadeira paz - a paz que nasce do movimento (não da mera agitação),
que como Einstein dizia recorrendo à analogia do ciclista, é a única forma de
manter o equilíbrio na vida.
segunda-feira, março 14, 2016
Sobre o progresso ético-espiritual do Homem - apontamentos
Progresso
ético-espiritual do Homem
Ainda que possa
não existir um progresso no sentido cumulativo, uma evolução contínua, o
progresso do conhecimento, da ciência, da cultura, da filosofia, da psicologia
humana, da arte, permitirão pelo menos que cada geração tenha acesso ao
conhecimento e aos instrumentos necessários para se tornar o melhor possível,
para desenvolver plenamente as suas potencialidades, virtudes e talentos, sem
menosprezar nenhuma dimensão da sua humanidade. A tarefa do “Conhece-te a ti mesmo”
não pode ser realizada por outrém, nem o conhecimento acerca de si próprio ser
transmitido como um conteúdo já feito e pré-estabelecido; é um trabalho que só
pode ser realizado por cada indivíduo, levado a cabo e renovado por cada geração
de seres humanos, uma e outra vez, partindo quase do nada.
Neste contexto,
não sendo o progresso ético-espiritual de caráter filogenético, mas antes simbólico
e cultural, existe na medida em que o progresso do conhecimento, o acesso pleno
à cultura de todas as eras – desde logo, e em primeiro lugar, através da educação
-, colocam cada geração de seres humanos cada vez melhor posicionada para se
cumprir, quer dizer, para desenvolver o melhor das suas virtudes humanas, os
seus talentos e potencialidades, os seus horizontes e projetos de vida, cada
vez mais próximos das exigências maiores da dignidade humana – assim realmente
o desejem!
A primeira das
finalidades de qualquer Civilização digna desse nome, deveria ser, aliás, nada
menos do que isto: a realização plena da
pessoa humana em cada indivíduo, na sua singularidade, por via de uma
aprendizagem contínua e de um esforço de aperfeiçoamento incessante, num
processo de expansão de consciência que o torne mais lúcido e capaz de
aprofundar o conhecimento acerca de si próprio e da realidade existencial do
homem enquanto tal, e do universo como um todo, onde esta existência tem lugar.
No homem, a
virtude só pode estar em mais consciência, e não o contrário, o que o reduziria
progressivamente à mecânica animalidade que só em parte o constitui. Só a
consciência lhe permite uma real compreensão do mundo e da natureza das coisas,
compreensão no sentido inglês de understand
(situar-se debaixo, na base que sustenta as coisas; ver as coisas a partir
do ponto de vista privilegiado do fundamento, que lhes confere ser e verdade).
É por isso que para o homem saber não chega; factos não são suficientes, porque
são parciais, porque não contam a totalidade, mas apenas a parte; porque não
revelam toda a história. O homem aspira a conhecer; o mesmo é dizer, a
compreender desde a raiz; está na natureza do homem querer olhar para dentro da
toca do coelho, saber o que lá há, até onde vai a sua profundidade. O homem
aspira à inteligibilidade, à compreensão da teia mais geral que sustenta os factos
e lhes confere coerência e racionalidade; a curiosidade humana exige o
conhecimento das ratio essendi, a
razão de ser das coisas serem como são, e este desejo não tem quaisquer
limites.
Educação e o seu papel
Numa civilização
digna desse nome, fundada sobre o propósito fundamental da realização plena da
pessoa humana, creio ser evidente o papel crucial da Educação. Sobre a
Educação, entendida no sentido mais lato possível, recai a enorme
responsabilidade de formar, não apenas o cidadão, não apenas o técnico, não
apenas o especialista, mas o homem na sua inteireza, que contempla as dimensões
ética, cognitiva, estética, física, psicológica, emotiva-afetiva, espiritual,
etc. Cabe à Educação a função axial de, como dizia Hannah Arend, introduzir as
novas gerações ao mundo, não apenas ao “mundo social” ou “laboral”, ao “mundo
do trabalho” ou “mercado”, mas ao mundo no sentido mais radical e abrangente
possível, que se confunde em última instância com a própria Vida e as suas
exigências, com a Existência enquanto mistério e enquanto problema a resolver;
um problema com muitas variáveis – cognitiva, emocional-afetiva, existencial,
etc. Trata-se, na verdade, não de um problema secundário ou derivado, mas do problema por excelência, o alfa e o
ómega das nossas existências humanas particulares, cuja resposta significaria a
descoberta da própria ratio essendi, a
razão de ser das nossas vidas. Um problema que todos sabemos ser muito prático e central nas nossas
existências, e não meramente teórico e entendido como marginal e para
tratar “quanto houver tempo”, como um hobby privado, que em nada deve
importunar o fluir normal da corrente social, política e económica, cujos
propósitos são normalmente muitos diversos e mais “mundanos” e supostamente
mais “urgentes”. Trata-se da nossa vida e do seu sentido, tudo aspetos que
emergem nos embates e confrontos muito reais e práticos da existência, nos
momentos de grande perda, no sofrimento e na dor, nas dificuldades de relação e
comunicação com os outros, no tédio e nos vazios de sentido, na perspetiva da
morte, nas impermanências do amor, etc.
Cabe à Educação,
por conseguinte, a enorme e crucial responsabilidade de abrir ao indivíduo
todos os principais horizontes do mundo e da vida, de o colocar perante os
horizontes do conhecido e do possível – da ciência e do conhecimento em geral,
da arte e da cultura, da espiritualidade e da criação, do heroísmo ético, da
psicologia, etc. É absolutamente essencial para a formação do homem que este
conheça bem as fronteiras do espírito humano, em todas as suas vertentes e
dimensões, pela simples razão de que essas são também, globalmente, as
fronteiras do seu próprio espírito, e por conseguinte da sua humanidade. Desse
modo, ele saberá até onde pode ir, e o que poderá ele próprio realizar,
construir e criar. Saber-se-á membro de pleno direito da família humana, a quem
não é pedido somente que preserve e reproduza acriticamente um património de
conhecimento de cultura, mas que o aumente e aperfeiçoe, que o renove e
atualize, e que no seu modo de viver, nas suas ações e criações, lhe preste
continuamente homenagem vivendo a sua vida o melhor possível, de acordo com as
promessas inscritas na sua própria humanidade singular, expressão particular da
humanidade universal.
sexta-feira, agosto 28, 2015
Atravessar o deserto
Eis o que
significa atravessar o deserto: enfrentar os próprios fantasmas, os próprios
medos, os pensamentos e as mágoas do que fizemos ou não fizemos, os
arrependimentos; vencer todos esses “Ciclopes e Lestrigões” (como dizia Kavafys
no Ítaca) que todos temos dentro de nós, e teimamos em lançar à nossa
frente no caminho, e que frequentemente nos paralisam. O medo que nos inspiram
limita-nos, faz-nos desistir, impede-nos de andar para a frente e de
realizarmos a nossa plena humanidade (cuja outra face é a nossa plena
divindade, ambas sendo uma e a mesma coisa). Todos os Cristos e Budas que se
lançaram no deserto – fosse de um modo literal ou por via de uma ascese, que
sempre significa um internamento em si próprio - não tinham outra intenção
senão a de habituarem os seus olhos espirituais à escuridão, para que,
paradoxalmente, estes pudessem ter um vislumbre dessa luz plena e muito subtil
que constitui o nosso ser profundo, a nossa consciência, e que participa do
Verbo (Logos), i.e., da realidade metafísica, ontológica do mundo, a “Verdade”
ou “Lei cósmica”. Mergulhar no deserto tem o sentido de uma dúvida radical e
hiperbólica à la Descartes: esperar
que do “nevoeiro” e da aridez informe do nada emirja uma evidência, uma verdade
tão sólida e profunda que não possa ser “nadificada” pelo rolo compressor da
dúvida. Neste caso, como em qualquer caso, a verdade e certeza que se espera
que emirja, ao mergulhar no deserto, é a da própria Alma, que se espera que
tome o lugar do nada lançando a sua luz. É uma profunda e radical busca pela
autenticidade, pela essência.
É Heraclito que
diz: “Os limites da alma não é possível
descobri-los, mesmo percorrendo todos os caminhos, tão profundo é o Logos que a
sustenta.”
Se o silêncio, a
escuridão, a solidão, o vazio, a falta de estímulo sensorial, não te perturbam,
ou te perturbam menos, então já venceste. Habituaste-te à Presença inefável da
tua consciência, que tudo vê, bem enraizada na retaguarda do teu ser. Já não és
escravo de sensações, e nem sequer de ideias, porque te descobriste superior a
ambas; já não és guiado ou coagido por elas a ir por aqui ou por ali, escravo
de apetites ou ilusões, mas és tu que as guias e pastoreias. Tornaste-te
realmente no pastor dos teus pensamentos, no senhor da tua vontade, porque a
cada momento reconheces que não és exclusivamente o que pensas ou sentes, nem
sequer a soma de todos os teus pensamentos e sensações, mas a consciência que
pensa ou sente, situada sempre aquém e além deles, e a eles sempre
infinitamente superior. Essa consciência que podes entrever imperfeitamente na
retaguarda da tua mente, como um espelho que tudo reflete, nem sequer se
confunde com a tua ideia de “eu”, mas ultrapassa-a ao ponto de essa Presença te
parecer – pelo menos no início -, estranha a ti próprio, alheia, como se fosse
um “outro eu” que coexistisse contigo na mesma pessoa. Depois de te habituares
a essa Presença, tornas-te nela, e desta feita já não é ela que te parece
estranha, mas o próprio “eu” pessoal e identitário que te habituaste a
alimentar ao longo da tua vida como sendo tu, a quem dás um nome e que
reconheces ao espelho – descobres que esse “eu” não é senão uma fachada, uma
máscara, uma existência apenas nominal. A tua consciência é muito mais vasta
que os limites do teu eu nominal, embora não possas negar ao teu eu nominal a
sua missão, e a sua verdade.
Dois "eus"
É como se em mim convivessem dois "eus". Um "eu" criando,
abrindo caminho, iluminando o mundo para que nele o outro "eu" viva.
O primeiro - o meu "eu" mais profundo e sólido, a fonte da minha
consciência - cria, ilumina, abre perante mim o mundo, no qual o segundo - o
meu "eu" mais imediato e mutável, a minha vontade livre, o meu ego
pessoal e identitário - vive, age, se movimenta, existe. O primeiro
"eu" a-presenta-me o mundo, mostra-me o caminho; o segundo
"eu" a-presenta-se ao mundo, percorre o caminho. Um inconsciente,
subterrâneo; outro consciente, superficial. Os dois são eu.
O "primeiro
eu" aparece primeiro, "a priori", antes que o ego tome
consciência de si próprio, antes da emergência de qualquer forma de identidade,
personalidade, símbolo, conceito ou significado - logo, é inclusive anterior ao
próprio mundo, na sua forma existencial, pois ainda não emergiu o exist(ente).
Nesse primeiro e fugaz momento que precede o ego, a consciência é apenas luz,
pura presença, onde não há forma ou individuação. E, no princípio, o ego que
emerge, ainda embrionário, não faz mais do que "pairar sobre a superfície
das águas", ainda incapaz de distinguir na homogeneidade branca da luz da
consciência qualquer espécie de forma ou individuação. Ainda não há mundo, pois
não se consumou ainda a cisão entre sujeito e objeto; ainda não se
"separou a luz das trevas", nem se rasgou o "firmamento entre as
águas para as manter separadas umas das outras").
Cedo passamos a
existir na esfera existencial das coisas individuadas (formas, objetos,
conceitos, ideias), cujo centro absoluto é o nosso ego (mais uma forma),
esquecendo rapidamente da luz que o precede, que ilumina os objetos, que lhes
dá ser (como rapidamente nos esquecemos do ar que respiramos). Somos por vezes
levados a acreditar, como idólatras, que essas formas e objetos é que são
"reais", que o mundo que existimos enquanto indivíduos é tudo o que existe,
subsistindo por si próprio.(sim, é mesmo "mundo que existimos", e não
"em que existimos", pois é o existente que existe o mundo, no sentido
em que o mundo "é existido" pelo existente, i.e., é uma projeção,
extensão ou exsudação de si próprio).
Mas esquecemo-nos
rapidamente que sem consciência não há mundo; ou seja, que é através da
experiência subjetiva - cuja qualidade é ideal ou mental (como quem diz,
imaterial) -, que a concretude material do mundo chega a nós, ou toma forma no
nosso espírito. Dito de outra forma: a primeira, mais imediata, evidente e
"real" de todas as realidades é a consciência. Todas as outras
realidades que constituem a esfera do nosso mundo, da nossa realidade
existencial, devem a sua luz à luz da consciência, em maior ou menor grau. São,
a bem dizer, realidades mediatas, em segunda-mão, pois só a consciência é
"prima facie". E o que é realmente intrigante é que a fonte dessa luz
está radicada bem no interior de nós, sendo talvez o aspecto mais importante e
que melhor define a nossa natureza, a natureza de todos os seres sencientes, e
a própria vida enquanto fenómeno.
E saber olhar,
meditar sobre o que se está a ver (sejam objetos ou ideias), não é mais do que
captar o seu caráter fundamental de "pura presença", que é sobretudo
a consciência atravessando a forma, reconhecendo-se a si própria nela, e por
isso dissolvendo temporariamente a distinção entre sujeito e objeto,
restaurando a visão plena da consciência de si para si.
segunda-feira, julho 20, 2015
O bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o “hard problem” da experiência subjetiva
O mistério da
consciência – nota introdutória
O
filósofo norte-americano David Chalmers divide o problema da consciência em
dois níveis[1]. O primeiro, o dos “easy
problems”, tem que ver com o funcionamento dos processos neurológicos relativos
à cognição, perceção, emoção, etc. Isto é, tem que ver com a compreensão do
funcionamento da “maquinaria” biológica que faz do cérebro um extraordinário
mecanismo de processamento de informação, reconhecimento de padrões,
conhecimento, perceção, etc. A neurociência têm atalhado estas questões com
bastante sucesso nas últimas décadas, e não é de todo implausível que a maior
parte delas venha a ser resolvida satisfatoriamente nos próximos dez, quinze
anos. Este sucesso deve-se sobretudo ao progresso significativo das tecnologias
de análise e mapeamento ao serviço da investigação neurocientífica. Aliás, como
se sabe, foi posto em marcha recentemente um projeto de mapeamento total do
cérebro para os próximos anos (o “BRAIN Initiave”[2]) apadrinhado
pelo governo norte-americano, que visa precisamente fazer um mapa completo da
anatomia do cérebro e resolver – ou lançar as bases para a resolução – de
muitas destas questões.
De facto, por mais rigorosos que
sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e profundos que sejam os
tratados que descrevem certos aspetos do seu funcionamento, há uma dimensão da
consciência que continua a escapar aos melhores (cientistas e filósofos). Esta
dimensão é precisamente o segundo nível do problema identificado por Chalmers,
o do “hard problem” da consciência. Porque, admiravelmente, os neurocientistas
são capazes de explicar em parte o modo como o nosso cérebro identifica, por
exemplo, uma face conhecida na rua, descrevendo os processos neurológicos que
lhe estão subjacentes; conseguem, inclusive, descrever com algum sucesso o modo
como o cérebro transforma os dados dispersos que penetram pelos sentidos em
padrões informacionais reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na
prática, traduz a informação que vem do mundo (por ex., através da luz), em
padrões, imagens mentais, ideias, perceções. Aquilo que eles falham
permanentemente em explicar, a “pedra no sapato” da investigação
neurocientífica, é o modo como somos capazes de percecionar subjetivamente esses padrões, essas imagens mentais,
essas perceções. Dito de outro modo, a questão fundamental é a de saber como é possível a experiência subjetiva,
que na prática significa perguntar acerca da natureza da mente e do mental, da
sua qualidade (qualia).
Pois, apesar da reconhecida importância da descrição e explicação dos
processos fisiológicos que estão na origem da cognição, memória, reconhecimento
de padrões, etc., não se pode negar que o cérebro não se limita a ser uma
máquina de processamento de informação, mera exterioridade toda ela circuitos,
módulos e redes neuronais. Existe uma realidade por detrás de tudo isso que não
podemos ignorar ou “atirar para debaixo do tapete”, porque todos a
experimentamos a cada momento de uma forma intensa e vívida, e sem ela não
seriamos diferentes do nosso computador pessoal, ou, em verdade, de um simples
microondas. É a experiência da interioridade,
ou, se quisermos, da subjetividade, esse
espaço interno, irredutível e intransmissível onde decorre toda a nossa vida
mental, cognitiva, emocional, em suma, significante para nós. Se duas pessoas olham para a mesma árvore, é certo que
ativam os mesmos circuitos neuronais responsáveis pela cognição e perceção
(ativação que pode ser visível através de um scan), mas cada um chamará sua à perceção que tem da árvore, porque
cada um a ela terá acesso no reduto intransmissível da sua subjetividade (algo
que está completamente inacessível à tecnologia de rastreio, por mais
desenvolvida que seja). Se duas pessoas se queimam com um fósforo, o mesmo
acontece: cada um sentirá a dor respetiva de um modo único, subjetivo, pessoal,
intransmissível.
Toda a perceção interna ou externa
(i.e., de estados internos como a tristeza e a alegria, ou resultantes de
estímulos provenientes dos sentidos) tem uma componente subjetiva. Com efeito,
se quisermos ser rigorosos, não há perceção externa, porque toda a perceção é interna, isto é, ocorre no espaço de uma
interioridade subjetiva. E na perceção interna, enquanto experiência subjetiva,
reside o núcleo do problema da consciência.
Insistimos neste ponto: a descrição
fisiológica do modo como o cérebro produz imagens mentais, padrões, ideias, não
explica esse “ver” subjetivo (chamemos-lhe assim), que constitui a perceção
interna acessível, de forma privilegiada, exclusivamente aquele sujeito que
habita uma dada interioridade. Um supercomputador é também capaz de processar
informação e produzir “imagens”, mas estas não são percecionadas subjetivamente
por ele. É preciso que outrem que não o computador interprete essas imagens
projetadas num ecrã, um outrem dotado de
uma subjetividade.
Entendemos, por conseguinte, que o desbloqueamento do impasse do problema
da consciência - que algumas das melhores mentes consideram pura e simplesmente
irresolúvel, e outras resolúvel a seu tempo, mas ainda fora do alcance dos
nossos instrumentos técnicos e teóricos[3] - implica
uma mudança de paradigma que não atribua a emergência da consciência
exclusivamente aos processos bio-fisiológicos do cérebro, mas, quem sabe, a
dimensões do mundo quântico ainda desconhecidas. Neste trabalho apresentamos
uma hipótese que vai nesse sentido, ainda que de um modo preliminar e,
admitimos, bastante especulativo. Limitamo-nos, em parte, a insistir na
proposta já feita por alguns físicos, entre os quais Roger Penrose[4], de
que o mundo quântico talvez possa ter um papel muito importante – senão mesmo
fundamental – na resolução do “hard problem” da consciência.
Além do mais, partilhamos também da visão de Chalmers[5] segundo
a qual o fenómeno da consciência deve cada vez mais ser entendido como algo que
está de algum modo inscrito no tecido fundamental do próprio universo, uma
espécie de força ou grandeza tão fundamental como, por exemplo, a gravidade, o
electromagnetismo ou até o espaço e o tempo, e não como um simples subproduto
biológico do cérebro, sem grande mistério.
Não dispomos, nem do conhecimento, nem da evidência, nem dos necessários
instrumentos científicos e matemáticos para sustentar cientificamente a nossa proposta.
Este é um artigo, antes de mais, especulativo, filosófico. O progresso do
conhecimento também se faz de imaginação, e por vezes, tal como propunha
Einstein, é preciso recorrer a uma nova forma de pensar, se um problema persiste
em não se deixar solucionar recorrendo aos velhos modos. Por vezes é preciso
dar um passo atrás, ver a “big picture”, e aceitar que as respostas podem vir
precisamente de onde menos se espera.
Ainda que a hipótese que propomos seja falsa, ou apenas incompleta, deve
pelo menos ser atendida por quem tem o necessário conhecimento e instrumentos
para a avaliar e testar. Este artigo foi escrito por filósofos (passe a
imodéstia), e não por físicos. Se for verdadeira, total ou parcialmente,
melhor. Se não for, como é extremamente provável que não seja, terá pelo menos
sido mais um degrau no processo de tentativa e erro através do qual progride o
conhecimento. É, todavia, segundo entendemos, dever de quem pensa, pensar, e pensar diferente quando
necessário, mesmo correndo o risco de errar, mesmo correndo o risco de perder
as boas graças do seus pares, o seu estatuto, a sua reputação. Tal como
defendia Popper, o progresso científico tem paralelo com a evolução biológica:
são mais os erros, as conjeturas que se vieram a revelar falsas, do que aquelas
que se vieram a revelar verdadeiras, do mesmo modo que foram mais os erros e os
ramos sem saída da evolução biológica do que os sucessos. Todavia, sem esta
imensidão de erros e falsas partidas nenhum progresso seria possível, ainda que
o preço a pagar tenham sido gerações inteiras de esforços e sacrifícios nunca devidamente
recompensados.
As forças
fundamentais do universo – partículas, campos quânticos, e interação entre eles
São conhecidas quatro forças fundamentais no universo, cada uma delas
dispondo de uma partícula que a transporta e transmite: a força electromagnética
é transmitida pelo fotão, a força gravitacional pelo gravitão (ainda por
descobrir), a força nuclear forte pelo gluão, e a nuclear fraca pelas
partículas W e Z. Estas partículas-transporte de força (force-carrier particles) são normalmente incluídas na categoria dos
“bosões”.[6]
Acresce a existência do chamado “bosão” ou “campo” de Higgs, que confere massa
à maioria das outras partículas pelo modo como interage com elas, e está
presente em toda a parte no universo.
Com efeito, cada uma destas partículas-transporte de força (ou
“partículas mensageiras”, como também são chamadas) deve ser vista, não no
sentido clássico, como uma espécie de berlinde de matéria em dimensão micro,
mas como um “quantum” de energia, isto é, como uma certa quantidade, muito
pequena, de energia pura, inserida num campo energético mais vasto que podemos
designar por “campo quântico”. Tal como explica Gribbin (1986),
“A energia surge em
unidades definidas, chamadas quanta, cada uma das quais com uma quantidade
definida de energia, ou de massa. As partículas são pedaços energéticos do
campo, confinados a uma certa região pelo princípio da incerteza[7].”
(211)
Neste contexto, cada campo de força, seja gravitacional, nuclear ou
electromagnético, não é senão um campo de energia onde ocorrem flutuações e
trocas energéticas constantes através de pequenas unidades ou “pacotes”
energéticos que se movimentam ao longo de “linhas de força”[8]. Cada
um desses “pacotes” é uma partícula, como um fotão, um electrão, um gravitão,
ou um gluão, mas pode também ser visto como uma onda, dado que cada unidade
definida de energia possui o seu próprio campo quântico, as suas flutuações
energéticas próprias, e só pode ser convenientemente descrito através de uma
“função de onda”[9]. É daí que vêm a chamada
“dualidade onda-partícula” que caracteriza o mundo subatómico, e que está na
base da física quântica.
O que nos importa aqui sublinhar, acima de tudo, é que existem várias
espécies de campo de força, que são, na prática, campos de energia ou “campos
quânticos”, que estão por toda a parte no universo, constituídos por unidades
definidas, “quantas” de energia às quais se convencionou chamar de
“partículas”, mas que também podem ser vistos como “ondas”, dado o seu
comportamento flutuante e fundamentalmente imprevisível. Com efeito, podemos
pensar na totalidade do universo como “uma multiplicidade de campos e partículas
a interagirem” (Id.: 208).
De facto – e este parece-nos um dos pontos mais relevantes -, nós
próprios e os restantes corpos materiais do universo, todos constituídos por
partículas atómicas e subatómicas, pedaços de energia, campos quânticos, interagimos com todas e cada uma das forças
que constituem a trama fundamental do cosmos, de tal modo que se assim não
fosse, seriamos de certo muito diferentes daquilo que somos. As forças cósmicas
que melhor conhecemos – gravitacional, electromagnética, nuclear forte e fraca,
campo de Higgs -, não se manifestam por si só, mas pelo modo como interagem e
influenciam o comportamento e estrutura da matéria, não apenas a nível
microscópico mas também macroscópico. Pois vejamos: a luz propaga-se através do
campo electromagnético (cuja partícula-transporte é o fotão). Mas, apesar de a
luz estar por toda a parte, em vários comprimentos de onda, só somos capazes de
ver a luz do dia se a nossa retina – ou a matéria atómica e subatómica da nossa
retina – estiver no caminho da luz, e for por isso capaz de interagir com o
campo electromagnético (logo, com as partículas-onda fotónicas). Só somos
capazes de ouvir as pessoas que falam connosco ao telemóvel, do outro lado da
linha, porque existe um dispositivo dentro do telemóvel que é sensível, isto é,
interage com o campo hertziano (uma outra forma de campo electromagnético que
está por toda a parte) que nós, seres humanos, nos tornamos capazes de
manipular de forma a comunicarmos a grandes distâncias, através da transmissão
electromagnética de “pacotes de informação”.
Analogamente, é através da interação com o campo gravitacional – dos mais
ubíquos do universo – que a matéria se agrega para formar estrelas e todos os
restantes corpos astronómicos, que os planetas orbitam as suas estrelas
respetivas, e que nós próprios somos exatamente aquilo que somos, com a nossa
estrutura corporal adequada à medida exata da força da gravidade terrestre,
graças à qual nós e tudo ao nosso redor – até o próprio ar que respiramos - se
mantém bem preso ao chão. Parafraseando Greene (2004:255), estamos todos
imersos num mar de campos gravitacionais. Em boa verdade, estamos imersos numa
plêiade de vários campos de força, com os quais interagimos permanentemente sem
nos darmos conta, e sem os quais jamais seriamos aquilo que somos, nem sequer o
próprio universo seria o mesmo. A nossa própria história evolutiva – e a de
todos os seres vivos conhecidos – foi decisivamente influenciada pela interação
com as várias forças cósmicas, na medida em que constituíram e constituem o
contexto físico em que a evolução se deu e dá ainda. Tudo o que somos,
bio-fisiologicamente falando, diz muito acerca do que o próprio universo é.
O campo de Higgs (também designado por “bosão de Higgs”) é um outro
exemplo de um campo de força com uma importância fundamental e, segundo se crê,
verdadeiramente ubíquo (há quem o chame de “oceano de Higgs”, por permear todo
o universo como uma espécie de “relíquia gelada” dos primeiros segundos do Big
Bang[10]). Segundo
se crê, é através da interação, a um nível quântico bastante profundo, com o
campo-partícula de Higgs (o tal “bosão”), que todas as outras partículas
subatómicas adquirem massa, e, por inerência, toda a matéria. Por conseguinte,
uma partícula, como, por exemplo, um electrão ou um protão, têm tanto mais
massa quanto maior for a sua interação com o campo de Higgs; isto é, dito de
outra forma, quanto maior é a resistência
que o campo de Higgs oferece ao movimento dessa partícula. Outras
partículas, como o fotão por exemplo, pura e simplesmente não têm massa, visto
que são tão pequenas que passam despercebidas ao campo de Higgs, i.e.,
simplesmente não interagem com ele.[11]
A nível macroscópico, todos podemos de facto “sentir” o campo de Higgs,
em especial quando experimentamos um movimento de aceleração (como quando o
carro arranca subitamente e ficamos com as costas pregadas ao assento, ou
quando fazemos uma curva apertada na estrada e somos como que projetados na
direção do movimento). Na verdade, o campo de Higgs pode ser uma forma de
explicar a lei da inércia, segundo a qual todos os corpos tendem a resistir às
mudanças de estado (do repouso ao movimento, do movimento ao repouso).[12]
Quanto maior a massa do corpo (ou seja, a sua quantidade de matéria), maior é a
resistência que oferece, o que não admira porque mais matéria significa mais
partículas, logo, mais resistência oferecida pelo campo de Higgs a nível
quântico.[13]
Um bosão da consciência? – o fenómeno da
experiência subjetiva como emergência de uma possível interação entre a matéria
do cérebro vivo e um campo quântico (ainda) desconhecido
A tese que aqui propomos é a de que a consciência, em particular enquanto
experiência subjetiva (awareness) da qual todos os seres vivos
sencientes são dotados, é não apenas produto emergente do cérebro vivo, mas
também de uma força cósmica ainda por explicar e descrever, que se comporta de
modo semelhante às forças já descritas, i.e., através de partículas, campos
quânticos ou campos de força. Mais concretamente, propomos que existe uma
espécie de “bosão” ou campo quântico que, em
relação com a matéria do cérebro vivo, faz emergir a consciência ou vida
mental, tornando possível a experiência subjetiva nos seres vivos. Propomos que
existe uma espécie de partícula-transporte da consciência semelhante às que
assistem às outras forças, mas muito mais subtil. Esta partícula ou campo, ao
interagir com o cérebro, tornaria possível a experiência subjetiva, condição
indispensável à existência de uma interioridade mental.
Não pretendemos com isto defender uma versão maximalista de um qualquer
tipo de “substância” dotada de todas as faculdades intelectuais, cognitivas e
emocionais do sujeito consciente (muito semelhante, em todos os aspetos, a uma
“alma”), não deixando qualquer margem de participação às funções bio-fisiológicas
do corpo em geral e do cérebro em particular na realização destas faculdades.
Não defendemos nenhuma espécie de teoria da “encarnação” da consciência num
corpo físico, visto apenas como um continente ou depósito dessa substância,
passivo, tornando irrelevante o cérebro e as suas funções. Propomos, sim, uma
versão minimalista tendente a explicar, exclusivamente, a realidade da
experiência subjetiva, partindo do pressuposto inegável de que o cérebro,
enquanto complexo biológico – na verdade o mais complexo dos mecanismos
biológicos conhecidos – é de facto a origem de todas as funções neurológicas
conhecidas: intelectuais, cognitivas, emocionais, voluntárias e involuntárias,
na linha do que nos mostra a vanguarda da investigação neurocientífica. Admitimos, inclusive, o pressuposto
fisicalista do no brain, never mind (sem
cérebro não há mente). O que negamos, por outro lado, é que as funções
fisiológicas do cérebro vivo sejam o único factor responsável pela consciência,
i.e, que esta seja um produto exclusivamente
bio-fisiológico. Noutras palavras, propomos que sem esta interação misteriosa
entre a matéria do cérebro vivo e o que nós designamos por “bosão da
consciência” (algo que só um mecanismo da complexidade de um cérebro pode
conseguir) a um nível quântico bastante profundo, simplesmente não há vida
mental nem consciência (logo, no
conscienton, never mind).
Propomos que esta interação do cérebro – ou de algo que emerge do cérebro
biológico vivo – com o nível quântico fundamental desta partícula-campo que
está por toda a parte, semelhante, pelo menos nesse aspeto, ao bosão-campo de
Higgs – é o que torna possível a emergência da experiência subjetiva no domínio
de uma interioridade mental (não apenas subjetiva mas pessoal, se falamos de seres intelectualmente mais complexos tais
como o homem). Como se o cérebro – repetimos: o mais complexo e extraordinário
mecanismo biológico conhecido – fosse capaz de “sintonizar-se” com um
determinado nível quântico fundamental, inscrito na trama mais básica do tecido
cósmico, associando-se a ele para produzir consciência, vida mental,
subjetividade. A possibilidade dessa interação diferenciá-lo-ia, por ex., de
uma simples máquina de processamento de informação (vulgo computador), que por
muito sofisticada e rápida que seja a fazer cálculos, não pensa, não sente, em resumo, não tem vida mental ou interioridade; ou, para utilizar a terminologia
filosófica em voga, não tem qualia.
Não defendemos com isto que uma máquina não possa vir a adquirir a sofisticação
suficiente para produzir ou simular
pensamentos, sentimentos e emoções, mas não terá de facto interioridade, vida
mental, qualia, enquanto não for
capaz de “sintonizar-se” a nível quântico com esta partícula ou campo quântico
de energia (o tal hipotético “bosão da consciência”), algo que só um mecanismo
da complexidade de um cérebro pode fazer, através de um processo ainda
desconhecido.
Embora o ser consciente seja dotado, tal como um computador, de um hardware, ou seja, de um mecanismo capaz
de processar e armazenar informação (o cérebro), indispensável à sua vida
mental, é além do mais sensível à
informação produzida, sendo capaz de visualizar
mentalmente uma imagem, uma ideia, um significado; é também capaz de
percecionar subjetivamente uma sensação física (dor, quente, frio, etc.), tudo
no espaço irredutível de uma interioridade, uma espécie de dimensão imaterial
constituída exclusivamente de estados mentais, na qual o fenómeno electroquímico
só pode existir na sua face mental; qualquer estado mental (ideia, imagem
mental, padrão) ao projetar-se no espaço mental encontraria eco numa retaguarda,
um limite que não é indiferente à ideia projetada, condição sine qua non da reflexividade. O ser consciente é, pois,
reflexivo, porque dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao
fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai
no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por
mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a
perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a produz para outrem.
Ora, esta subtil “retaguarda”
consciente que, segundo sugerimos, torna possível a subjetividade, é
constituída pelo que designo por núcleo
quântico da consciência, que talvez se comporte como uma espécie de “campo
de força”, que, tal como qualquer outro campo – p. ex. os campos gravitacional,
nuclear forte e fraco, electromagnético ou o campo de Higgs – resulta do
intercâmbio de “quanta” ou partículas de energia. Estas partículas, embora
ubíquas, embora presentes, tal como supomos, em toda a parte no universo, só
poderiam efetivamente influenciar sistemas físicos de grande complexidade, tais
como cérebros, ao ponto de, interagindo com eles, fazer emergir a experiência
subjetiva nos seres vivos. Como se, em termos quase metafóricos, a consciência
existisse como potência no tecido cósmico mais fundamental, aguardando que
certos sistemas atingissem suficiente complexidade para com ela interagir e
fazer emergir sujeitos conscientes.
Deste modo, sugerimos que consciência não é produzida, nem apenas pelo
cérebro físico (pressuposto fisicalista), nem apenas por uma espécie de “alma”
dotada de todas as faculdades da consciência, mas antes por uma relação misteriosa, ao nível quântico, entre o cérebro
e um determinado campo de força ou quântico, análogo ao de Higgs mas mais
subtil, ou então com uma espécie de “partículas-transporte da consciência”,
análogas aos fotões ou gravitões, existentes a um nível quântico muito subtil
do tecido cósmico. Esta consciência não estaria toda dada já no tecido
cósmico, a priori constituída, sendo apenas uma potência aberta, uma
possibilidade, tal como o campo de Higgs não é a própria massa já constituída,
mas a condição de possibilidade para que a massa exista nos corpos materiais.
Seria - não é demais repetir - como se o tecido mais fundamental do
cosmos contivesse um potencial de consciência, que só seria atualizado em
condições muito particulares, isto é, a níveis muito elevados de complexidade,
ao nível dos que permitem a vida e a emergência de mecanismos biológicos
altamente complexos, como o cérebro. Assim, certas possibilidades inscritas a
níveis quânticos fundamentais do tecido cósmico iriam sendo atualizadas à medida
que o próprio cosmos se fosse complexificando, e encontrando, na sua própria
matriz, os germens de novas emergências, no decorrer do processo de evolução e
expansão.
Isto conferiria, não o negamos, um caráter teleológico à evolução do
universo, como se este evoluísse em direção à concretização de certos
objetivos, inscritos a priori, enquanto potências, na trama fundamental do
cosmos, numa espécie de evolução por desdobramento de certas potências básicas
(entre as quais, a consciência).
Eis, em síntese, a ideia fundamental deste artigo: a consciência enquanto experiência subjetiva é um produto emergente da
relação entre o cérebro e o nível quântico das partículas ou campos quânticos
(os “conscientões”). Este nível quântico seria mais subtil, i.e., situar-se-ia
a um nível mais fundamental que o nível das quatro forças físicas conhecidas,
ou seja, gravidade, forças nucleares forte e fraca, e electromagnetismo. Um
nível tão fundamental que só um dispositivo biológico suficientemente complexo
poderia com ele interagir de modo a produzir uma nova espécie de força – a
consciência (tal como, à guisa de analogia, os efeitos da gravidade, a mais
fraca de todas as forças conhecidas, só se manifesta significativamente em
corpos de grandes dimensões)[14].
Vejamos: não pretendemos que a consciência ou vida mental subjetiva
exista como que de modo independente, fora
do sujeito ou dispensando um, a priori já totalmente constituída na sua
estrutura fundamental, a esse nível quântico, como uma espécie de “homúnculo”
cósmico, do mesmo modo que a massa ou gravidade não estão constituídas a priori,
como forças, nas suas partículas ou campos respetivos. Todo o campo de força se
manifesta pelo modo como interage com a matéria: a massa emerge da relação
entre certas partículas atómicas de maior dimensão, como protões e neutrões,
com o campo de Higgs; a gravidade – supõe-se - emerge do intercâmbio de
gravitãos entre os átomos da matéria (quanto mais massa ou quantidade de
matéria tem um corpo, mais forte é a sua força de atracão gravítica); de modo
análogo, também a consciência, isto é, a condição de possibilidade da
experiência subjetiva emergiria, supomos, da relação entre a matéria neuronal
(p. ex. a nível atómico ou subatómico), de apenas um módulo ou cluster neuronal localizado, ou da
totalidade do sistema neuronal, e as tais partículas ou campos quânticos que
designamos por “conscientões”.
A questão que se coloca é a seguinte: será implausível que um campo de
força ainda desconhecido seja parcialmente responsável pela emergência da
consciência enquanto experiência subjetiva? Propomos, precisamente, que a
resposta é sim, e que portanto o cérebro será de algum modo afetado por essa
força fundamental, tal como qualquer corpo, de modo análogo, é afetado pela
gravidade, ou um simples íman é afetado pela força electromagnética, ou o
núcleo atómico se mantém unido através da força nuclear forte.
A visão fisicalista convencional defende que a consciência é um produto
exclusivo do cérebro, uma emergência que resulta de processos neuro-biológicos
misteriosos que, apesar de toda a nossa sofisticação tecnocientífica, continuam
a escapar-nos. Daí o filósofo Chalmers se ter referido ao problema da
consciência como um “hard problem”.
Não obstante todas as dificuldades, este paradigma da consciência que
tudo reduz ao fisiológico mantém-se vigente como uma ortodoxia materialista
entre a comunidade de investigadores. O impasse atual na resolução do “hard
problem” da consciência talvez exija uma mudança de paradigma que abra a porta
a outras possibilidades, por mais estranhas que possam parecer. Não dizemos que
um planeta produz a sua própria gravidade, mas antes que a matéria de que é
constituído é afetada pelo campo gravitacional, sendo que a face visível dessa
influência é, por ex., a queda de um corpo, as órbitas dos planetas, ou a
deflexão da luz de uma estrela distante; não dizemos que um corpo produz a sua
própria massa, mas antes que as partículas atómicas e subatómicas que o
constituem são afetadas por outra força mais fundamental – o campo de Higgs;
analogamente, será assim tão implausível
que a matéria do cérebro seja afetada por uma força que lhe é exterior,
inscrita de algum modo a nível quântico, sendo a face visível dessa influência
precisamente a consciência enquanto experiência subjetiva?
Mas como? Poderíamos supor que os
átomos do cérebro intercambiassem entre si estas partículas-transporte, através
de um campo de força que abrangesse toda a estrutura neuronal do cérebro, uma
espécie de “rede quântica”[15] de
tal forma complexa e ao mesmo tempo subtil, abrangente e forte ao ponto de ser
capaz de superar a dispersão fragmentária dos fenómenos neurológicos, unindo-os
num todo quase indestrutível, uma “unidade de consciência” que poderíamos
designar de “proto-sujeito”, por se tratar do substrato quântico de toda a
experiência subjetiva, e consequentemente a base da própria subjetividade. Esta
“rede quântica”, que designamos por
núcleo quântico da consciência, seria o ponto de origem do continuum do “si”, ou seja, o eixo
irredutível, uno que concretiza aquela cisão entre consciência e mundo que caracteriza o “despertar” subjetivo
do sujeito, condição fundamental de todo o pensar e todo o conhecer. Seria,
para usar uma metáfora cinematográfica, como a tela onde toda a ideia, todo o
padrão informacional produzido pelo cérebro se projetaria, e seria efetivamente percecionado subjetivamente como mental. A tal tela que permite o
estar-desperto (being-aware) que
caracteriza a consciência, desperto ao mundo e também para si próprio, sendo
capaz de auto-referência, de consciência
de si. Sem esta espécie de “embasamento” consciente, toda a perceção se
dissiparia num nada, pois não existiria uma “unidade de consciência” que unisse
os vários fragmentos de imagens, perceções, representações mentais, numa única
perceção dotada de uma “unidade de representação” que a consciência
reconheceria como sua por com ela se
identificar completamente.
O filósofo alemão I. Kant, na Crítica
da Razão Pura, escreveu, muito a propósito, que “…as diversas
representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas
representações minhas se não
pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O pensamento de
que estas representações dadas na intuição me
pertencem todas equivale a dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo
menos posso fazê-lo”[16].
Ou seja, não poderíamos, por exemplo, ter perceção visual subjetiva de
uma árvore à nossa frente, se a imagem mental produzida pelo nosso cérebro não
encontrasse pela frente uma consciência que, precisamente por ser unificada (um
“eu penso” para falar como Kant), confere “unidade de consciência” aos
diferentes fragmentos de perceção que constituem a imagem mental da árvore: “Se
qualquer representação particular fosse completamente alheia às demais, se
estivesse como que isolada e separada das outras, nunca se produziria alguma
coisa como o conhecimento, que é um todo de representações comparadas e
ligadas.”[17]
Com efeito, esta “unidade de consciência” ocorre espontaneamente (isto é, imediatamente, inconscientemente), através
daquilo que Kant designa por “unidade originariamente sintética da aperceção”[18], de
tal modo que o resultado desta síntese está depois em condições de ser apresentado à consciência como algo
unificado: uma imagem mental, uma ideia, um conceito. Dito de outro modo, só há
perceção subjetiva, conhecimento, quando aos processos cognitivos que produzem
perceções, imagens mentais, padrões, se associa um “espetador”, essa
consciência unificada, esse “eu penso” disposto a receber esses produtos, a tomar consciência deles na sua unicidade
(que é, basicamente, reflexo da própria unicidade da consciência do “espetador”).
Tal como diz Kant, “…a recetividade,
só unindo-se à espontaneidade, pode
tornar possíveis conhecimentos.”[19]
Só é possível a perceção subjetiva (e, por consequência, o conhecimento),
se todos os padrões, ideias, imagens mentais produzidas pelo cérebro se
submeterem à consciência unificada, de tal modo que ela própria, isto é, o “eu
penso” se possa identificar com essa perceção, encontrar-se nela, não só no seu
todo mas em cada uma das suas partes, de tal forma que o sujeito lhe possa
chamar de sua (“A minha dor”, “O meu
sentimento”; “A minha memória”). O
reconhecimento imediato, espontâneo, da unidade de uma perceção por parte do sujeito
espetador, é simultaneamente o reconhecimento da unidade do próprio espetador,
refletida na unidade da perceção. Uma dor percecionada de forma
fragmentada, parcialmente, não é uma dor minha.
Tem de haver uma sobreposição total, imediata, entre a consciência unificada do
“espetador” e os estados mentais, ou não pode haver experiência subjetiva. Sobreposição
que implica contacto, cuja natureza
constitui o grande mistério da experiência subjetiva: contacto entre o quê, ou entre o quê e quem, e como? Duas substâncias à la
Descartes? Apenas uma? Qual a natureza da consciência unificada, do “espetador”
privilegiado?
Com efeito, cremos que existe um facto que concorre a favor do caráter
quântico desta “consciência unificada” (o reduto do “espetador”), condição da
própria unidade de qualquer espécie de experiência subjetiva (a tal “rede
quântica” que propomos). Pois vejamos: a produção cerebral de qualquer padrão
ou imagem mental (sensação, perceção visual, etc.) implica a ativação de várias
áreas ou “clusters” neuronais separados, em simultâneo, cada um responsável por
diferentes funções cognitivas. Isto é, apesar de áreas diferentes, distantes
entre si, serem responsáveis pela produção de uma mesma imagem mental, a
experiência subjetiva dessa mesma imagem é sempre una, pelo que seria de
esperar que fosse possível localizar no cérebro uma espécie de “centro da
experiência subjetiva”, onde todos os processos concorrentes na produção de um
conteúdo mental convergissem, num ponto bem determinado, para dar origem à
experiência subjetiva de uma perceção unificada. Ora, tanto quanto se sabe,
esse centro não existe. Como é então possível que uma imagem mental seja
percecionada subjetivamente como uma unidade irredutível, se os processos que
lhe dão origem ocorrem em pontos separados do cérebro, e não existe um local onde estes possam convergir? É
como se, na verdade, não existisse um centro bem localizado para a experiência
subjetiva, ou como se este “centro” estivesse em toda a parte e em parte
nenhuma do cérebro, isto é, como se fosse não-local.
Isto é, se o nosso cérebro for colocado sob um scan, precisamente enquanto
ouvimos a 9ª sinfonia de Bethoven, veremos diversos “flashes” em pontos
separados do cérebro, uns responsáveis pela audição, outros pelo reconhecimento
de padrões, etc., enquanto, ao mesmo tempo, sem qualquer interregno ou lapso
temporal significativo, experienciamos subjetivamente, unificadamente, a
própria melodia. Ou seja, a imagem mental é como que unificada permanentemente,
mas de uma forma não-local, sem centro definido. Como bem se sabe, a
não-localidade é um aspeto da realidade quântica que tem sido corroborado uma e
outra vez por diversas experiências e observações, que apesar de extremamente
contra-intuitivo, parece fazer parte do trama mais fundamental do cosmos,
contrariando os fundamentos da visão clássica da física.
Há algo que para nós é uma evidência: a intensidade e vivacidade da
experiência subjetiva, seja qual for o seu conteúdo cognitivo, é justificação
mais do que suficiente para a crença na realidade deste fenómeno. Poderíamos
inclusive falar, neste caso, numa crença fundacional, auto-evidente, talvez a
única que exista. De todos os fenómenos do universo, este é talvez aquele do
qual temos mais certezas e garantias empíricas, precisamente porque somos dele
testemunhas imediatas e privilegiadas. Mais até do que a chuva, o fogo, ou a
explosão de supernovas, porque para cada um destes fenómenos há sempre a
possibilidade da alucinação, do sonho, do erro de perceção, do erro de cálculo.[20] Não
devemos, por isso, negar o carácter cosmológico do fenómeno da consciência,
remetendo-o para um mero subproduto biológico, sem mais, procurando ignorar que
este também deve caber numa “teoria de tudo”, por ser precisamente o mais
vívido dos fenómenos que podemos experienciar, e inclusive a nossa condição de
possibilidade para experienciar seja o que for.
A perceção subjetiva imediata, mesmo do fogo ou da chuva sonhada, é uma
realidade inegável, porque a sua negação implicaria a negação de toda e
qualquer experiência subjetiva, mesmo da experiência do próprio pensamento
sobre a possibilidade da negação. Repare-se: mesmo que negássemos um “eu
penso”, uma identidade como algo de auto-evidente, não poderíamos negar a
experiência subjetiva enquanto tal, porque se, como Kant admite, podemos de
algum modo “deduzir” a unidade do “eu penso” da unidade de uma dada perceção
(que é, no fundo, uma racionalização a posteriori a partir do imediato de uma
perceção subjetiva), a partir de um esforço racional para compreender a origem
e razão de ser dessa unidade, não podemos fazer o inverso, isto é, deduzir da
unidade abstrata do “eu penso” a própria perceção subjetiva. Uma experiência não pode ser inferida a
partir de um conteúdo cognitivo, de premissas num raciocínio, porque experiência subjetiva e conteúdo
cognitivo têm naturezas (qualidades) distintas. Uma experiência
simplesmente é, ou seja, vale qualitativamente pelo que é. A razão é que,
quanto à experiência subjetiva, estamos a falar, não de um objeto, não de um
conteúdo cognitivo, mas de uma experiência qualitativa
básica que vale por si própria, pela experiência que suscita, isto é, não
pode de modo algum ser inferida a partir de um raciocínio, de um conteúdo
cognitivo: ou se experiencia ou não se
experiencia. Calculo mentalmente 20 x 20, e concluo que é igual a 400.
Embora a evidência deste resultado seja um produto lógico, a experiência
subjetiva que dele tenho, enquanto imagem mental, não o é, mas constitui ainda
assim a condição básica da própria experiência da evidência lógica, o seu
substrato. A sua qualidade, enquanto experiência subjetiva, situa-se a um nível
diferente que o da quantidade, isto é, do que o próprio conteúdo cognitivo do
pensamento, tal como o número de passos que dou enquanto ando, a intenção ou a
rapidez com que o faço, é qualitativamente diferente do chão que serve de base
ao meu andar, independentemente de como o faço, ou com que objetivo. Todavia,
sem o chão não haveria andar. O mesmo, diríamos nós, se passa com o
“embasamento” (o tal “espetador”) que torna possível a qualidade de uma
experiência subjetiva, independentemente do seu conteúdo.
Descartes, depois de colocar tudo em dúvida (sentidos, razão, mundo)
concluiu que só uma coisa era indubitável – o facto de pensar, e de o fazer
enquanto sujeito que pensa (“Cogito ergo sum”). De facto, negar que se pensa é
negar a própria possibilidade de se pensar a negação do pensamento, porque ao
se pensar a negação já se está a pensar. Mas, mesmo que fossemos mais fundo e
admitíssemos que, na verdade, não pensamos de todo (porque, suponhamos, há a
possibilidade de um “génio maligno” nos fazer acreditar que pensamos por nós
próprios quando estamos simplesmente a ser manipulados), é absolutamente
inegável que, em qualquer momento do pensamento, possuímos experiência
subjetiva de qualquer coisa, de um modo imediato, pessoal e intransmissível.
Isto é: podemos ser em tudo enganados, manipulados, como no exemplo do
génio maligno; pode haver algo ou alguém que se substitua a nós em todos os
nossos processos de pensamento, perceção, etc. Mas ninguém nos pode substituir
na experiência subjetiva. Essa é só nossa. Ninguém pode, neste sentido,
substituir o espetador que se
encontra no reduto fundamental da nossa consciência. Dito de outra forma, as
funções neurológicas podem ser simuladas (p. ex., num computador), mas a experiência subjetiva, enquanto tal,
não pode jamais ser simulada. Ou existe ou não existe porque, enquanto tal,
só pode existir para o sujeito que a experimenta.
Esta irredutibilidade é que nos deve levar de facto a pensar se a
consciência não deve ser tratada, cada vez mais, como expressão de uma
realidade mais básica e fundamental, situada ao nível quântico, ao invés de uma
mera emergência de segundo ou terceiro grau de processos bio-fisiológicos, na
prática reproduzível artificialmente a longo prazo, desde que se possua a
“maquinaria” certa.
Sem este “embasamento consciente” que emerge do núcleo quântico da
consciência, também a capacidade de deliberar e decidir, ou seja, o exercício
efetivo de uma vontade, fica comprometido,
porque toda a deliberação implica abstração, reflexão, exercício livre de um
pensamento que livremente analisa, isto é, fragmenta, escrutina, e também
sintetiza, tudo fenómenos conscientes que só podem ocorrer se, algures no
reduto mais fundamental da mente, existir um observador. Ora, este observador é antes de mais, como já vimos, um
espetador, porque na realidade a sua
função não é nem pensar, nem deliberar, nem decidir.
Como já dissemos, a partícula-campo do “conscientão”, esse tal reduto
quântico fundamental do cosmos (o “bosão da consciência”) não pensa, não delibera, não decide, não tem vontade, em suma, não é ativo (pelo menos em si próprio).
Não é um sujeito a priori inscrito na trama mais básica do universo, mas apenas
uma força, uma espécie de energia muito subtil que, por alguma razão, é capaz
de se relacionar com o cérebro vivo de modo a fazer emergir a consciência. A
sua função, repetimos, é a de fazer emergir o espetador, tornando, ao mesmo tempo, viável e útil o próprio
cérebro enquanto máquina de processamento de informação, reconhecimento de
padrões, pensamento, emoção, vontade.
Esta força quântica, se assim lhe quisermos chamar, ao fazer emergir a
experiência subjetiva, confere, de facto, autonomia
ao cérebro, porque se não existisse ninguém a “observar” o que acontece no
espaço mental imaterial, se não existisse esta fugidia figura do espetador privilegiado, origem e
fundamento do qualia, as múltiplas
possibilidades e funções de que dispõe a complexa máquina cerebral não poderiam
cumprir-se em toda a sua extensão. Tal como acontece num supercomputador, por
mais sofisticado que seja. Enquanto a inteligência artificial não for capaz de
simular este “embasamento”, e de o integrar num hardware, jamais um computador será um sujeito. Dito de outro modo, enquanto a inteligência artificial não
for capaz de criar um hardware suficientemente
complexo para interagir com este campo quântico fundamental, caracterizado por
partículas ou “quantuns” de energia, mais subtil que a própria gravidade,
dificilmente será possível produzir robôs com vida mental.
Mesmo que tenhamos dúvidas quanto à sua natureza, não podemos ter dúvidas de que é absolutamente necessário que exista um
espetador, porque sem ele nenhuma perceção é possível, e sem perceção nada
daquilo que é típico de um sujeito é possível: nem conhecimento, nem
pensamento, nem vontade. Sem um espetador, isto é, sem um “consumidor final” recetivo aos produtos do cérebro
(imagens mentais, representações, padrões, sensações, emoções, etc.), a
hipercomplexidade do sistema neurológico não faz qualquer sentido. Porque esta
hipercomplexidade não é um fim em si própria, mas está ao serviço de uma
subjetividade.
Processamento de informação sem espetador seria como um computador pessoal
a funcionar numa sala vazia, sem ninguém por perto para interpretar a informação
projetada no ecrã.
Podemos, naturalmente, de acordo com a visão fisicalista tradicional,
supor que este espetador é também ele um produto do cérebro, mais uma função que
se desenvolve paralelamente a todas as outras funções neurológicas. A
questão-chave está em saber se efetivamente o cérebro, não obstante toda a sua
complexidade, suporta sozinho a produção, simultaneamente, da função do
espetador – i.e., da subjetividade que permite a experiência subjetiva – e de
todas as outras funções mentais, cognitivas, emocionais, etc., através das
quais ele traduz o mundo em conhecimento. Uma outra questão-chave está em saber
- caso isso não seja assim mas antes do modo como propomos - o que torna o
cérebro particularmente sensível ao tal nível quântico fundamental onde se
situa o hipotético “bosão da consciência”, essa espécie de partícula-campo
situada a um nível quântico bastante profundo.
Voltamos a insistir neste ponto: este “espetador” não é um ego, não se
confunde com o meu eu, a minha identidade, a minha “alma”. Ele é a condição de
possibilidade, aberta pela relação entre o cérebro e o campo quântico muito
subtil das partículas ou “quantuns” da consciência (os “conscientões”), de todo
o funcionamento autónomo normal do cérebro, o ingrediente sem o qual este não
cumpre a sua real função, função esta que é a razão de ser de toda a sua maquinaria
biológica, que é a de fazer emergir uma nova dimensão de realidade que não
encontra paralelo em nenhuma outra parte do mundo físico – a vida mental ou
experiência subjetiva.
À luz desta proposta, podemos especular que o cérebro, com toda a sua
maquinaria, todo o seu hardware
biológico, com todas as suas funções cognitivas, percetivas, de processamento e
armazenamento de informação, tem como principal função a de “traduzir” o mundo,
isto é, transformar aquilo que lhe chega, os sense data, os inputs, em
informação passível de ser interpretada e utilizada por uma subjetividade, que
não terá necessariamente a mesma origem bio-fisiológica que as restantes
funções cerebrais.
Talvez a emergência da consciência enquanto experiência subjetiva seja a
expressão de um modo de o universo se conhecer a si próprio, ou melhor, de
“regular” a sua própria evolução no sentido de uma maior complexidade, como se
procurasse ver-se “desde de dentro”, experimentar-se a partir de diversos pontos
de vida constituídos a partir de diversas singularidades subjetivas. Se
pensarmos que a consciência é um fenómeno real, incontornável, e que cada um
dos seres vivos sencientes e conscientes é, também, universo ou parte dele,
então talvez esta ideia não pareça assim tão descabida ou despropositada. Acaso
será provável que um universo tão complexo, do qual conhecemos pouco mais de
4%, não tenha sido capaz de criar as condições para se conhecer ou “regular” a
si próprio através de múltiplas formas de vida e consciência? Não implicaria
isto já, de algum modo, um potencial de consciência inscrito na trama mais
básica do cosmos, à espera de se atualizar a partir de um determinado nível de
complexidade da matéria, sendo a biológica, sem sombra de dúvida, de todas a
forma de matéria mais complexa que se conhece?
Bibliografia
KANT, Immanuel
(1997), Crítica da Razão Pura, trad.
de Manuela Santos e Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Webgrafia
LEWIS, Tania (2014, 5 de junho), “Ambitious
Brain-Mapping Project's Science Goals Revealed”, Live Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/46143-brain-initiative-unveils
roadmap.html?cmpid=514627_20140607_25507726.
Lewis, Tânia (2013, 31 de maio), “Will
We Ever Understand Consciousness? Scientists & Philosophers Debate”, Live Science. Acessado a 8 de
junho de 2014, em http://www.livescience.com/37056-scientists-and-philosophers-debate-consciousness.html.
THAN, Ker (2005, 8 de agosto), “Why
Great Minds Can't Grasp Consciousness”, Live
Science. Acessado a 8 de junho de 2014, em http://www.livescience.com/366-great-minds-grasp-consciousness.html.
[1] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[2] Sigla para Brain
Research through Advancing Innovative Neurotechnologies. Ver Lewis, Tania
(2014, 5 de junho).
[3] O filósofo
britânico Colin McGinn é um exemplo dos que defende a insolubilidade do
problema da consciência, por uma questão de incapacidade da consciência em
compreender-se a si própria. Neurocientistas como Christof Koch, por outro
lado, defendem que o problema é solúvel no quadro do experimentalismo
neurocientífico, pelo que a sua visão se mantém num registo fisicalista
convencional (Ver artigo da Live Science sobre o debate acerca da natureza da
consciência que decorreu durante o “World Science Festival” em 2013, que reuniu
os painelistas Colin McGinn, Christof Koch, Nicholas Shiff e outros [Lewis,
Tânia, 2013, 31 de maio]).
[4] Ver Than, Ker (2005, 8 de agosto).
[5] Ver Ibidem.
[6] A propósito das forças e
correspondentes partículas-transporte, ver Greene (2004: 254-256) e CERN, “The
Standard Model” (2014).
[7] O
princípio de incerteza tem que ver com o carácter indeterminado e
probabilístico da mecânica quântica. Cada partícula-onda pode ser descrita
segundo uma “função de onda”, que mais não é senão um campo de probabilidades
acerca da sua posição num dado momento. Não é possível saber com absoluta
exatidão a posição em que certa partícula vai estar num dado momento partindo
de certas variáveis como a sua posição anterior, o momento angular ou a
velocidade, porque uma vez medida uma dessas variáveis, as outras tornam-se
impossíveis de medir. Não é possível saber exatamente para onde uma partícula
se dirige, nem que caminho seguiu para passar de A a B (ver Gribbin, 1986:198).
Ademais, “(…) Podem medir com precisão a quantidade de movimento de um
electrão, mas então a sua posição é indeterminada. O simples acto de atribuir
uma localização específica a um electrão introduz uma perturbação incontrolável
e indeterminada no seu movimento, e vice-versa. Além disso, esta restrição
incontornável ao nosso conhecimento do movimento e localização do electrão nãoé
simplesmente o resultado de uma deficiência experimental: é inerente à própria
natureza.” (Davies e Brown, 1991:18).
[8] Este conceito foi
inventado por Faraday para designar um aspeto da constituição dos campos
magnéticos e electromagnéticos, mas foi posteriormente alargado a todos os
tipos de campo (ver Gribbin, 1986: 210-211).
[9] Introduzir aqui explicação
acerca função de onda
[10] Ver Greene, 2004:256-257
[11] “If a particle moves smoothly trough the Higgs ocean
with little or no interaction, there will be little or no drag and the particle
will have little or no mass. The photon is a good example (…). If, to the
contrary, a particle interacts significantly with the Higgs ocean, it will have
a higher mass.” (Id.:263).
[13] Para ilustrar este ponto,
Greene sugere o seguinte ao leitor: “Take your arm and swing it back and forth.
You can feel your muscles at
work driving the mass of your arm left and right and back again. If you take
hold of a bowling ball, your muscles will have to work harder, since the
greater the mass to be moved the greater the force they must exert.” (Id. :260-261)
[14] Usar ex. do papel
electrificado livro Física Quântica e cosmologia
[15] A
imagem que melhor pode ilustrar esta rede quântica será a de um campo de força,
análogo ao campo electromagnético que possibilita a propagação da luz, ou ao
campo gravitacional que envolve a Terra, ou de um campo magnético que une dois
ímans. Neste caso, não sendo o cérebro o produtor deste “campo de consciência”
– do mesmo modo que não é a Terra a produtora do seu campo gravitacional
(embora produza um campo electromagnético) -, podemos especular que o cérebro,
pela sua configuração e estrutura bio-fisiológica singular, seria capaz de
interagir com este campo de força a um nível quântico básico. Propunhamos,
muito audaciosamente, que o tecido fundamental do espaço-tempo onde nos movemos
é, ele próprio, a téla onde permanentemente o cérebro projeta todas as suas
imagens mentais, de tal modo que quem vê não somos de facto nós, mas o próprio universo na sua forma
singular de se ver a si próprio desde dentro.
[16] KANT, B133-B134, 1997,
pp. 132-133
[17] Ibidem, p. 133
[18] Ver Idem, §16-17, pp.
131-138
[19] Idem, B134, p. 133
[20] Em
boa verdade, nem relativamente à experiência subjetiva de outrem podemos estar
absolutamente certos, não tanto como em relação à nossa própria. Esta
constatação está na base do famoso problema cético das outras mentes, que
naturalmente não pretendemos tratar aqui. Admitamos, como hipótese de trabalho,
que a experiência subjetiva é um fenómeno que existe para além da minha própria
mente, para não cairmos no solipsimo. Seja como for, ainda que qualquer um de
nós, eu próprio ou o leitor, fossemos os únicos a possuir vida mental, ainda
assim seria pertinente tentar explicar a sua origem, dada a radicalidade e
incontornabilidade deste fenómeno.
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